Google Imagens
Anoitecia,
eu estava no jardim. Passou um vizinho e ficou me olhando, pálido
demais até para o anoitecer. Tanto que cheguei a me virar para trás,
quem sabe alguma coisa além de mim no jardim. Mas havia apenas os
brincos-de-princesa, a enredadeira subindo lenta pelos cordões,
rosas cor-de-rosa, gladíolos desgrenhados. Eu disse oi, ele ficou
mais pálido. Perguntei que-que foi, ele enfim suspirou: “Me
disseram no Bonfim que você morreu na quinta-feira”. Eu disse ou
pensei dizer ou de tal forma deveria ter dito que foi como se
dissesse: “É verdade, morri sim. Isso que você está vendo é uma
aparição, voltei porque não consigo me libertar do jardim, vou
ficar aqui vagando feito Egum até desabrochar aquela rosa amarela
plantada no dia de Oxum. Quando passar lá no Bonfim diz que sim, que
morri mesmo, e já faz tempo, lá por agosto do ano passado.
Aproveita e avisa o pessoal que é ótimo aqui do outro lado: enfim
um lugar sem baixo astral”.
Acho
que ele foi embora, ainda mais pálido. Ou eu fui, não importa.
Mudando
de assunto sem mudar propriamente, tenho aprendido muito com o
jardim. Os girassóis, por exemplo, que vistos assim de fora parecem
flores simples, fáceis, até um pouco brutas.
Pois
não são. Girassol leva tempo se preparando, cresce devagar
enfrentando mil inimigos, formigas vorazes, caracóis do mal, ventos
destruidores. Depois de meses, um dia pá! Lá está o botãozinho
todo catita, parece que vai abrir.
Mas
leva tempo, ele também, se produzindo. Eu cuidava, cuidava, e nada.
Viajei por quase um mês no verão, quando voltei, a casa tinha sido
pintada, muro inclusive, e vários girassóis estavam quebrados.
Fiquei uma fera. Gritei com o pintor: “Mas o senhor não sabe que
as plantas sentem dor que nem a gente?” O homem ficou me olhando
tão pálido quanto aquele vizinho. Não, ele não sabe, entendi. E
fui cuidar do que restava, que é sempre o que se deve fazer.
Porque
tem outra coisa: girassol quando abre flor, geralmente despenca. O
talo é frágil demais para a própria flor, compreende? Então, como
se não suportasse a beleza que ele mesmo engendrou, cai por terra,
exausto da própria criação esplêndida. Pois conheço poucas
coisas mais esplêndidas, o adjetivo é esse, do que um girassol
aberto.
Alguns
amarrei com cordões em estacas, mas havia um tão quebrado que nem
dei muita atenção, parecia não valer a pena. Só apoie-o numa
espada de são-jorge com jeito, e entreguei a Deus. Pois no dia
seguinte, lá estava ele todo meio empinado de novo, tortíssimo, mas
dispensando o apoio da espada. Foi crescendo assim precário, feinho,
fragilíssimo. Quando parecia quase bom, cráu! Veio chuva medonha e
deitou-o por terra. Pela manhã estava todo enlameado, mas firme. Aí
me veio a ideia: cortei-o com cuidado e coloquei-o aos pés do Buda
chinês de mãos quebradas que herdei de Vicente Pereira. Estava tão
mal que o talo pendia cheio de ângulos das fraturas, a flor ficava
assim meio de cabeça baixa e de costas para o Buda. Não havia como
endireitá-lo.
Na
manhã seguinte, juro, ele havia feito um giro completo sobre o
próprio eixo e estava com a corola toda aberta, iluminada, voltada
exatamente para o sorriso do Buda. Os dois pareciam sorrir um para o
outro. Um com o talo torto, o outro com as mãos quebradas. Durou
pouco, girassol dura pouco, uns três dias. Então peguei e joguei-o
pétala por pétala, depois o talo e a corola entre as alamandas da
sacada. Para que caíssem no canteiro lá embaixo e voltassem a ser
pó, húmus misturado à terra. Depois não sei ao certo, voltasse à
tona fazendo parte de uma rosa, palma-de-santarrita, lírio ou
azaleia, vai saber que tramas armam as raízes lá embaixo no escuro,
em segredo.
Ah,
pede-se não enviar flores. Pois como eu ia dizendo, depois que
comecei a cuidar do jardim aprendi tanta coisa, uma delas é que não
se deve decretar a morte de um girassol antes do tempo, compreendeu?
Algumas pessoas acho que nunca. Mas não é para essas que escrevo.
Caio
Fernando Abreu, in Zero Hora, de 18/03/1995
Nenhum comentário:
Postar um comentário