sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Coisa importante: lembrar


De uma coisa posso me orgulhar, caro neto: poucos chegam, como eu, a uma idade tão avançada, àquela idade que as pessoas costumam chamar de provecta. Mais: poucos mantêm tamanha lucidez. Não estou falando só em raciocinar, em pensar; estou falando em lembrar. Coisa importante, lembrar. Aquela coisa de “recordar é viver” não passa, naturalmente, de um lugar-comum que jovens como você considerariam até algo meio burro: se a gente se dedica a recordar, quanto tempo sobra para a vida propriamente dita? A vida, que, para vocês, transcorre principalmente no mundo exterior, no relacionamento com os outros? Esse cálculo precisa levar em conta a expectativa de vida, precisa quantificar (como?) prazeres e emoções. É difícil de fazer, exige uma contabilidade especial que não está ao alcance nem mesmo das pessoas vividas e supostamente sábias. Que eu saiba, não há nenhum programa de computador que possa ajudar — e, mesmo que houvesse, eu não saberia usá-lo, sou avesso a essas coisas. Vejo-me diante de uma espinhosa tarefa: combinar muito bem a vivência interior, representada sobretudo pela recordação e pela reflexão, com a vivência exterior, inevitavelmente limitada pela solidão, pela incapacidade física, pelo fato de que tenho mais amigos entre os mortos do que entre os vivos. E, de novo, qual a fórmula adequada para essa combinação? Setenta por cento de vivência interior com trinta por cento de vivência exterior? Quarenta por cento de interior com sessenta por cento de exterior? O clássico meio a meio? Ou quem sabe quarenta e cinco por cento de cada — os dez por cento que sobram ficando reservados para aquele misterioso e indefinido território que não é nem interior nem exterior, mas que pode estar em cima, embaixo, ou em dimensão nenhuma?
Não sei. Só sei que recordar é bom, e é das poucas possibilidades que me restam, de modo que recordo. É uma espécie de exercício emocional, é um estímulo para os meus cansados neurônios, mas é sobretudo um prazer. Um prazer melancólico, decerto, mas um prazer, sim, resultante da facilidade com que evoco pessoas, acontecimentos, lugares, uma facilidade que às vezes surpreende a mim próprio. Para alguns, mesmo não muito velhos, o rio da memória é um curso de água barrenta que flui, lento e ominoso, trazendo destroços, detritos, cadáveres, restos disso ou daquilo; para mim, não: é uma vigorosa corrente de água límpida e fresca. Dos barquinhos que nela alegres navegam, lembranças, às vezes melancólicas, mas em geral risonhas, acenam-me, gentis, amistosas. Estou falando, claro, de memórias remotas, daquelas que estão ligadas à minha juventude. As coisas do cotidiano, eu as esqueço com a maior facilidade. Esqueço de apagar a luz, esqueço onde larguei o relógio, esqueço de dar a descarga no vaso sanitário, esqueço até os nomes das pessoas da casa geriátrica onde resido — por opção minha, devo dizer: meus filhos prefeririam que eu continuasse no apartamento, ou então que fosse morar com eles, coisa que recusei: não quero dar trabalho a ninguém.
Esquecer, meu neto, é um truque que a natureza usa para nos desligar aos poucos da realidade da existência. Mas não precisamos encarar esse fato como coisa inevitável, mesmo porque lembrar pode ser uma coisa agradável, particularmente quando se traduz na possibilidade de narrar recordações para uma pessoa como tu, meu neto. Considero-te especial, mesmo que nossos encontros tenham sido raros, ou talvez exatamente por causa disso. Vimo-nos cinco ou seis vezes, não mais, e sempre rapidamente. Eu sabia que isso iria acontecer: quando teu pai, jovem médico, foi para os Estados Unidos, tive o pressentimento de que não mais voltaria. Dito e feito: fez uma carreira bem-sucedida, casou com uma colega médica, tornou-se tão americano que até fala com sotaque. Só retornava esporadicamente e por curtos períodos. Alegava que tinha compromissos, mas o fato é que aparentemente não se sentia muito bem aqui. Por quê, não sei, e nunca lhe perguntei. As relações entre pais e filhos muitas vezes estão envoltas em bruma misteriosa, na qual realidade e fantasia se misturam. Eu mesmo pouco posso te dizer de minha mãe (com quem, no entanto, convivi bastante e numa fase difícil de minha vida), e menos ainda de meu pai. Espero que entre nós seja diferente, e a carta que me mandaste reforça essa expectativa. Aliás, parabéns pelo teu português. Para quem nasceu e se criou nos Estados Unidos, é excelente. Teu pai se preocupou em te manter ligado às tuas raízes brasileiras, coisa que sempre admirei.”
Moacyr Scliar, in Eu vos abraço, milhões

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