domingo, 6 de dezembro de 2015

Idolo

Faz parte da insaciabilidade, mas também da veemência dos anos de juventude, que um fenômeno, uma experiência, um modelo, elimine o outro. Somos fogosos e expansivos, apegamo-nos a este ou àquele, fazemos dele um ídolo, afeiçoando-nos e submetendo-nos com uma paixão que exclui todo o resto. Assim que esse ídolo nos decepciona, arrancamo-lo de sua posição elevada e o demolimos sem escrúpulos; não pretendemos ser justos, porquanto já significou demais para nós. Erigimos um novo ídolo em meio às ruínas do antigo. Importa-nos pouco que ele se sinta desconfortável ali. Somos instáveis e arbitrários com nossos ídolos; não nos perguntamos sobre seus sentimentos, pois estão ali para serem alçados e derrubados, e seguem uns aos outros em número espantoso, numa variedade e contraditoriedade que deveria causar assombro, se nos ocorresse um dia a ideia de passar todos em revista ao mesmo tempo. Um ou outro desses ídolos ascende à posição de um deus, resiste e é poupado — este permanece inatacável. Só o tempo atua sobre ele, não a nossa própria animosidade. Pode ser corroído pelo tempo, ou o solo sobre o qual se funda pode aos poucos erodir, mas mesmo assim, permanecerá, no todo, intacto, não perderá sua feição.
É de se imaginar a devastação que sofre esse santuário, que o homem traz em si, após algum tempo de vida. Nenhum arqueólogo poderia chegar a uma ideia razoável do edifício. Mesmo aquilo que permaneceu incólume, as imagens de deuses ainda reconhecíveis, já forma, por si só, um panteão enigmático. Mas o arqueólogo encontraria ainda ruínas e mais ruínas, cada vez mais espantosas e fantásticas. Como poderia ele compreender porque justamente estas acumulam-se sobre aquelas? A única coisa que possuem em comum é o modo como foram destruídas: assim, ele só poderia inferir um único dado, ou seja, que foi sempre a ira do mesmo bárbaro a causadora de semelhante devastação.”
Elias Canetti, in A consciência das palavras

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