Já
naquela hora a notícia da inesperada morte de Quincas Berro Dágua
circulava pelas ruas da Bahia. É bem verdade que os pequenos
comerciantes do Mercado não fecharam suas portas em sinal de luto.
Em compensação, imediatamente aumentaram os preços dos
balangandãs, das bolsas de palha, das esculturas de barro que
vendiam aos turistas, assim homenageavam o morto. Houve nas
imediações do Mercado ajuntamentos precipitados, pareciam comícios
relâmpagos, gente andando de um lado para outro, a notícia no ar,
subindo o Elevador Lacerda, viajando nos bondes para a Calçada, ia
de ônibus para a Feira de Santana. Debulhou-se em lágrimas a
graciosa negra Paula, ante seu tabuleiro de beijus de tapioca. Não
viria Berro Dágua naquela tarde dizer-lhe galanteios torneados,
espiar-lhe os seios vastos, propor-lhe indecências, fazendo-a rir.
Nos saveiros de velas arriadas, os homens do reino de Iemanjá, os
bronzeados marinheiros, não escondiam sua decepcionada surpresa:
como pudera acontecer essa morte num quarto do Tabuão, como fora o
velho marinheiro desencarnar numa cama? Não proclamara, peremptório,
e tantas vezes, Quincas Berro Dágua, com voz e jeito capazes de
convencer ao mais descrente, que jamais morreria em terra, que só um
túmulo era digno de sua picardia: o mar banhado de lua, as águas
sem fim?
Quando
se encontrava, convidado de honra, na popa de um saveiro, ante uma
peixada sensacional, as panelas de barro lançando olorosa fumaça, a
garrafa de cachaça passando de mão em mão, havia sempre um
instante, quando os violões começavam a ser ponteados, em que seus
instintos marítimos despertavam. Punha-se de pé, o corpo gingando,
dava-lhe a cachaça aquele vacilante equilíbrio dos homens do mar,
declarava sua condição de velho marinheiro. Velho marinheiro sem
barco e sem mar, desmoralizado em terra, mas não por culpa sua.
Porque para o mar nascera, para içar velas e dominar o leme de
saveiros, para domar as ondas em noite de temporal. Seu destino fora
truncado, ele que poderia ter chegado a capitão de navio, vestido de
farda azul, cachimbo na boca. Nem mesmo assim deixava de ser
marinheiro, para isso nascera de sua mãe Madalena, neta de
comandante de barco, era marítimo desde seu bisavô, e se lhe
entregassem aquele saveiro seria capaz de conduzi-lo mar afora, não
para Maragogipe ou Cachoeira, ali pertinho, e sim para as distantes
costas da África, apesar de jamais ter navegado. Estava no seu
sangue, nada precisava aprender sobre navegação, nascera sabendo.
Se alguém, na seleta assistência, tinha dúvidas que se
apresentasse... Empinava a garrafa, bebia em grandes goles. Os
mestres de saveiro não duvidavam, bem podia ser verdade. No cais e
nas praias os meninos nasciam sabendo as coisas do mar, não vale a
pena buscar explicações para tais mistérios. Então Quincas Berro
Dágua fazia seu solene juramento: reservara ao mar a honra de sua
hora derradeira, de seu momento final. Não haviam de prendê-lo em
sete palmos de terra, ah! isso não! Exigiria, quando a hora
chegasse, a liberdade do mar, as viagens que não fizera em vida, as
travessias mais ousadas, os feitos sem exemplo. Mestre Manuel, sem
nervos e sem idade, o mais valente dos mestres de saveiro, sacudia a
cabeça, aprovando. Os demais, a quem a vida ensinara a não duvidar
de nada, concordavam também, tomavam mais um trago de pinga.
Pinicavam os violões, cantavam a magia das noites no mar, a sedução
fatal de Janaína. O velho marinheiro cantava mais alto que todos.
Como
fora então morrer de repente num quarto da ladeira do Tabuão? Era
coisa de não se acreditar, os mestres de saveiro escutavam a notícia
sem conceder-lhe completo crédito. Quincas Berro Dágua era dado a
mistificações, mais de uma vez embrulhara meio mundo. Os jogadores
de porrinha, de ronda, de sete-e-meio suspendiam as emocionantes
partidas, desinteressados dos lucros, apatetados. Não era Berro
Dágua o seu indiscutido chefe?
Jorge
Amado, in A morte e a morte de Quincas Berro Dágua
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