“De
uma coisa posso me orgulhar, caro neto: poucos chegam, como eu, a uma
idade tão avançada, àquela idade que as pessoas costumam chamar de
provecta. Mais: poucos mantêm tamanha lucidez. Não estou falando só
em raciocinar, em pensar; estou falando em lembrar. Coisa importante,
lembrar. Aquela coisa de “recordar é viver” não passa,
naturalmente, de um lugar-comum que jovens como você considerariam
até algo meio burro: se a gente se dedica a recordar, quanto tempo
sobra para a vida propriamente dita? A vida, que, para vocês,
transcorre principalmente no mundo exterior, no relacionamento com os
outros? Esse cálculo precisa levar em conta a expectativa de vida,
precisa quantificar (como?) prazeres e emoções. É difícil de
fazer, exige uma contabilidade especial que não está ao alcance nem
mesmo das pessoas vividas e supostamente sábias. Que eu saiba, não
há nenhum programa de computador que possa ajudar — e, mesmo que
houvesse, eu não saberia usá-lo, sou avesso a essas coisas. Vejo-me
diante de uma espinhosa tarefa: combinar muito bem a vivência
interior, representada sobretudo pela recordação e pela reflexão,
com a vivência exterior, inevitavelmente limitada pela solidão,
pela incapacidade física, pelo fato de que tenho mais amigos entre
os mortos do que entre os vivos. E, de novo, qual a fórmula adequada
para essa combinação? Setenta por cento de vivência interior com
trinta por cento de vivência exterior? Quarenta por cento de
interior com sessenta por cento de exterior? O clássico meio a meio?
Ou quem sabe quarenta e cinco por cento de cada — os dez por cento
que sobram ficando reservados para aquele misterioso e indefinido
território que não é nem interior nem exterior, mas que pode estar
em cima, embaixo, ou em dimensão nenhuma?
Não
sei. Só sei que recordar é bom, e é das poucas possibilidades que
me restam, de modo que recordo. É uma espécie de exercício
emocional, é um estímulo para os meus cansados neurônios, mas é
sobretudo um prazer. Um prazer melancólico, decerto, mas um prazer,
sim, resultante da facilidade com que evoco pessoas, acontecimentos,
lugares, uma facilidade que às vezes surpreende a mim próprio. Para
alguns, mesmo não muito velhos, o rio da memória é um curso de
água barrenta que flui, lento e ominoso, trazendo destroços,
detritos, cadáveres, restos disso ou daquilo; para mim, não: é uma
vigorosa corrente de água límpida e fresca. Dos barquinhos que nela
alegres navegam, lembranças, às vezes melancólicas, mas em geral
risonhas, acenam-me, gentis, amistosas. Estou falando, claro, de
memórias remotas, daquelas que estão ligadas à minha juventude. As
coisas do cotidiano, eu as esqueço com a maior facilidade. Esqueço
de apagar a luz, esqueço onde larguei o relógio, esqueço de dar a
descarga no vaso sanitário, esqueço até os nomes das pessoas da
casa geriátrica onde resido — por opção minha, devo dizer: meus
filhos prefeririam que eu continuasse no apartamento, ou então que
fosse morar com eles, coisa que recusei: não quero dar trabalho a
ninguém.
Esquecer,
meu neto, é um truque que a natureza usa para nos desligar aos
poucos da realidade da existência. Mas não precisamos encarar esse
fato como coisa inevitável, mesmo porque lembrar pode ser uma coisa
agradável, particularmente quando se traduz na possibilidade de
narrar recordações para uma pessoa como tu, meu neto. Considero-te
especial, mesmo que nossos encontros tenham sido raros, ou talvez
exatamente por causa disso. Vimo-nos cinco ou seis vezes, não mais,
e sempre rapidamente. Eu sabia que isso iria acontecer: quando teu
pai, jovem médico, foi para os Estados Unidos, tive o pressentimento
de que não mais voltaria. Dito e feito: fez uma carreira
bem-sucedida, casou com uma colega médica, tornou-se tão americano
que até fala com sotaque. Só retornava esporadicamente e por curtos
períodos. Alegava que tinha compromissos, mas o fato é que
aparentemente não se sentia muito bem aqui. Por quê, não sei, e
nunca lhe perguntei. As relações entre pais e filhos muitas vezes
estão envoltas em bruma misteriosa, na qual realidade e fantasia se
misturam. Eu mesmo pouco posso te dizer de minha mãe (com quem, no
entanto, convivi bastante e numa fase difícil de minha vida), e
menos ainda de meu pai. Espero que entre nós seja diferente, e a
carta que me mandaste reforça essa expectativa. Aliás, parabéns
pelo teu português. Para quem nasceu e se criou nos Estados Unidos,
é excelente. Teu pai se preocupou em te manter ligado às tuas
raízes brasileiras, coisa que sempre admirei.”
Moacyr
Scliar,
in Eu
vos abraço, milhões
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