Um
dia escrevi que a pizza era uma contravenção culinária — um
crime menor, mas um crime — e estava mexendo, sem saber, com as
convicções gastronômicas de muita gente. Houve reações e tenho
certeza de que só não fui agredido ainda com uma muzzarela tamanho
médio porque o agressor em potencial preferiu comê-la, em
desagravo, a desperdiçá-la na minha cabeça.
Mas
sustento a opinião. Não tenho posições muito firmes sobre o
parlamentarismo ou o futebol sem pontas, mas sobre a pizza, tenho.
Sou contra. E falar em pizza me lembra a história exemplar do
Fortuna. Não, não é o Fortuna que você está pensando. Não é,
já disse. Este Fortuna eu inventei agora.
Um
dia os amigos se deram conta de que o Fortuna estava desaparecido.
O
Fortuna era um bom papo, um ótimo companheiro de mesa, um homem
viajado e culto, apesar de ser — nisso todos concordavam — um
pouco radical. E o Fortuna estava desaparecido.
— Que
fim levou o Fortuna?
Ninguém
sabia.
Até
que alguém trouxe a notícia.
O
Fortuna tinha entrado para uma ordem religiosa.
Morava
num retiro, onde passava os dias na sua cela simples, ou caminhando
pelo claustro, em profunda meditação. Alimentava-se de pão e água,
vez que outra de algo mais substancial, preparado na pobre cozinha da
ordem.
A
notícia causou grande consternação entre os antigos companheiros
de mesa do Fortuna. Mas como? Logo o Fortuna? Um gourmet? Um
conhecedor, um apreciador das boas coisas da vida?
Mas
era verdade. Era a triste verdade. O Fortuna se retirara do mundo e
dos seus prazeres.
Os
amigos foram procurá-lo. Encontraram o Fortuna deitado na sua cama
de pedra, da qual varrera até a palha que disfarçava a dureza.
A
princípio o Fortuna não quis falar sobre o que o levara àquela
cela ascética, onde pretendia ficar até o fim dos seus dias. Mas
finalmente, cedendo à insistência dos visitantes, contou. Fora uma
pizza.
Os
amigos se entreolharam.
— Uma
pizza, Fortuna?
Uma
pizza. Alguém o convidara para ir a uma pizzaria e o Fortuna
relutara mas aceitara. E lá ele pedira, ele pedira...
O
Fortuna cobriu o rosto com as mãos. A lembrança era penosa demais.
Mas os amigos insistiram. Então o Fortuna controlou-se. E contou.
Pedira uma Pizza Tropical. Alguém ali já vira uma Pizza Tropical?
Ninguém
vira.
— Ela
vem com presunto, fios de ovos, abacaxi e uvas. Presunto, fios de
ovos, abacaxi e uvas! Isso tudo em cima, claro, do queijo derretido!
No
momento em que a Pizza Tropical chegara à mesa, o Fortuna se
levantara e saíra correndo da pizzaria. Naquela mesma noite pedira
asilo no retiro.
— Vocês
entendem? Não posso viver num mundo em que existe a Pizza Tropical.
No
momento em que a Pizza Tropical chegara à mesa, o Fortuna se
convencera de que não existe futuro para a humanidade. Que se a
Pizza Tropical existe, tudo é permitido.
— Quem
faz a Pizza Tropical é capaz de qualquer coisa. Estamos perdidos!
Impressionados
com a veemência do Fortuna, os seus amigos concordaram em que ele
fizera bem em se retirar de um mundo no qual a Pizza Tropical é
possível.
Aliás,
três dos amigos já ficaram no retiro com o Fortuna.
Luís
Fernando Veríssimo, in A mesa voadora
Nenhum comentário:
Postar um comentário