Só
dois animais não se comoveram com a morte de Buda: a serpente e o
gato. As repulsivas serpentes, criaturas geladas que rastejam pelas
valas e porões, têm seu nome, há muito, ligado ao Mal. Já os
gatos, seres encantadores, nos atordoam. Sua imagem inconstante se
divide entre o afeto e a traição.
Já
tive um gato. Não resisto ao lugar-comum: não sei se fui eu quem o
tive ou ele que me teve. Essas ideias prontas reaparecem quando nos
deparamos com o incompreensível. Nada explicam a respeito de meu
gato. Não me ajudam, também, na leitura de Eu sou um gato,
romance do japonês Natsume Soseki (tradução de Jefferson José
Teixeira, Estação Liberdade).
Soseki
(1867-1916) foi um homem nervoso e débil, que abandonou a
universidade, e depois a família, para se esconder na literatura.
Seus romances se distinguem pela delicadeza e astúcia psicológica.
Em Eu sou um gato, ele se encarna em um felino para observar e
desmascarar a empáfia do humano.
Uma
lenda hebraica diz que o gato foi criado em plena arca porque Noé,
desesperado, já não sabia como conter os ratos que a infestavam.
Sempre que pensamos em um gato, pensamos logo em um rato. Ainda
assim, a figura dos gatos se liga ao ócio e ao inútil. Os cachorros
zelam pela casa, as galinhas põem ovos, as vacas produzem leite; já
um gato não serve para nada. Autônomos e preguiçosos, eles
vagueiam pelo mundo denunciando nossa incapacidade de simplesmente
viver.
O
gato sem nome que narra o romance de Natsume Soseki dedica sua vida a
observar os humanos. Sua presença causa desconforto. O nome
verdadeiro de Natsume (este é o sobrenome, que os japoneses invertem
de posição) era Kinnosuke. Em 1887, ele adotou o pseudônimo de
Soseki, que em chinês significa “incômodo”. Eu sou um gato
é, portanto, um título escorregadio. O eu que se apresenta talvez
fale do próprio escritor.
Sem
um nome, para falar de si o gato de Soseki adota um pronome, “wagahai
”, que, no japonês do século XIX, era exclusivo de políticos e
militares. Desafia, assim, seu dono, o professor Osan, um intelectual
pedante que raramente o olha. “Meu amo costuma me julgar apenas um
monte de pelos ambulantes”, diz. Quem vê o mesmo gato em todos os
gatos não vê gato algum. Eu, que tive um gato, sei disso.
Gatos
possuem 24 bigodes, que usam para medir as distâncias. À noite,
enxergam seis vezes mais que os humanos. Contudo, durante o dia sua
visão perde o foco. Sob a luz do sol, tudo o que veem é um borrão.
Como as serpentes, movem-se nas sombras. Soseki ainda era um menino
quando o romancista francês Jules Champfleury (1820-1889), pioneiro
do Realismo, publicou seu belo Os gatos , que agora folheio.
Comprei-o
em uma loja nas imediações do Louvre. A livreira, uma mulher careca
e áspera, me advertiu: “Se o senhor não ama os gatos, não o
leia, pois não o entenderá. Perco um freguês, mas o senhor não
perde a noite”. Sempre amei os gatos, então comprei o livro.
Ler
Soseki me traz de volta a Champfleury. Livros são trampolins que nos
roubam o chão. Ao contrário dos nadadores, que se contentam com um
único trampolim, leitores precisam de vários. Pulam de um para
outro, experimentam voos desconhecidos, inventam novos saltos – a
piscina é só um espelho no qual jamais mergulharão.
Diz
Champfleury: “Creio que a linguagem dos gatos é uma língua, já
que eles empregam sempre o mesmo som para exprimir a mesma coisa”.
Salto de volta a Eu sou um gato. Já não me parece estranho
que Soseki atribua pensamentos a seu gato. O escritor, muitas vezes,
é só alguém que sabe ouvir.
Minha
edição de Champfleury traz belas vinhetas do pintor japonês
Hok’sai, outro realista. Seus desenhos devolvem os gatos à esfera
da natureza. Mas, descartadas as superstições da veterinária, o
que há de natural em um gato? Feridos pela linguagem, em pleno
sangue da língua, a natureza já não lhes basta.
O
gato sem nome de Soseki bem merece o pseudônimo que o autor adotou:
incômodo. O professor Osan o despreza, mas seus discípulos o
valorizam. Entre os gatos, ele sim é chamado de “professor”.
Assim o trata a gata Mikeko, criada por uma tocadora de koto como se
fosse humana. Quando falam dela, não parecem se referir a um bicho.
“Por um lado senti certa inveja”, o gato sem nome admite, “mas
por outro não deixei de sentir certa alegria”. Alegria, talvez,
por se ver vingado. É raso o abismo que separa gatos e homens.
Mikeko
adoece e morre. Com o coração aos trancos, o gato sem nome ouve um
comentário cruel: “Se em lugar de Mikeko aquele gato vira-lata da
casa do professor morresse, teria sido perfeito”. Se não
humanizamos os gatos, os reduzimos a perseguidores de ratos. Mas
também o gato sem nome já não vê os gatos como seres naturais.
“Com a mesma empáfia dos humanos, sinto vontade de criticar suas
ideias e comportamentos”, diz.
Gatos
não são ratos, que fogem e se escondem. Quando perseguidos pelo
homem, ao contrário, eles o fitam. É na borra desse olhar que somos
fisgados. Também a figura incômoda de Natsume Soseki se dilui na
imagem de seu gato. Não posso negar: quando olho a fotografia de meu
falecido gato, num tremor, confesso que me vejo.
Ao
fim do romance, já casado, o professor Osan se assemelha a seu gato.
O longo despertar diante de uma esposa impaciente, no capítulo 10,
resume essa metamorfose. O gato verdadeiro o observa. “Meu amo
pertence à categoria dos imprestáveis”, ele constata. “Por ser
imprestável, não é valorizado. Como não é valorizado, não há
por que esconder sua frieza interior.” Conclui o gato que a
indiferença faz parte da essência humana e que os homens honestos –
como os gatos com sua negligência – não se esforçam para
escondê-la.
O
círculo se fecha, homens são gatos. Saio em busca dos versos que
Charles Baudelaire lhes dedica: “Nos teus belos olhos de ágata e
aço/ deixa-me aos poucos mergulhar”. Talvez não sejam os gatos
que se desviem e se escondam. Talvez sejamos nós, que, por não
conseguir fitá-los, sem coragem para mergulhar em seu interior, nos
retraímos. Imitamos os bichos e nos escondemos. Onde vemos um homem,
eles veem outro gato.
José
Castello, in Sábados inquietos
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