terça-feira, 15 de março de 2016

A gaiola

A vizinha acaricia a gaiola com o cuidado definido de uma predadora. É mais que amor; superior dedicação.
A gaiola tem um pano a cobri-la.
Tento cumprimentar:
Boa tarde, vizinha...
Nem uma, nem duas. À terceira tentativa consegue enfiar a mão na escuridão do pano — o secretíssimo seu segredo. Da janela, eu, o curioso. Ela, prazerosa, no esplendor do seu sorriso. Os músculos sólidos do antebraço regozijam-se em movimentos certeiros. Os olhos fechados. A gaiola-mistério intacta — não há som.
Vizinha, boa tarde...
No céu, escurecendo, brilha uma estrela solitária, tímida. A gaiola estremece e — oh! — é a outra mão, por baixo.
Transporta a gaiola para outro banco mais alto. Diante dos seus seios fartos repousa, sob o pano, o objeto coberto — quase uma extensão daqueles. Sob o pano desapareceram os dois antebraços e o princípio das tetas. E ela — sorri; com um nítido esgar de prazer.
Vizinha...?
Os olhos fechados, os pés sem tocarem com firmeza no solo. Abateu-se sobre nós uma repentina escuridão, uma ambiência ofusca.
A vizinha acaricia a gaiola com a precisão de um felino. Uma felina. O véu soergue-se como numa magia e julgo ver algo mais. Mas nada vejo.
Ela espreita — num início de deslocação.
Entram as orelhas. A nuca. Já não lhe vejo o cabelo. Não distingo o pescoço do pano que cobre a misteriosa gaiola. Há silêncio — esse silêncio que antecede o impossível. E, num saltinho, coisa nenhuma, vaporosa deslocação, num “ai que me vou”, um sopro noturno, como direi?, num momento menos havido, ela, a vizinha, repentina e leve, levemente repentina, toda ela, ancas enormes, pernas entroncadas, tornozelos desafogados, a vizinha, nesse “ai que me fui”, desaparece! — como um vulto assustado. Fugaz. Ido.
Vizinha...!
A gaiola — a secretíssima objeta, repousa sobre o banco. O véu consta igualmente. Há a estrela.
Há o silêncio.
E eu:
Vizinha!, vizinha...
Resta só quietude.
O chão, esse, acolhe um fiapo de cabelo, manso, que do entre-escuro cai, flutuando, em breve errância vertical. Só.
Ondjaki, in E se amanhã o medo

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