Na
verdade, o que hoje entendemos por personalidade é bem diferente do
conceito em que a tinham os biógrafos historiadores de épocas
antigas. Especialmente em relação aos autores que, nos tempos
antigos, manifestavam inclinação para a biografia, poderíamos
dizer que o essencial numa personalidade consistia em suas anomalias,
suas peculiaridades e, com frequência, seu aspecto patológico, a
passo que nós, hoje em dia, só falamos de personalidades
importantes ao nos depararmos com indivíduos sem nenhuma espécie de
originalidade ou peculiaridade, indivíduos que se adaptaram o mais
possível à generalidade conseguindo assim servir de modo perfeito
ao ideal da superpersonalidade. Observemos com maior exatidão,
veremos que a Antiguidade já conhecera esse ideal: a personagem do
“sábio” ou do “homem perfeito” entre os antigos chineses,
por exemplo, ou o ideal da ética socrática mal se diferenciam do
ideal da atualidade; grandes organizações espirituais, como a
Igreja Católica Romana em sua época de maior poder, conheceram
princípios semelhantes, e muitas dentre as suas grandes
personalidades, como Santo Tomás de Aquino, por exemplo, tais quais
estátuas da Antiguidade grega, antes nos parecem representantes
clássicas de um tipo do que individualidades. Todavia, nos tempos
que precederam a reforma da vida espiritual — reforma essa que
principiou no século XX e da qual somos herdeiros esse ideal genuíno
da Antiguidade parecia prestes a extinguir-se. Admiramo-nos ao
encontrar, por exemplo, nas biografias daqueles tempos a enumeração
minuciosa dos irmãos do herói, ou o número de cicatrizes e
incisões psíquicas que as fases da meninice, da puberdade, da luta
pela fama e pelo amor lhe deixaram. A nós, homens de hoje, não
interessam a patologia ou a história de família, nem as paixões, a
digestão ou o sono de um herói; nem mesmo a formação da sua
espiritualidade ou a educação que adquiriu com estudos e leituras
de sua preferência nos são de especial importância. Para nós só
é herói, e uma pessoa digna de especial interesse, quem por
natureza e pela educação foi colocado na situação de deixar fluir
quase por completo sua pessoa na função hierárquica, sem ter por
isso perdido o impulso enérgico, fresco e digno de admiração que
perfaz o aroma e o valor de um indivíduo. E caso surjam conflitos
entre a pessoa e a hierarquia, consideramos esses conflitos a pedra
de toque para avaliar a grandeza de uma personalidade. Quanto menos
aceitamos o rebelde, levado a romper com a ordem estabelecida por
causa de seus desejos e paixões, maior o respeito com que refletimos
sobre o valor do sacrifício, sobre a verdadeira tragédia.
Só
quando se trata de um herói, do homem realmente modelar, parece-nos
permitido e natural o interesse pela sua pessoa, pelo seu nome, por
suas feições e seus gestos, porque não consideramos de modo nenhum
a hierarquia perfeita ou a organização sem atritos como maquinismos
formados por partes sem vida e por si sós indiferentes; para nós
elas são um corpo vivo, formado de partes e órgãos, cada qual
possuindo sua maneira de ser e sua liberdade peculiar, e participando
do milagre da vida. Nesse sentido é que nos esforçamos por colher
pormenores sobre a vida do Mestre do Jogo de Avelórios, José Servo,
e principalmente sobre sua obra de escritor. Foi-nos também possível
examinar vários manuscritos seus, que consideramos dignos de
leitura.
Hermann
Hesse, in O jogo das contas coloridas
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