Os
dois tinham fama de grandes conhecedores de vinho e nenhum dos dois
se interessava em desmentir o equívoco. Iam enganando a todos e um
ao outro com sua suposta cultura enológica. Que, como se sabe, só
depende de ter uma pose, duas ou três frases e uma razoável
pronúncia em francês. Mas aconteceu o seguinte: os dois foram
almoçar juntos. Pela primeira vez, as duas falsas autoridades se
encontravam diante de pratos e — suspense — de copos vazios.
Embora o motivo do almoço fosse outro, para todos os efeitos era um
desafio. Qual dos dois entendia mais de vinho?
Não
pediram aperitivos para não amortecer o paladar. Até aí eles
sabiam. Fizeram sua escolha do cardápio. Os dois pediram carne.
Depois um deles sugeriu, com estudada indiferença:
— Quem
sabe um vinhozinho?
— Claro
— disse o outro, com naturalidade. Mas suave, temendo o
desmascaramento. Fez uma rápida recapitulação mental de tudo o que
realmente sabia sobre vinhos. Não daria para encher um copo. Mas não
podia se entregar.
— Qual
você prefere? — perguntou o outro, tomando a ofensiva. Também
temia ser descoberto. Tinha um enorme livro sobre vinhos impresso na
Suíça em 117 cores, na mesa de centro da sua sala. Era para
decoração, jamais o abrira. Esperou a resposta do outro com
ansiedade. O que fosse sugerido ele aceitaria em seguida. Era mais
seguro. Depois, seria só uma questão de beber polidamente e fazer
todos os ruídos apropriados até o fim do almoço. Mas o outro
hesitou. Depois, riu e disse:
— Um
tinto, claro.
— Claro
— riu o primeiro, dando a entender que também achava graça da
simulada inocência do outro. Com carne, vinho tinto. Até aí todos
nós sabemos. O outro disse:
— Olha,
para mim qualquer tinto seco está bem. Escolha você.
O
primeiro estremeceu. E agora? O maître esperava o pedido,
impassível. Resolveu blefar. Era a única saída. Audácia e
surpresa, e o inimigo recuaria em desordem. Inventaria um nome
francês qualquer, com a pronúncia correta para intimidar o outro, e
esperaria a reação.
— O
que acha você de um Cave de Mourville?
O
outro nem piscou. Fez um ar de aprovação, mas sem muito entusiasmo.
Tinha as suas dúvidas.
— Não
sei... O último que provei me pareceu um pouco, sei lá. Reticente.
Algo contido. E um Cave de Mourville não tem o direito de ser
egoísta, você não concorda?
Epa.
Era preciso ter cuidado. O primeiro comeu uma azeitona para reagrupar
as suas forças. Reatacou:
— Você
deve ter tomado um 57. Foi um péssimo ano para a região.
— Não,
um 62.
—
Impossível.
— Meu
caro, não precisei nem olhar o rótulo. Conheço os meus 62 de olhos
fechados.
A
tensão era grande. O primeiro agora sabia que o outro era um
farsante. Mas não podia descartar a possibilidade de que o outro
entendia mesmo do assunto, pegara o seu blefe e agora o estava
testando. Virou-se gravemente para o maître e perguntou:
— O
Cave de Mourville de vocês, de que ano é?
—
Infelizmente, nosso último Cave de
Mourville saiu ontem — disse o maître, outro farsante.
E
os dois, aliviados, gritaram ao mesmo tempo:
— Então
traz uma mineral!
Luís
Fernando Veríssimo, in A mesa voadora
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