sábado, 5 de dezembro de 2015

O Fortuna


Um dia escrevi que a pizza era uma contravenção culinária — um crime menor, mas um crime — e estava mexendo, sem saber, com as convicções gastronômicas de muita gente. Houve reações e tenho certeza de que só não fui agredido ainda com uma muzzarela tamanho médio porque o agressor em potencial preferiu comê-la, em desagravo, a desperdiçá-la na minha cabeça.
Mas sustento a opinião. Não tenho posições muito firmes sobre o parlamentarismo ou o futebol sem pontas, mas sobre a pizza, tenho. Sou contra. E falar em pizza me lembra a história exemplar do Fortuna. Não, não é o Fortuna que você está pensando. Não é, já disse. Este Fortuna eu inventei agora.
Um dia os amigos se deram conta de que o Fortuna estava desaparecido.
O Fortuna era um bom papo, um ótimo companheiro de mesa, um homem viajado e culto, apesar de ser — nisso todos concordavam — um pouco radical. E o Fortuna estava desaparecido.
Que fim levou o Fortuna?
Ninguém sabia.
Até que alguém trouxe a notícia.
O Fortuna tinha entrado para uma ordem religiosa.
Morava num retiro, onde passava os dias na sua cela simples, ou caminhando pelo claustro, em profunda meditação. Alimentava-se de pão e água, vez que outra de algo mais substancial, preparado na pobre cozinha da ordem.
A notícia causou grande consternação entre os antigos companheiros de mesa do Fortuna. Mas como? Logo o Fortuna? Um gourmet? Um conhecedor, um apreciador das boas coisas da vida?
Mas era verdade. Era a triste verdade. O Fortuna se retirara do mundo e dos seus prazeres.
Os amigos foram procurá-lo. Encontraram o Fortuna deitado na sua cama de pedra, da qual varrera até a palha que disfarçava a dureza.
A princípio o Fortuna não quis falar sobre o que o levara àquela cela ascética, onde pretendia ficar até o fim dos seus dias. Mas finalmente, cedendo à insistência dos visitantes, contou. Fora uma pizza.
Os amigos se entreolharam.
Uma pizza, Fortuna?
Uma pizza. Alguém o convidara para ir a uma pizzaria e o Fortuna relutara mas aceitara. E lá ele pedira, ele pedira...
O Fortuna cobriu o rosto com as mãos. A lembrança era penosa demais. Mas os amigos insistiram. Então o Fortuna controlou-se. E contou. Pedira uma Pizza Tropical. Alguém ali já vira uma Pizza Tropical?
Ninguém vira.
Ela vem com presunto, fios de ovos, abacaxi e uvas. Presunto, fios de ovos, abacaxi e uvas! Isso tudo em cima, claro, do queijo derretido!
No momento em que a Pizza Tropical chegara à mesa, o Fortuna se levantara e saíra correndo da pizzaria. Naquela mesma noite pedira asilo no retiro.
Vocês entendem? Não posso viver num mundo em que existe a Pizza Tropical.
No momento em que a Pizza Tropical chegara à mesa, o Fortuna se convencera de que não existe futuro para a humanidade. Que se a Pizza Tropical existe, tudo é permitido.
Quem faz a Pizza Tropical é capaz de qualquer coisa. Estamos perdidos!
Impressionados com a veemência do Fortuna, os seus amigos concordaram em que ele fizera bem em se retirar de um mundo no qual a Pizza Tropical é possível.
Aliás, três dos amigos já ficaram no retiro com o Fortuna.
Luís Fernando Veríssimo, in A mesa voadora

Nenhum comentário:

Postar um comentário