segunda-feira, 4 de abril de 2016

O amigo das más horas

Contou-nos o amigo:
A história começou quando perdi a eleição na sociedade científica de que faço parte. Senti a injustiça. Sempre fora um defensor daquela instituição, sacrificava meus interesses, só pelo interesse da associação. E haviam vencido, contra mim, os que vinham de fora, os que nada fizeram de concreto para a casa. Fiquei abaladíssimo. No dia seguinte ao acontecimento, eu ouvia minha mulher, que, com a sagacidade feminina procurava consolar-me, dizendo:
Está você aí todo sorumbático. Pois, olhe, eu não queria dizer nada, porque não desejava intervir na sua paixão pela Sociedade, para não me tornar, como tantas mulheres, a inimiga da vida pública do marido. Mas, bem mais importante do que aquele viveiro de vaidades é a nossa própria casa! Você nem tinha mais tempo para o nosso filho! Estava ficando ranzinza. Deixamos os nossos passeios, os nossos cinemas. Agora você vai ver que não perdeu e sim lucrou. Nenhuma namorada fora de casa lhe roubaria tanto tempo quanto essa Sociedade formada de meia dúzia de invejosos...
As palavras de minha mulher pareciam semente em bom terreno... Já me sentia outro, quando a campainha tocou, e ele apareceu. Parecia uma visita de pêsames. Sentou-se empertigado quando lhe ofereci a cadeira, e me disse com voz cava:
Venho trazer-lhe a minha solidariedade, diante do golpe que sofreu.
Há muitas coisas esquisitas, que nem o pensamento humano pode definir. Quando o homem falou em golpe, juro que sofri uma dor violenta no coração... Foi, mesmo, uma dor até física. E todo aquele ânimo, que minha mulher me infundira, se foi por água abaixo.
Sou o amigo das horas más... disse-me ele. - Sou o amigo que sempre falta aos outros, mas de que o senhor dispõe...
Fiquei sensibilizadíssimo. Todavia, notei que ele parecia não me querer largar mais. Almoçou comigo e durante todo o tempo do almoço me olhou com cara compungida. E foi-me levar ao trabalho, dizendo com sua fala especial:
Já tive um amigo que não sustentou um golpe igual ao que o senhor recebeu, e deu um tiro no ouvido... Veja que loucura!
Comecei meu trabalho de perna bamba. Mas, apesar daquele mau momento, vi, em breve, que quem tinha razão era minha mulher. E, dois meses depois, tive uma surpresa feliz. Fui convidado para uma importante missão científica. Minha casa se encheu de amigos, que me felicitaram. Só o amigo das horas más não apareceu. Apareceu, sim, mas foi na operação de apendicite que sofri:
Uma operação sempre é um risco, um risco muito sério. E eu quero que o senhor me considere sempre o amigo das horas difíceis, das horas más, do sofrimento...
Agradeci desta vez, meio sonolento ainda, sob o efeito do éter. Algum tempo depois, na cidade onde nasci, me foi feita uma homenagem. Uma festa que me comoveu, profundamente. A notícia trouxe, quando eu voltei do interior, uma legião de pessoas contentes à minha casa, pessoas que me vieram abraçar, satisfeitas com o acontecimento. Mas o amigo das horas más, ah, esse não pisou em casa. Penso que, exatamente, uns seis meses depois, minha mãe faleceu. E antes que até muitos parentes soubessem, pois que ela morreu subitamente, eis que me surge à porta o amigo das horas más.
Quero ser o primeiro a dar-lhe os sentidíssimos pêsames... Faço questão de estar a seu lado, nessa desgraça... E olhe: vou fazer até o discurso à beira da sepultura.
Perdi a paciência. Só então compreendi que aquele homem era, na verdade, o amigo das HORAS MÁS, mas não o MEU AMIGO. Era uma espécie de corvo da minha tristeza. Abracei-me a ele, levei-o para fora, e disse com voz serena:
Não, meu caro. Desta vez você não almoça a minha mágoa, como naquele dia. Vá se fartar de outras desventuras, porque, de hoje em diante, eu deixo de ser seu fornecedor... O homem saiu, tropeçando. Voltei para junto do corpo de minha mãe que até parecia sorrir... E desde esse dia me vi livre do amigo das horas más.
Dinah Silveira de Queiroz, in Quadrante 2

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