segunda-feira, 16 de maio de 2016

Herói

Na verdade, o que hoje entendemos por personalidade é bem diferente do conceito em que a tinham os biógrafos historiadores de épocas antigas. Especialmente em relação aos autores que, nos tempos antigos, manifestavam inclinação para a biografia, poderíamos dizer que o essencial numa personalidade consistia em suas anomalias, suas peculiaridades e, com frequência, seu aspecto patológico, a passo que nós, hoje em dia, só falamos de personalidades importantes ao nos depararmos com indivíduos sem nenhuma espécie de originalidade ou peculiaridade, indivíduos que se adaptaram o mais possível à generalidade conseguindo assim servir de modo perfeito ao ideal da superpersonalidade. Observemos com maior exatidão, veremos que a Antiguidade já conhecera esse ideal: a personagem do “sábio” ou do “homem perfeito” entre os antigos chineses, por exemplo, ou o ideal da ética socrática mal se diferenciam do ideal da atualidade; grandes organizações espirituais, como a Igreja Católica Romana em sua época de maior poder, conheceram princípios semelhantes, e muitas dentre as suas grandes personalidades, como Santo Tomás de Aquino, por exemplo, tais quais estátuas da Antiguidade grega, antes nos parecem representantes clássicas de um tipo do que individualidades. Todavia, nos tempos que precederam a reforma da vida espiritual — reforma essa que principiou no século XX e da qual somos herdeiros esse ideal genuíno da Antiguidade parecia prestes a extinguir-se. Admiramo-nos ao encontrar, por exemplo, nas biografias daqueles tempos a enumeração minuciosa dos irmãos do herói, ou o número de cicatrizes e incisões psíquicas que as fases da meninice, da puberdade, da luta pela fama e pelo amor lhe deixaram. A nós, homens de hoje, não interessam a patologia ou a história de família, nem as paixões, a digestão ou o sono de um herói; nem mesmo a formação da sua espiritualidade ou a educação que adquiriu com estudos e leituras de sua preferência nos são de especial importância. Para nós só é herói, e uma pessoa digna de especial interesse, quem por natureza e pela educação foi colocado na situação de deixar fluir quase por completo sua pessoa na função hierárquica, sem ter por isso perdido o impulso enérgico, fresco e digno de admiração que perfaz o aroma e o valor de um indivíduo. E caso surjam conflitos entre a pessoa e a hierarquia, consideramos esses conflitos a pedra de toque para avaliar a grandeza de uma personalidade. Quanto menos aceitamos o rebelde, levado a romper com a ordem estabelecida por causa de seus desejos e paixões, maior o respeito com que refletimos sobre o valor do sacrifício, sobre a verdadeira tragédia.
Só quando se trata de um herói, do homem realmente modelar, parece-nos permitido e natural o interesse pela sua pessoa, pelo seu nome, por suas feições e seus gestos, porque não consideramos de modo nenhum a hierarquia perfeita ou a organização sem atritos como maquinismos formados por partes sem vida e por si sós indiferentes; para nós elas são um corpo vivo, formado de partes e órgãos, cada qual possuindo sua maneira de ser e sua liberdade peculiar, e participando do milagre da vida. Nesse sentido é que nos esforçamos por colher pormenores sobre a vida do Mestre do Jogo de Avelórios, José Servo, e principalmente sobre sua obra de escritor. Foi-nos também possível examinar vários manuscritos seus, que consideramos dignos de leitura.
Hermann Hesse, in O jogo das contas coloridas

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