domingo, 27 de março de 2016

Irmã

Você está de boa escrevendo seu romance numa tarde de sábado. No capítulo que o protagonista tenta fazer as pazes com a irmã de criação que por anos só queria um abraço dele. E ele por puro egoísmo e indiferença a ignora num terminal de ônibus num dia chuvoso: “oi, sou sua irmã.” “irmã em cristo?” e ela dentro do capítulo sai correndo do sarcasmo. Chorando. Inconsolável. E fora dele, do romance, que será atacado pela crítica como apelativo, de autoficção pornográfica, autor imundo, apologista e o caralho a quatro. O homem que talvez seja o protagonista. Que talvez seja o narrador. Que está do outro lado dessa tela de computador escrevendo… Por tantas vezes não quis retribuir a pata do seu cão sarnento. Não quis estender a mão. Por quantas vezes não quis fazer carinho no seu lombo cheio de sarnas e carrapatos. Por quantas vezes recusou o convite de noivado da única puta do amazonas que beija na boca dos clientes? Quantas vezes de orgulho ferido e humilhado feito cavalo sem dentes que chega por último no páreo. Brincou quantas vezes com os sentimentos de senhoras divorciadas dizendo que voltaria? “oi sou sua irmã” e repetidas vezes ele sonha com a voz da pequena garota desprezada por todos. Pelos avós alcoólatras. Pela mãe doente mental que grita em cultos da assembleia de deus aos domingos e joga na cara da guria que ela não passa de uma fornicação suja de pomba gira. “oi, sou sua irmã”. Então um amigo liga para esse sujeito que não sabemos se é o narrador, protagonista ou apenas um cafajeste do outro lado da tela do computador e diz: “deixa a literatura de lado e vamos cheirar. Tem dois travecos e uma ninfetinha pra gente foder.” Aí abro um sorriso na esperança de disfarçar a tentação e bebo um pouco de refrigerante sem gás e pergunto para mim mesmo: “e agora literatura? Você tem sexo? Você é homem ou mulher? Você tem pau ou boceta?” então asas levam a minha caneta bic vermelha em direção ao caderno no criado-mudo onde descansam folhas rabiscadas de delírios tortos e estoura formando um coração. Desligo o computador. Eu, o narrador, o protagonista e todos os personagens possíveis que encarnam no espírito de um escritor arregalaram os olhos. Ela, a puta de todos os fodidos, a sagrada literatura, responde: “Não saia. Fique aqui. Sou sua irmã”.
Diego Moraes, in ursocongelado.tumblr.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário