quarta-feira, 9 de março de 2016

O passeio da família

Aos domingos a família ia ao cais do porto espiar os navios. Debruçavam numa murada, e se o pai vivesse talvez ainda tivesse diante dos olhos a água oleosa, de tal modo ele olhava fixamente as águas oleosas. As filhas se inquietavam obscuramente, chamavam-no para ver coisa melhor: olhe os navios, papai!, ensinavam-lhe elas, inquietas.
Quando escurecia, a cidade iluminada se tornava uma grande metrópole com banquinhos altos e giratórios em cada bar. A filha menor quis se sentar num dos bancos, o pai achou graça. E isso era alegre. Ela então fez mais graça para alegrá-lo e isso já não era tão alegre. Para beber, escolheu uma coisa que não fosse cara, se bem que o banco giratório encarecesse tudo. A família, de pé, assistia à cerimônia com prazer. A tímida e voraz curiosidade pela alegria. Foi quando conheceu ovomaltine de bar, nunca antes tal grosso luxo em copo alteado pela espuma, nunca antes o banco alto e incerto, the top of the world. Todos assistindo. Lutou desde o princípio contra o enjoo de estômago, mas foi até o fim, a responsabilidade perplexa da escolha infeliz, forçando-se a gostar do que deve ser gostado, desde então misturando, à mínima excelência de seu caráter, uma indecisão de coelho. Também a desconfiança assustada de que ovomaltine é bom, “quem não presta sou eu”. Mentiu que era ótimo porque de pé eles presenciaram a experiência da felicidade cara: dela dependia que eles acreditassem ou não num mundo melhor?
Mas tudo isso era rodeado pelo pai, e ela estava bem dentro dessa pequena terra na qual caminhar de mão dada era a família. De volta o pai dizia: mesmo sem termos feito nada, gastamos tanto.
Antes de adormecer, na cama, no escuro. Pela janela, no muro branco: a sombra gigantesca e balouçante de ramos, como de uma árvore enorme, que na verdade não existia no pátio, só existia um arbusto magro; ou era sombra da Lua.
Domingo ia ser sempre aquela noite imensa e meditativa que gerou todos os futuros domingos e gerou navios cargueiros e gerou água oleosa e gerou leite com espuma e gerou a Lua e gerou a sombra gigantesca de uma árvore apenas pequena e frágil. Como eu.
Clarice Lispector, in Aprendendo a viver

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