sábado, 30 de abril de 2016

Psicografia

Também eu saio à revelia
e procuro uma síntese nas demoras
cato obsessões com fria têmpera e digo
do coração: não sou e digo
a palavra: não digo (não posso ainda acreditar
na vida) e demito o verso como quem acena
e vivo como quem despede a raiva de ter visto.
Ana Cristina César

A hora do diabo

Saíram da estação, e, ao chegar à rua, ela viu com pasmo que estava na própria rua onde morava, a poucos passos de casa. Estacou. Depois voltou-se para trás, para exprimir esse pasmo ao companheiro; mas atrás dela não vinha ninguém. Estava a rua, lunar e deserta, nem havia nela edifício que pudesse ser ou parecer ser uma estação de comboios.
Tonta, sonolenta, mas interiormente desperta e alarmada, foi até casa. Entrou, subiu; no andar de cima encontrou, ainda desperto, o marido. Lia, no escritório, e, quando ela entrou, depôs o livro.
Então? — perguntou ele.
E ela:
Correu tudo muito bem. O baile foi muito interessante. — E acrescentou, antes que ele perguntasse — Umas pessoas que estavam lá no baile trouxeram-me de automóvel até ao princípio da rua. Não quis que eles viessem até à porta. Saí ali mesmo; insisti. Ah, que cansada que estou!
E, num gesto de grande cansaço e esquecendo-se de um beijo, foi-se deitar.
Os seus sonhos adquiriram uma feição estranha, pontuados com coisas inexplicáveis por qualquer experiência que se conheça. Pairou nela o desejo de grandes coisas, como de alguém que um dia foi separado, numa vida antes desta, por sobre todas as idades da terra. E viu-se a deslocar por uma ponte de uma grande altura, de onde se vê todo o mundo. Em baixo, a uma distância mais que impossível, estavam, como astros espalhados, grandes manchas de luz: cidades, sem dúvida, da terra. Uma figura de vermelho apareceu-lhe e apontou-lhas, dizendo:
São as grandes cidades do mundo. Aquela é Londres — e apontou uma na distância descida — Aquela é Berlim — e apontou para outra. — E aquela, ali, é Paris. São manchas de luz na treva, e nós, nesta ponte, passamos alto sobre elas, incrédulos do mistério e do conhecimento.
Que coisa tão pavorosa e tão bonita! Mas o que é aquilo tudo ali em baixo?
Aquilo, minha senhora, é o mundo. Foi daqui que, por incumbência de Deus, tentei o seu Filho, Jesus. Mas não deu resultado, como eu já esperava, porque o Filho era mais iniciado que o Pai, e estava em contacto direto com os Superiores Incógnitos da Ordem. Foi uma provação, como se diz em linguagem iniciática, e o Candidato portou-se admiravelmente.
Não percebo. Foi daqui, realmente, que tentou Cristo?
Foi. Está claro que, onde agora está um vale imenso, estava então uma montanha. No abismo também há geologias. Aqui, onde estamos agora, era o cume. Que bem que me lembro! O Filho do Homem repudiou-me desde além de Deus. Segui, porque era o meu dever, o conselho e a ordem de Deus: tentei-o com tudo quanto havia. Se tivesse seguido o meu próprio conselho, tê-lo-ia tentado com o que não pode haver. Talvez a história do mundo em geral, e a da religião cristã em particular, tivessem sido diferentes. Mas que podem contra a força do Destino, supremo arquiteto de todos os mundos, o Deus que criou este, e eu que, porque o nega, o sustenta?
Mas como é que se pode sustentar uma coisa por a negar?
É a lei da vida, minha senhora. O corpo vive porque se desintegra, sem se desintegrar demais. Se não se desintegrasse segundo a segundo, seria um mineral. A alma vive porque é perpetuamente tentada, ainda que resista. Tudo vive porque se opõe a qualquer coisa. Eu sou aquilo a que tudo se opõe. Mas, se eu não existisse, nada existiria, porque não havia a que opor-se, como a pomba do meu discípulo Kant que, voando bem no ar leve, julga que poderia voar melhor no vácuo.
A música, o luar e os sonhos são as minhas armas mágicas. Mas por música não deve entender-se só aquela que se toca, se não também aquela que fica eternamente por tocar. Por luar, ainda, não se deve supor que se fala só do que vem da lua e faz as árvores grandes perfis; há outro luar, que o mesmo sol não exclui, e obscurece em pleno dia o que as coisas fingem ser. Só os sonhos são sempre o que são. É o lado de nós em que nascemos e em que somos sempre naturais e nossos.
Mas, se o mundo é ação, como é que o sonho faz parte do mundo?
É que o sonho, minha senhora, é uma ação que se tornou ideia; e que por isso conserva a força do mundo e lhe repudia a matéria, que é o estar no espaço. Não é verdade que somos livres no sonho?
Sim, mas é triste o acordar...
O bom sonhador não acorda. Eu nunca acordei. Deus mesmo duvida que não durma. Já uma vez ele mo disse...
Ela olhou-o de sobressalto e teve subitamente medo, uma expressão do fundo de toda a alma que nunca sentira.
Mas afinal quem é o senhor? Porque está assim mascarado?
Respondo, numa só resposta, às suas duas perguntas: não estou mascarado.
Como?
Minha senhora, eu sou o Diabo. Sim, sou o Diabo. Mas não me tema nem se sobressalte.
E num relance de terror extremo, onde boiava um prazer novo, ela reconheceu, de repente, que era verdade.
Eu sou de fato o Diabo. Não se assuste, porém, porque eu sou realmente o Diabo, e por isso não faço mal. Certos imitadores meus, na terra e acima da terra, são perigosos, como todos os plagiários, porque não conhecem o segredo da minha maneira de ser. Shakespeare, que inspirei muitas vezes, fez-me justiça: disse que eu era um cavalheiro. Por isso esteja descansada. Na minha companhia está bem. Sou incapaz de uma palavra, de um gesto, que ofenda uma senhora. Quando assim não fosse da minha própria natureza, obrigava-me o Shakespeare a sê-lo. Mas, realmente, não era preciso.
Dato do princípio do mundo, e desde então tenho sido sempre um ironista. Ora, como deve saber, todos os ironistas são inofensivos, exceto se querem usar da ironia para insinuar qualquer verdade. Ora eu nunca pretendi dizer a verdade a ninguém em parte porque de nada serve, e em parte porque a não conheço. O meu irmão mais velho, Deus todo poderoso, creio que também a não sabe. Isso, porém, são questões de família.”
Talvez não saiba porque é que a trouxe aqui, nesta viagem sem termo real nem propósito útil. Não foi, como parecia que ia julgar, para a violar ou atrair. Essas coisas sucedem na terra, entre os animais, que incluem os homens, e parece que dão prazer, creio, segundo me dizem de lá de baixo, até às vítimas.”
De resto, não poderia. Essas coisas acontecem na terra, porque os homens são animais. Na minha posição social no universo são impossíveis não bem porque a moral seja melhor, mas porque nós, os anjos, não temos sexo, e essa é, neste caso pelo menos, a principal garantia. Pode pois estar tranquila porque a não desrespeitarei. Bem sei que há desrespeitos acessórios e inúteis, como os dos romancistas modernos e os da velhice; mas até esses me são negados, porque a minha falta de sexo data desde o princípio das coisas e nunca tive que pensar nisso. Dizem que muitas feiticeiras tiveram pactos comigo, mas é falso; ainda que o não seja, porque o com que tiveram pacto foi com a própria imaginação, que, em certo modo, sou eu.”
Esteja, pois, tranquila. Corrompo, é certo, porque faço imaginar. Mas Deus é pior num sentido, pelo menos, porque criou o corpo corruptível, que é muito menos estético. Os sonhos, ao menos, não apodrecem. Passam. Antes assim, não é verdade?”
(...)
Fernando Pessoa, in A hora do diabo e outros contos

Leia o conto completo aqui.

Descrição de coisas existentes e inexistentes

(...) sob certo aspecto, é mais fácil aos indivíduos levianos, e requer menor responsabilidade, descrever com palavras as coisas inexistentes do que as existentes, mas com o historiador respeitoso e consciencioso dá-se justamente o contrário: não há nada que fuja tanto à descrição por meio de palavras e que seja mais necessário apresentar aos homens do que certas coisas que não têm aparência real e cuja existência não se pode comprovar, mas que, justamente pelo fato de indivíduos respeitosos e conscienciosos as tratarem como coisas existentes, são levadas a dar mais um passo em direção do ser e da possibilidade de nascer.
Hermann Hesse, in O jogo das contas de vidro

sexta-feira, 29 de abril de 2016

O amor anda de ônibus

Duas estudantes de mais ou menos 14 e 15 anos estão na parada de ônibus esperando a mesma linha que a minha. Um loirinho senta no banco também de uma parada de ônibus só que do outro lado da rua:

- Olha o Vitor, amiga.
- Onde?
- Do outro lado da rua.
- Ele é lindo, não?
- Um broto.
- Vai lá com ele.
- Não.
- Pq?
- Acabei de comer coxinha com pimenta. Devo estar com bafo.

Acendo um cigarro e chego nas duas falando:

- Ele não vai ligar se for um garoto esperto. Vai lá!
- Cê acha mesmo, tio?
- Acho. Vai lá. Toma coragem na vida, guria.
- Tá bom.

Ela bota uma balinha de menta na boca e passa batom nos lábios. A amiga sorri de felicidade. Está torcendo pela paixão só que o coletivo para do outro lado levando o moleque.
- Não foi dessa vez, amiga. Amanhã você fala com ele na hora do recreio.
- Não tenho sorte com o Victor.

Dou uma tragada funda no derby e falo pra consolar o coração da pobre adolescente: “Esquenta não, mina. É assim mesmo. O amor anda de ônibus”.
Diego Moraes, in ursocongelado.tumblr.com

Os oblíquos

É fácil conviver com os raivosos e lineares, mas não com os capciosos e oblíquos. O oblíquo, por sua própria natureza, é cheio de ângulos, de arestas, de sinuosidades. Como personagens, são extraordinários. Jamais são planos. Sempre redondos. Mas a vida não é literatura.
Na vida, você diz A, e o oblíquo entende A1. Ou ele diz A, mas é preciso entender que está dizendo A1. Essa pequena distorção, aparentemente insignificante, de meio grau, um grau, é, no entanto, venenosa, destrutiva.
O oblíquo, em geral, se trai por uma expressão típica:
Sim, mas...
O oblíquo não é capaz de dizer não. O não, para ele, é um anátema, um desaforo, um excesso de autenticidade.
Ao dizer “Sim, mas...”, ele concorda contigo, mas a própria expressão idiomática é uma contradição. Se é sim, é sim. Não há mas. Se há mas, não há sim. É simples, é uma questão de lógica, e de caráter.
O mas é a distorção – de meio grau, um grau. E é aí, nesse vão, nessa fissura, que penetra a subjetividade do oblíquo.
Um diálogo, com um oblíquo, é um monólogo. Porque ele não fala contigo, ele fala com a subjetividade dele, ele fala com a distorção. E quanto mais longa e generosa for a tua tentativa de comunicação genuína com um oblíquo, mais se abrirá a distância entre A e A1, embora o ângulo continue de meio grau, um grau. Aí quando reclamares, o oblíquo sorrirá com bonomia, como se dissesse: mas é só meio grau, estás fazendo tempestade em copo d´água.
Charles Kiefer, in Para ser escritor

O boi

Ó solidão do boi no campo,
ó solidão do homem na rua!
Entre carros, trens, telefones,
entre gritos, o ermo profundo.

Ó solidão do boi no campo,
ó milhões sofrendo sem praga!
Se há noite ou sol, é indiferente,
a escuridão rompe com o dia.

Ó solidão do boi no campo,
homens torcendo-se calados!
A cidade é inexplicável
e as casas não têm sentido algum.

Ó solidão do boi no campo!
O navio-fantasma passa
em silêncio na rua cheia.
Se uma tempestade de amor caísse!
As mãos unidas, a vida salva...
Mas o tempo é firme. O boi é só.
No campo imenso a torre de petróleo.
Carlos Drummond de Andrade

O retorno de um mito: Di Melo - Imorrível (2016) - Álbum Completo


Por que o retorno de um mito? Assista ao documentário postado abaixo: Di Melo, o Imorrível.

O adeus

No oitavo dia sentimos que tudo conspirava contra nós. Que importa a uma grande cidade que haja um apartamento fechado em alguns de seus milhares de edifícios; que importa que lá dentro não haja ninguém, ou que um homem e uma mulher ali estejam, pálidos, se movendo na penumbra como dentro de um sonho?
Entretanto a cidade, que durante uns dois ou três dias parecia nos haver esquecido, voltava subitamente a atacar. O telefone tocava, batia dez, quinze vezes, calava-se alguns minutos, voltava a chamar; e assim três, quatro vezes sucessivas.
Alguém vinha e apertava a campainha; esperava; apertava outra vez; experimentava a maçaneta da porta; batia com os nós dos dedos, cada vez mais forte, como se tivesse certeza de que havia alguém lá dentro. Ficávamos quietos, abraçados, até que o desconhecido se afastasse, voltasse para a rua, para a sua vida, nos deixasse em nossa felicidade que fluía num encantamento constante.
Eu sentia dentro de mim, doce, essa espécie de saturação boa, como um veneno que tonteia, como se meus cabelos já tivessem o cheiro de seus cabelos, se o cheiro de sua pele tivesse entrado na minha. Nossos corpos tinham chegado a um entendimento que era além do amor, eles tendiam a se parecer no mesmo repetido jogo lânguido, e uma vez, que, sentado, de frente para a janela por onde se filtrava um eco pálido de luz, eu a contemplava tão pura e nua, ela disse: “Meu Deus, seus olhos estão esverdeando”:
Nossas palavras baixas eram murmuradas pela mesma voz, nossos gestos eram parecidos e integrados, como se o amor fosse um longo ensaio para que um movimento chamasse outro: inconscientemente compúnhamos esse jogo de um ritmo imperceptível, como um lento bailado.
Mas naquela manhã ela se sentiu tonta, e senti também minha fraqueza; resolvi sair, era preciso dar uma escapada para obter víveres; vesti-me lentamente, calcei os sapatos como quem faz algo de estranho; que horas seriam?
Quando cheguei à rua e olhei, com um vago temor, um sol extraordinariamente claro me bateu nos olhos, na cara, desceu pela minha roupa, senti vagamente que aquecia meus sapatos. Fiquei um instante parado, encostado à parede, olhando aquele movimento sem sentido, aquelas pessoas e veículos irreais que se cruzavam; tive uma tonteira, e uma sensação dolorosa no estômago.
Havia um grande caminhão vendendo uvas, pequenas uvas escuras; comprei cinco quilos. O homem fez um grande embrulho de jornal; voltei, carregando aquele embrulho de encontro ao peito, como se fosse a minha salvação.
E levei dois, três minutos, na sala de janelas absurdamente abertas, diante de um desconhecido, para compreender que o milagre acabara; alguém viera e batera à porta, e ela abrira pensando que fosse eu, e então já havia também o carteiro querendo o recibo de uma carta registrada, e quando o telefone bateu foi preciso atender, e nosso mundo foi invadido, atravessado, desfeito, perdido para sempre — senti que ela me disse isso num instante, num olhar entretanto lento (achei seus olhos muito claros, há muito tempo não os via assim, em plena luz), um olhar de apelo e de tristeza onde entretanto ainda havia uma inútil, resignada esperança.
Rubem Braga, in Ai de ti, Copacabana

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Dois silêncios abismais

A vida é puro ruído entre dois silêncios abismais. Silêncio antes de nascer, silêncio após a morte.”
Isabel Allende

Uma terceira via: o humor

Convivem sempre na burguesia uma grande multidão de naturezas fortes e selvagens. Nosso Lobo do Estepe, Harry, é um exemplo característico. Ele que se desenvolveu muito mais do que se espera de um burguês, ele que conhece as delícias da meditação e também as sombrias alegrias do ódio e do ódio contra si mesmo, ele que despreza a lei, a virtude, o senso comum, é, no entanto, um prisioneiro forçado da burguesia e não pode escapar a ela. E assim em torno do núcleo da burguesia se sobrepõem amplas camadas de Humanidade, muitos milhares de vidas e inteligências, cada uma das quais surgida certamente da burguesia e disposta a uma vida sem reservas, mas que continua dependente da burguesia por sentimentos infantis e um tanto contagiada em sua debilidade pela intensidade vital; e embora desterradas da burguesia, continuam de certo modo pertencendo a ela, obrigadas a ela e a seu serviço, pois à burguesia assenta perfeitamente o contrário da máxima do Grande: Quem não está contra mim, está comigo. Se examinarmos agora a alma do Lobo da Estepe, veremos que ele é distinto do burguês por causa do alto desenvolvimento de sua individualidade, pois toda a individualização superior se orienta para o egotismo e propende portanto ao aniquilamento. Vemos que tem em si um forte impulso tanto para o santo quanto para o libertino; no entanto, não pode tomar o impulso necessário para atingir o espaço livre e selvagem, por debilidade ou inércia, e permanece desterrado na difícil e maternal constelação da burguesia. Esta é sua situação no espaço do mundo e sua sujeição. A maior parte dos intelectuais e dos artistas pertence a esse tipo. Só os mais fortes entre eles ultrapassam a atmosfera da terra da burguesia e logram entrar no espaço cósmico; todos os demais se resignam ou selam pactos, pertencem a ela, reforçam-na e glorificam-na, pois em última instância têm de professar sua crença para viver. A vida desse infinito número de pessoas não atinge o trágico, mas apenas um infortúnio considerável e uma desventura, em cujo inferno seus talentos engendram e frutificam. Os poucos que se libertaram buscam sua recompensa no absoluto e sucumbem no esplendor. São os trágicos e seu mero é pequeno. Mas os outros, os que permaneceram submissos, a cujo talento a burguesia concede com frequência grandes homenagens, a estes se abre um terceiro reino, um mundo imaginário, mas soberano: o humor. Aos inquietos lobos da estepe, a esses contínuos e terríveis pacientes, aos que está negado o apoio necessário para o trágico, para subir ao espaço sideral, que se sentem chamados para o absoluto e, no entanto, não podem nele viver; para esses, quando seu espírito se fez duro e elástico na dor, abre-se-lhes o caminho conciliante do humor. O humor é sempre um pouco burguês, embora o verdadeiro burguês seja incapaz de compreendê-lo. Em suas imaginárias esferas realiza-se o ideal intrincado e multifacetado de todos os lobos da estepe; aqui é possível não apenas celebrar o santo e o libertino ao mesmo tempo e unir um pólo ao outro, mas também incluir os burgueses na mesma afirmação. É possível estar-se possuído por Deus e sustentar o pecador, e vice-versa, mas não é possível nem ao santo nem ao libertino (nem a nenhum outro absoluto) afirmar aquele meio termo fraco e neutro que se chama burguês. Somente o humor, a magnífica descoberta dos que foram detidos em seu voo para o mais alto, dos quase trágicos, dos infelizes superdotados, só o humor (talvez o produto mais genuíno e genial da Humanidade) atinge esse impossível e une todos os aspectos da existência humana nos raios de seu prisma.”
Hermann Hesse, in O lobo da Estepe

Sujeito

Usava um Dicionário do Ordinário
com 11 palavras de joelhos
inclusive bestego. Posava de esterco
para 13 adjetivos familiares,
inclusive bêbado.
Ia entre azul e sarjetas.
Tinha a voz de chão podre.
Tocava a fome a 12 bocas.
E achava mais importante fundar um verso
do que uma Usina Atômica!
Era um sujeito ordinário.
Manoel de Barros

Meu reino por um pente

Filhos - diz o poeta - melhor não tê-los. Já o Professor Aníbal Machado me confiou gravemente que a vida pode ter muito sofrimento, o mundo pode não ter explicação alguma, mas, filhos, era melhor tê-los.
A conclusão parece simples, mas não era; Aníbal tinha ido às raízes da vida, e de lá arrancara a certeza imperativa de que a procriação é uma verdade animal, uma coisa que não se discute, fora de alcance do radar filosófico. “Eu não sei por que, Paulo, mas fazer filhos é o que há de mais importante”.
Engraçado é que depois dessa conversa fui descobrindo devagar a melancólica impostura daquelas palavras corrosivas do final de Memórias Póstumas: “não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.
Filhos, melhor tê-los, aliás, o mesmo poeta corrige antiteticamente o pessimismo daquele verso, quando pergunta: mas, se não os temos, como sabê-lo? Resumindo: filhos, melhor não tê-los, mas é de todo indispensável tê-los para sabê-lo; logo, melhor tê-los.
Você vai se rir de mim ao saber que comecei a crônica desse jeito depois de procurar em vão meu bloco de papel. Pois se ria a valer: o desaparecimento de certos objetos tem o dom de conclamar, por um rápido edital, todas as brigadas neuróticas alojadas nas províncias de meu corpo.
Sobretudo instrumentos de trabalho. Vai-se-me por água a baixo o comedimento quando não acho minha caneta, meu lápis-tinta, meu papel, minha cola... Quando isso acontece (sempre) até taquicardia costumo ter; vem-me a tentação de demitir-me do emprego, de ir para uma praia deserta, de voltar para Minas Gerais, renunciar...
Ridículo? Sim, ridículo, mas nada posso fazer. Creio que seria capaz (talvez seja presunção) de aguentar com relativa indiferença uma hecatombe que destruísse de vez todos os meus pertences. O que não suporto é a repetição indefinida do desaparecimento desses objetos sem nenhum valor, mas, sem os quais, a gente não pode seguir adiante, tem de parar, tem de resolver primeiro.
Stanislaw Ponte Preta andou espalhando que eu usava ventilador para pentear os cabelos. Calúnia. Sou o maior comprador de pentes do Estado da Guanabara. Compro-os em quantidades industriais pelo menos duas vezes por mês, de todos os tamanhos, de todas as cores. Sou quase amigo de infância do vendedor de pentes que estaciona ali na esquina de Pedro Lessa e Rua México. A princípio, pensou que eu estava substabelecendo o comércio dele, comprando para vender mais caro, mas um dia eu lhe contei minha tragédia familiar, e ele sorriu e confessou: “Lá em casa é a mesma coisa”.
Chego em casa com os meus pentes e os distribuo a mancheias. Dois para você, quatro para você - segundo o temperamento e a distração de cada um. Aviso a todos que vou colocar um no armário do quarto, um no banheiro, um em cada mesa de cabeceira, dois na minha gaveta. Terminada essa operação ostensiva, fico malicioso e furtivo; secretamente, vou escondendo outros pentes por todos os cantos e recantos, debaixo do colchão, no alto de um móvel, atrás do exemplar dos Suspiros Poéticos e Saudades. Em seguida, reúno solenemente toda a família, inclusive o Poppy, tiro do bolso um pente singular, o mais ordinário encontrável na praça, e digo: “Este é o meu pente; este ninguém usa; neste, sob pretexto algum, ninguém toca! Estão todos de acordo? Ou algum dos presentes deseja fazer alguma objeção?”
Estão todos de acordo. A sinceridade do meu clã nesses momentos é de tal qualidade que, por um dia ou dois, tenho a ilusão de que, afinal, venci, de que descobri o approach certo para a família incerta. Mas, meu São Luís de Camões, ó caminhos da vida, sempre errados! Os dias passam, o vento passa a descabelar-nos, e os meus pentes, os meus pentes também passam. Misteriosamente, inexplicavelmente, eles desaparecem, pouco a pouco, com certa malícia, um a um, dois a dois, até chegar o momento dramático no qual, depois de vasculhar todos os meus esconderijos, fico em cabelos no meio da sala e, como Ricardo III em plena batalha, exclamo patético: “Um pente, um pente, meu reino por um pente!”.
Eu não fui - diz o primeiro; - eu não fui - diz o segundo; - eu não fui - diz o terceiro. Poppy, cuja especialidade é comer meias e sapatos, não diz nada, mas abana o rabo negativamente.
Não foi ninguém, foi Mr. Nobody, foi o diabo, foi a minha sina. Minha mansão tem apenas três quartos e uma sala. Pois é inacreditável a quantidade de objetos que estão desaparecidos aqui dentro. Um dia, quando me mudar, a gente vai achar tudo.
E sorrir um para o outro com uma nostalgia imprecisa, e dizer em silêncio que, filhos, e pais, melhor tê-los.
Paulo Mendes Campos, in Elenco de cronistas modernos - 7

Lulinha Alencar - Cem Gonzaga*



*Belíssimo CD de Lulinha Alencar, grande sanfoneiro potiguar, de Rafael Godeiro, que afirma no encarte: "Nasci no sertão potiguar no dia treze de dezembro e fui batizado como nome de Luiz. Não deve ser por acaso que esse meu primeiro disco seja uma homenagem a outro Luiz também nascido em treze de dezembro, no sertão pernambucano. Reside nessa ligação afetiva e artística o motivo para o Cem Gonzaga, que faz um trocadilho com a influência e ao mesmo tempo a ausência de um dos maiores mestres da música brasileira."

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Sou ateu

Sou um ateu com uma atitude religiosa e vivo muito em paz.”
José Saramago

A casa vazia

Um monarca árabe deve escolher um representante para negociar a paz com um rei cristão, que ameaça invadir seu país. Aconselhado por um vizir, ele indica para o posto um homem de quem nunca ouvira falar. Um homem comum, que parecia ser o menos competente para a tarefa.
O emissário desconhecido chega à corte cristã. Depois de saudá-lo, o rei lhe aponta o céu, e ele, sem vacilar, o imita. Ergue os dedos em direção a seu rosto, e ele dirige os seus para o rosto do rei. Diante de uma ceia suntuosa, o rei escolhe uma pequena azeitona, e o visitante, copiando-o, se limita a servir-se de um ovo. O rei, enfim, exclama: “Nunca vi ninguém mais entendido nem mais capaz”. A paz entre os reinos é imediatamente selada.
Quando, depois, lhe perguntam como conseguiu chegar a um acordo tão rápido, o viajante árabe assim descreve o rei que visitou: “Nunca vi ninguém mais estúpido, nem mais ignorante”. Havia em cena dois homens, mas na verdade quatro pessoas. Quando apontou o céu, o rei cristão quis dizer: “Deus é único”. Mas o visitante entendeu: “Eu erguerei você com a ponta do meu dedo” – e, ao repetir o gesto, repetiu a ameaça. O rei apontou o rosto do viajante para afirmar: “Todos os homens têm uma só origem, Adão”. Mas ele entendeu: “Eu arrancarei seus olhos com meu dedo” e, sem pensar duas vezes, repetiu a intimidação.
O rei cristão e o emissário islâmico usaram os mesmos gestos para dizer coisas diferentes. Retidos nas trevas da linguagem, terminaram por se entender mesmo sem entender. A paz, como quase todos os eventos da palavra, não passou de um equívoco. Mas nem por isso deixou de ser paz.
Leio esse relato, que resumo sem muita inspiração, em Histórias para ler sem pressa (editora Globo), antologia de antigos contos árabes organizados e traduzidos por Mamede Mustafa Jarouche, com ilustrações fortes de Andrés Sandoval. Em seu teatro mudo, o rei cristão e o emissário árabe encenaram o abismo escuro que a língua habita. Não que as palavras cheguem a ser inúteis; mas elas não servem para o que pensamos.
Foi com temor que comecei a ler a antologia de Jarouche: achava que encontraria só belas, sensíveis mas cerradas histórias moralistas. Na aparência, não só as antigas histórias árabes, mas os contos de fadas ocidentais se limitam a difundir ideias nobres, a pregar bons hábitos e a transmitir lições. As palavras, porém, são mais misteriosas que seus autores. Escrevemos um simples bilhete, passamos um telegrama formal, anotamos um recado e nem imaginamos o que estamos fazendo.
Artefatos humanos, as palavras carregam a mesma fluidez que define o homem. Em um ensaio de Juan José Saer, encontro um pensamento do mestre zen Lin Tsi que descreve isso. “Escondido em seu conglomerado de carne vermelha há um homem verdadeiro sem situação que, sem cessar, entra e sai pelas portas de sua casa.” Esse homem escondido, que está além de todas as circunstâncias, não é uma figura agradável. Seu interior obscuro está infestado de vísceras e outros conteúdos repugnantes. Mas não importa se isso nos agrada ou desagrada. É ali, em silêncio, que a vida se move.
O silêncio é o cosmos da língua. Pequena língua, ínfima agulha, a girar no escuro ou, para roubar os versos de Drummond, a flutuar em um “silencioso cubo de trevas”. Continuo em Drummond: “A soma da vida é nula./ Mas a vida tem tal poder:/ na escuridão absoluta,/ como líquido, circula”. O cubo, poliedro regular de seis faces, promete um equilíbrio que, na verdade, não tem. Simboliza, também, a terceira potência – e quando dizemos: “três ao cubo”, não falamos de três, mas de nove. Força que não está nem nas faces quadradas nem no interior vazio, mas que (como insistia Clarice) se dissimula nas entrelinhas.
A palavra é muitas vezes um veneno – como nas intrigas de vizinhos, na retórica de políticos e nos fuxicos das faladeiras. Um dos relatos da antologia fala do vizir Sáhib Ibn Abbád, que recebeu a denúncia de um roubo – crime medonho contra a herança de um órfão. A acusação é justa, mas o vizir sabe que, às vezes, mais medonha que o ato, é sua transmissão. “A intriga é detestável ainda que verdadeira”, resume.
A intriga – como se diz do enredo de um filme – pode ser eletrizante, mas nem por isso merece confiança. Um dos relatos conta a história de Abu Attarçúci, o mais avarento dos homens. No fecho, o autor, Aljáhoiz, um sábio árabe do século IX, se apressa a observar: “Essas coisas e outras semelhantes ficam muito mais saborosas caso você as veja com os próprios olhos”. E não se furta a sujar o que escreveu: “Pois a escrita não retrata todas as coisas nem revela suas essências, limites e verdades”.
Coisas falam mais que palavras. Um velho sábio pede que seus discípulos narrem uma visita ao mercado. Eles descrevem as cores, as iguarias e, entre elas, um estupendo peixe frito. “E o que ele lhe disse?”, o mestre pergunta aos alunos. Um deles, cheio de si, logo reage: “E por acaso um peixe morto e frito fala?”. Furioso, o velho sábio o emenda: “Vocês alegam ser hábeis estudiosos, mas as coisas lhes falam e vocês não as entendem!”.
Em um poema famoso, Charles Baudelaire expõe seu temor a esse mundo errante: “Túnel que me esconde,/ cheio de vago horror, levando não sei onde”. O poema se aplica à história do Almutanabbi, autor de belos versos sobre a generosidade, que é obrigado a explicar por quê, contrariando o que escreve, é um homem avaro. Ele relembra sua juventude miserável para mostrar como o real o leva a, mesmo escrevendo sobre a bondade, praticar a maldade. A poesia nem sempre vem dos melhores sentimentos.
Em outro conto, enfurecido com a acusação de que sua ciência não serve para nada, o alquimista Yúçuf argumenta que ela, por mais incerta que seja, é mais potente que a ciência infalível dos farmacêuticos. “Quando se pede alguma coisa aos farmacêuticos, eles afirmam que a têm, mesmo que não tenham”, compara. A poesia, ao contrário, é a casa dos que sabem que não têm e, só por isso, se arriscam a tentar.
José Castello, in Sábados inquietos

Viagem

Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar...
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos.)

Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.
Miguel Torga

Direitos sociais e de liberdade

Quando digo que os direitos do homem constituem uma categoria heterogênea, refiro-me ao fato de que – desde quando passaram a ser considerados como direitos do homem, além dos direitos de liberdade, também os direitos sociais – a categoria em seu conjunto passou a conter direitos entre si incompatíveis, ou seja, direitos cuja proteção não pode ser concedida sem que seja restringida ou suspensa a proteção de outros. Pode-se fantasiar sobre uma sociedade ao mesmo tempo livre e justa, na qual são global e simultaneamente realizados os direitos de liberdade e os direitos sociais; as sociedades reais, que temos diante de nós, são mais livres na medida em que menos justas e mais justas na medida em que menos livres. Esclareço dizendo que chamo de liberdades os direitos que são garantidos quando o Estado não intervém; e de poderes os direitos que exigem uma intervenção do Estado para sua efetivação. Pois bem: liberdades e poderes, com frequência, não são – como se crê – complementares, mas incompatíveis. Para dar um exemplo banal, o aumento do poder de comprar automóveis diminuiu, até quase paralisar, a liberdade de circulação. Outro exemplo, um pouco menos banal: a extensão do direito social de ir à escola até os catorze anos suprimiu, na Itália, a liberdade de escolher um tipo de escola e não outro. Mas talvez não haja necessidade de dar exemplos: a sociedade histórica em que vivemos, caracterizada por uma organização cada vez maior em vista da eficiência, é uma sociedade em que a cada dia adquirimos uma fatia de poder em troca de uma falta de liberdade. Essa distinção entre dois tipos de direitos humanos, cuja realização total e simultânea é impossível, é consagrada, de resto, pelo fato de que também no plano teórico se encontram frente a frente e se opõem duas concepções diversas dos direitos do homem, a liberal e a socialista.”
Norberto Bobbio, in A era dos direitos

Na rede

Deito-me na rede, olho as nuvens vagabundas. Creio que aquelas que estão paradas lá longe, branquinhas, espichadas como franjas, se chamam cirros; e essas gordas, brancas, que brilham ao sol aqui mais perto se chamam cúmulos. Mas não é preciso saber seus nomes; deixo-me levar pela fantasia de suas esculturas, e vou vagando ao sabor de seus caprichos. Direis que essa ocupação não é construtiva; responderei que estou contemplando o céu de minha Pátria. Sempre é algo de nobre e afinal há momentos em que a gente se cansa de olhar a terra e os homens.
Pego o livro do padre Antônio Vieira e me deleito quando ele conta o amor de Santa Teresa por Jesus Cristo. Que diferença entre o amor divino e esses outros amores, os profanos, em que nos atolamos aqui neste vale de lágrimas!
Ouçamos a santa: “Senhor, que se me dá a mim de mim sem vós? Por que eu sem vós não sou eu: e de mim, que não sou eu, que se me dá a mim?”
A isso Vieira chama “divina implicação”.
Estas palavras Santa Teresa ouviu de Cristo: “Teresa, eu amei a Madalena estando na terra, porém a ti amo-te estando no céu.”
Sobre o que, comenta o padre que isso é uma extrema fineza, pois “as bem-aventuranças são desaforáveis, e não há maior inimigo do amor que a felicidade”. E faz suas comparações sobre os amores de Cristo:
A Madalena, como tão amante e tão amada, estando na terra, mandava-a Cristo levar ao céu, para que fosse ouvir as músicas dos anjos: e Teresa estando na terra amava tanto e era tão amada que, estando Cristo no céu, deixava as músicas dos anjos para vir conversar com Teresa na terra.”
Mas o sermão é longo, e a mim e ao leitor nos convém que a crônica seja curta. Deixemos o bom Vieira tratar dos amores divinos. Volto à rede, e às nuvens. A mais gordinha se esfiapou um pouco nas bordas e está passando sobre meu telhado, rumo ao norte. Boa viagem, irmã, cuidado com esse vento, vê lá aonde ele te vai levando...
Mas ela passa muito serena.
Rubem Braga, in Ai de ti, Copacabana

Provaremos as ilhas e o mar

Sei que em alguma noite
em algum quarto
logo
meus dedos abrirão
caminho
através
de cabelos limpos
e macios

canções como as que nenhuma rádio
toca

toda a tristeza, escarnecendo
em correnteza.
Charles Bukowski, in O amor é um cão dos diabos

Aprendendo a viver

Thoreau era um filósofo americano que, entre coisas mais difíceis de se assimilar assim de repente, numa leitura de jornal, escreveu muitas coisas que talvez possam nos ajudar a viver de um modo mais inteligente, mais eficaz, mais bonito, menos angustiado.
Thoreau, por exemplo, desolava-se vendo seus vizinhos só pouparem e economizarem para um futuro longínquo. Que se pensasse um pouco no futuro, estava certo. Mas “melhore o momento presente”, exclamava. E acrescentava: “Estamos vivos agora!’ E comentava com desgosto: “Eles ficam juntando tesouros que as traças e a ferrugem irão roer e os ladrões roubar.” A mensagem é clara: não sacrifique o dia de hoje pelo de amanhã. Se você se sente infeliz agora, tome alguma providência agora, pois só na sequência dos agoras é que você existe.
Cada um de nós, aliás, fazendo um exame de consciência, lembra-se pelo menos de vários agoras que foram perdidos e que não voltarão mais. Há momentos na vida que o arrependimento de não ter tido ou não ter sido ou não ter resolvido ou não ter aceito, há momentos na vida em que o arrependimento é profundo como uma dor profunda.
Ele queria que fizéssemos agora o que queremos fazer. A vida inteira Thoreau pregou e praticou a necessidade de fazer agora o que é mais importante para cada um de nós.
Por exemplo: para os jovens que queriam tornar-se escritores mas que contemporizavam – ou esperando uma inspiração ou se dizendo que não tinham tempo por causa de estudos ou trabalhos – ele mandava ir agora para o quarto e começar a escrever.
Impacientava-se também com os que gastam tanto tempo estudando a vida que nunca chegam a viver. “É só quando esquecemos todos os nossos conhecimentos que começamos a saber.”
E dizia esta coisa forte que nos enche de coragem: “Por que não deixamos penetrar a torrente, abrimos os portões e pomos em movimento toda a nossa engrenagem?” Só em pensar em seguir o seu conselho, sinto uma corrente de vitalidade percorrer-me o sangue. Agora, meus amigos, está sendo neste próprio instante.
Thoreau achava que o medo era a causa da ruína dos nossos momentos presentes. E também as assustadoras opiniões que nós temos de nós mesmos. Dizia ele: “A opinião pública é uma tirana débil, se comparada à opinião que temos de nós mesmos.” É verdade: mesmos as pessoas cheias de segurança aparente julgam-se tão mal que no fundo estão alarmadas. E isso, na opinião de Thoreau, é grave, pois “o que um homem pensa a respeito de si mesmo determina, ou melhor, revela seu destino”.
E, por mais inesperado que isso seja, ele dizia: tenha pena de si mesmo. Isso quando se levava uma vida de desespero passivo. Ele então aconselhava um pouco menos de dureza para com eles próprios. O medo faz, segundo ele, ter-se uma covardia desnecessária. Nesse caso devia-se abrandar o julgamento de si próprio. “Creio”, escreveu, “que podemos confiar em nós mesmos muito mais do que confiamos. A natureza adapta-se tão bem à nossa fraqueza quanto à nossa força.” E repetia mil vezes aos que complicavam inutilmente as coisas – e quem de nós não faz isso? –, como eu ia dizendo, ele quase gritava com quem complicava as coisas: simplifique! simplifique!
E um dia desses, abrindo um jornal e lendo um artigo de um nome de homem que infelizmente esqueci, deparei com citações de Bernanos que na verdade vêm complementar Thoreau, mesmo que aquele jamais tenha lido este.
Em determinado ponto do artigo (só recortei esse trecho) o autor fala que a marca de Bernanos estava na veemência com que nunca cessou de denunciar a impostura do “mundo livre”. Além disso, procurava a salvação pelo risco – sem o qual a vida para ele não valia a pena – “e não pelo encolhimento senil, que não é só dos velhos, é de todos os que defendem as suas posições, inclusive ideológicas, inclusive religiosas” (o grifo é meu).
Para Bernanos, dizia o artigo, o maior pecado sobre a Terra era a avareza, sob todas as formas. “A avareza e o tédio danam o mundo.” “Dois ramos, enfim, do egoísmo”, acrescenta o autor do artigo.
Repito por pura alegria de viver: a salvação é pelo risco, sem o qual a vida não vale a pena!
Clarice Lispector, in Aprendendo a viver