segunda-feira, 11 de abril de 2016

O tapete da recordação (trecho)

[…] Por isso me entusiasmo com a leitura de E a história começa, delicado livro em que Oz examina os começos de relatos célebres, assinados por escritores como Franz Kafka, Nikolai Gógol, Raymond Carver e García Márquez. Ele persegue o momento em que o vazio primordial se transforma, enfim, em palavras. Em seu livro, Amós Oz luta para delimitar o não existente que os escritores têm como objeto. Artistas plásticos, mais afeitos às manhas da matéria, e, por força, às sutilezas da ausência, há muito fazem o mesmo esforço. Penso no californiano Larry Bell, um artista que, nos anos 1960, construiu cubos de espelho, ou de cristal, exatamente para capturar o que não existe. Ele dizia: “Minhas obras não tratam de nada, apenas ilustram o vazio e a falta de sentido”. E ficava satisfeito com isso.
Cada vez que começam a escrever, escritores se veem diante do mesmo horror que atordoava Bell. Um medo mórbido, que se acerca da paralisia, mas que, fantástico paradoxo, é o combustível da escrita. A folha em branco e a tela vazia são a falta sobre a qual a literatura se funda. É nelas que, em contradição com a própria condição do nada (que, ensina o dicionário, é “nenhuma coisa, coisa alguma”), alguma coisa se detém.
Mas será do nada mesmo que os escritores partem? Ou essa é só uma ilusão a que se agarram, para se proteger do pior? É o próprio Amós Oz quem instala a dúvida, quando se lembra de Edward Said, o falecido crítico palestino. Para Said, começar era “essencialmente uma ação de regresso, é retroceder”. Um retorno a alguma coisa perdida, e não um avanço a partir do zero. Prudente, ele se apressava, contudo, a distinguir o começo da origem. A origem é divina – ela, sim, provém do nada. O começo, ao contrário, é humano e histórico. Mesmo partindo da página em branco, é a um passado e a uma memória, a toda uma imaginação em retalhos, que o escritor regressa.
A ideia do nada, à qual eu mesmo me aferro, era, para Said, um grave engano. Em vez de uma ausência, a folha em branco é um véu que encobre aquilo que, oculto, pede para ser descoberto. A imaginação, ao contrário do que creem os autores de best-sellers e os roteiristas de Hollywood, não aceita qualquer coisa. Imaginar é recuperar restos do passado, é dar destino a agitações sem nome e sem forma que, sem saber, carregamos. É moldar alguma coisa que não se vê, mas que já estava ali antes que começássemos a escrever.
José Castello, in Sábados inquietos

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