terça-feira, 19 de abril de 2016

Muhammad Ali: O rei do mundo

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Cassius Clay entrou no ringue em Miami Beach vestindo um roupão branco curto, bordado nas costas com a inscrição “The Lip” [O Lábio]. Lindo como sempre. Rápido, esbelto, 22 anos. Mas, pela primeira e última vez na vida, sentia medo. O ringue estava cheio de pugilistas de futuro ou decadentes, de segundos e de empresários. Clay os ignorou. Começou a se aquecer, jogando o peso do corpo de um pé para o outro, arrastando-se desanimado no início, como um maratonista de dança às dez para a meia-noite, mostrando aos poucos mais velocidade e prazer. Após alguns minutos, Sonny Liston, campeão mundial dos pesos-pesados, atravessou as cordas e pisou na lona, cauteloso como se entrasse numa canoa. Usava roupão com capuz. Seus olhos baços não traíam preocupação, eram os olhos mortos de um homem que jamais recebera favores da vida e nunca dera moleza a ninguém. Não pretendia começar logo agora, com Cassius Clay.
Praticamente todos os cronistas esportivos presentes no Miami Convention Hall esperavam ver Clay terminar a noite beijando a lona. Robert Lipsyte, jovem repórter de boxe do New York Times, recebeu um telefonema do editor ordenando que estudasse bem o trajeto entre o ginásio e o hospital, para não se perder no caminho se tivesse de seguir Clay até lá. As apostas eram desfavoráveis a Clay na base de sete contra um, mas era quase impossível encontrar alguém disposto a aceitar uma aposta. Na manhã da luta o New York Post publicou um artigo de Jackie Gleason, o comediante de televisão mais popular do país, que dizia: “Prevejo que Sonny Liston vencerá aos dezoito segundos do primeiro round, e a estimativa inclui os três segundos que o Boca de Sino vai levar consigo para o ringue”. Até os financiadores de Clay, o Grupo Patrocinador de Louisville, esperavam um fiasco; o advogado do grupo, Gordon Davidson, negociou duramente com a equipe de Liston, presumindo que aquela seria a última noite do rapaz num ringue. Davidson torcia apenas para Clay terminar “vivo e ileso”.
Era a noite de 25 de fevereiro de 1964. Malcolm X, mentor e convidado de Clay, ocupava uma cadeira de ringue, a de número 7. Jackie Gleason e Sammy Davis Jr. estavam lá, assim como os gângsteres de Las Vegas, Chicago e Nova York. Uma nuvem de fumaça de charuto toldava os refletores do ringue. Cassius Clay socava a névoa esvoaçante e aguardava o gongo soar.
A luta começou. De preto e branco, Cassius Clay deixou seu corner saltitante e imediatamente começou a circular no ringue, dançando, dando voltas e mais voltas no tablado, aproximando-se e afastando-se, a cabeça virando para um lado e para o outro, como se quisesse se livrar de um torcicolo no início da manhã, com leveza e fluidez — e então Liston, um touro imenso cujos ombros davam a impressão de bloquear o acesso à metade do ringue, deu o bote, soltando um jab de esquerda. Errou por cinquenta centímetros. Naquele momento, Clay começou a mostrar o que aconteceria naquela noite em Miami, e também algo que introduziria no boxe e nos esportes em geral — a união da massa com a velocidade. Um sujeito grande não tinha mais que se arrastar, podia socar como um peso-pesado e se mover como Ray Robinson.
Cassius Clay dominava completamente a luta. Liston exibia dois olhos roxos. Envelhecera uma década em quinze minutos. Ali havia adorado a cena na época, e continuava a adorá-la agora. “As pessoas gritavam cada vez que Liston dava um soco”, ele sussurrou. “Estavam esperando. Mas não acreditavam no que viam. Achavam que Liston ia me atirar em cima do público. Mas olhe para mim!” Clay dançava e jabeava. No sexto assalto, mais parecia um toureiro cravando bandarilhas no cachaço do touro.
No final do sexto round, Liston sentou-se na banqueta e lá ficou. Desistiu. Ali sorriu ao se ver jovem, dançando pelo ringue, gritando, “Sou o rei do mundo! Rei do mundo!”, subindo nas cordas e apontando para os cronistas esportivos: “Engulam suas palavras! Engulam suas palavras!”. No dia seguinte, Clay anunciaria que não era apenas o campeão mundial dos pesos-pesados, mas também um membro da Nação do Islã. Mais algumas semanas e teria um novo nome. E em poucos anos o menino rápido e engraçado de Louisville, Kentucky, se transformaria por seus atos em um dos norte-americanos mais eletrizantes e atraentes de sua época. Tornou-se tão famoso que em suas viagens pelo mundo poderia espiar pela janela do avião — fosse em Lagos ou em Los Angeles, em Paris ou em Madras — sabendo que praticamente todos os seres humanos vivos sabiam quem ele era. Fantasiava viagens ao redor do planeta, de carona, ciente de que todos o hospedariam, alimentariam, adorariam. Nos primeiros tempos como Cassius Clay, ele era frequentemente atacado pelos jornalistas e outras pessoas, no entanto, com o passar dos anos essas vozes ficaram praticamente inaudíveis. Ele ganhava a vida batendo nas pessoas, mas na meia-idade passou a ser considerado um símbolo não só de coragem como também de amor, decência e mesmo de um tipo especial de sabedoria.
David Remnick, in O rei do mundo

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