– São
quatro segundos, caro amigo, quatro segundos de aflição que não
dão para um pai-nosso. O amigo experimente, pai nosso que estais no
céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino, seja
feita a vossa vontade, assim na terra como no PAM!, quatro segundos e
o corpo despedaçado contra o cimento. Se quiser continuar a
trabalhar aqui, invente uma oração, pense bem no que há-de pedir
ao altíssimo, mas que seja em menos de quatro segundos.
Dois
homens pendurados por arneses a oitenta metros de altura. Os que
trabalham dentro chamam-lhes pardais com uma ironia desnecessária.
Quarenta e oito horas semanais de equilibrismo pagas a quatro
dólares, um bom emprego para quem acaba de chegar à cidade. A fome
mata-se muitas vezes com números de circo, ser equilibrista ou
palhaço é só uma questão de oportunidade.
–
Quando
o mundo foi feito, os homens foram postos na terra de pés assentes e
medo das alturas. Os homens não são do alto, como os pássaros e os
anjos, a vertigem foi-nos dada pela natureza para que não o
esquecêssemos. Os homens que sobem demasiado alto são puxados para
baixo pelo diabo, para baixo de tudo, para o inferno que procuram. A
força da terra é força do diabo a chamar gente.
Karl
tenta não ouvir o colega, concentra-se na janela e no rodo que faz
deslizar com precisão. Este é o primeiro dia de trabalho e ensaia
um desvelo que não lhe é comum. Por entre os movimentos do braço e
o chiar da borracha contra o vidro, há palavras que lhe chegam e
ficam às voltas na cabeça. Céu, cimento, diabo, inferno. Karl
nunca esteve tão longe do chão em toda a vida, pouca gente esteve.
As montanhas do seu país são uma coisa diferente, altas, sim, mas
vão subindo devagar. Esta parede é demasiado vertical, como o
degrau infinito de uma escada absurda, um degrau que é fácil
descer.
– Eu
não hei-de cair enquanto o mundo não se virar. Não há diabo que
chegue ao santíssimo. Há quase um ano que trabalho nisto e deus
nunca me deixou cair, um homem deve precaver-se e foi o que fiz. O
pastor deu-me na mão uma pena de anjo, uma pena às cores de um anjo
que o foi ver, e eu trago-a cosida ao peito. Esta pena é de puxar
para deus. “Cose-a ao peito e nada te pode deitar abaixo, o coração
há-de puxar-te sempre para cima enquanto a trouxeres contigo.” Foi
o que me disse o pastor antes que eu aceitasse este trabalho. Uma
parte do ordenado vai para a igreja, e mais que fosse, o favor de
deus não tem preço e até os pardais podem cair sem penas de puxar
para cima.
Tremem
as pernas a Karl de frio ou medo, a esta altitude não há diferença.
O vento anda com eles de manhã à noite, como um cão vadio que não
tem para onde ir e se mete pelas pernas de quem trabalha. Karl dá
por si a inventar orações, é um exercício difícil, reduzir a
algumas frases tudo o que se quer pedir ao criador. Por fim decide-se
e repete para si mesmo “Perdoa-me senhor, perdoa-me senhor,
perdoa-me senhor...”, a fórmula é simples e tem a vantagem de
poder ser usada também em quedas pequenas.
Nuno
Camarneiro, in No meu peito não cabem pássaros
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