sábado, 19 de março de 2016

Namoro

Havia namoros mais francos, de passeios na ponte à noite, de longas conversas nos portões dos quintais, de encontros aparentemente casuais em lugares pouco vigiados; Nazaré e Pedrinho sabiam disso, mas não estava neles modificar um namoro que nascera difícil, cercado, travado.
Mas um dia, no tempo das jabuticabas, tudo mudou sem esforço. Era domingo, Pedrinho ia passando pela estrada entre os quintais e o barranco do rio, viu as jabuticabeiras carregadas no quintal de Nazaré. Jabuticaba não faltava em nenhum quintal, mas aquelas estavam ali, tentando. Se o portão não estivesse trancado por dentro, como era o costume… Pedrinho experimentou o trinco, estava solto. Deu um empurrãozinho, o portão abriu.
Pedrinho já estava catando jabuticabas num tronco, escolhendo as mais graúdas e enchendo os bolsos para sair logo, quando uma voz falou:
Aí, hein? Deixe madrinha saber.
Ele parou envergonhado, olhou em volta e não viu ninguém.
Aqui, bobo.
Nazaré estava naquela mesma jabuticabeira, recostada num galho alto, os pés numa forquilha, o vestido enrolado nas pernas.
Como foi que você subiu?
Subindo.
É? Pois eu quero ver você descer descendo.
Não vai ver porque eu não deixo. Tinha graça.
Bastou isso para Pedrinho encabular-se. A vontade dele foi ir embora depressa, mas não seria grosseria demais, cavalice mesmo?
Não precisa ficar vermelho. Basta virar as costas enquanto eu desço — disse ela, ajudando-o a sair do impasse.
Ele obedeceu depressa e ainda baixou a cabeça como garantia suplementar. Um galho estalou, jabuticabas caíram no chão fofo de gravetos e folhas secas, e logo Pedrinho sentiu na orelha o bafo da respiração de Nazaré. Virou o rosto para esse lado, ela já tinha passado para o outro. Experimentou de novo, ela ainda foi mais ligeira.
Não precisa ficar se escondendo de mim que eu já vou — disse ele frustrado.
Pra onde?
Não é da sua conta.
Hum, antipático. Só porque eu não quis que você me visse descendo não precisa ficar malcriado.
Ele sentiu um calor repentino nas orelhas e um formigamento em todo o rosto. Mulher parece que tira a vida para enfezar a gente. Que se deve fazer num caso desses? Xingar? Sair correndo? É melhor não fazer nada.
Ih, bobo! É preciso ficar vermelho assim? Estou brincando.
Não gosto desses brinquedos — disse ele emburrado.
Qual é o brinquedo que você gosta?
Nenhum.
A resposta escapou muito depressa, e agora era tarde: ele não ia emendar. Por culpa dele o namoro podia acabar ali, se Nazaré não o salvasse.
Sabe o quê? — disse ela brincando com um botão do paletó dele. — Você é muito sisudo. Parece um padre. Bença, monsenhor.
Ele fingiu-se de muito indignado (era preciso fazer alguma coisa) e empurrou a mão dela com estouvamento.
Você não repete — disse ele.
Ela aceitou o desafio com satisfação (queria brincar) e repetiu várias vezes — Padre! Padre! Padre Pedrinho! — com o rosto esticado para a frente, quase tocando o dele. Ele tentou pegá-la pelo braço, ela escapuliu, sempre provocando. A perseguição entre as jabuticabeiras, as fintas em volta de um tronco, a fuga para outro, as gargalhadas, as ameaças. Nazaré se escondendo numa moita de bananeira, Pedrinho procurando, encontrando. Agora que estava com ela bem segura pelo pulso, ele não sabia o que fazer.
Peguei ou não peguei?
Porque eu estava cansada. Solta que você está me machucando.
Ele soltou imediatamente. Desapontada, ela vingou-se:
Você é bem mandado, não é?
Ele agarrou-a de novo, agora pela cintura, com os dois braços. Era a primeira vez que ficava assim tão perto de uma mulher, sozinho com ela. E agora? O que fazer para não estragar o momento?
Nazaré olhava para ele curiosa, ofegante, esperando. Era hora de não fazer nada que pudesse espantá-lo. Agora não podia haver recuo. Se houvesse, seria a derrota talvez irremediável para os dois. Que iria ele fazer?
O momento foi tão intenso que ela teve medo — de tudo, até de perdê-lo — e para resistir envolveu Pedrinho pela cintura, abraçou-o forte e escondeu o rosto no peito dele. Ficaram assim — quietos, sofrendo, vivendo, calados.
Sabiás cantavam nas jabuticabeiras, felizes com a fartura, enquanto mais longe galos e galinhas se entregavam a seu namoro estridente. Um cavalo relinchou do outro lado do rio e disparou em alegre galope pelos pastos tingidos de sol.
Quando Pedrinho teve serenidade bastante para sentir o cheiro do cabelo de Nazaré — não perfume de loção ou pomada, mas cheiro de cabelo puro — cabelo e pele e suor inocente, aquele halo que acompanha toda mulher na véspera do amor, mergulhou o rosto no fofo dos cabelos dela, abrindo-os instintivamente para chegar ao morno do pescoço. Ela ajudou-o com movimentos ondulantes aconchegantes, sabia que ele estava fazendo o certo. O aperto, a fúria, a raiva, a pressa, os beijos urgentes, meticulosos, adivinhados; a pressa, a fúria, o fôlego se encurtando, se acabando.
Onde estavam? Numa moita de bananeiras, entre abelhas e folhas secas e cheiros de quintal, debaixo de um céu festivo. Nazaré soltou Pedrinho e pediu que ele afrouxasse o abraço, ele obedeceu, estonteado. Ela alisou o vestido, respirou fundo, pôs ordem no cabelo, mas sabendo que logo teria de fazer tudo isso de novo.
Ficaram ali longo tempo calados, unidos, se reconhecendo, até que ouviram dona Bita chamando Nazaré. Então Nazaré se lembrou que tinha ido apanhar jabuticaba para a madrinha, e que a cuia que levara estava ainda vazia. Pedrinho ajudou-a a achar a cuia e a enchê-la, às pressas, sem escolher muito. Um último beijo sucinto e Nazaré subiu para casa quase correndo. Pedrinho saiu, fechou o portão devagar, com a meticulosidade de quem fecha uma arca, e foi envolvido por um mundo novo, amigo.
José J. Veiga, in A hora dos ruminantes

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