Paris
— Chamam-se ajoncs essas flores amarelas circulando os
trilhos do TGV que me leva a Bordeaux. Não há nada no mundo tão
amarelo quanto um ajonc, penso. E estendo as pernas enquanto
fica para trás uma Paris quase em chamas, com milhares de estudantes
em fúria pelas ruas. “Les jeunes, les jeunes en colère!”,
gritam os franceses, enquanto a polícia baixa o pau no Boulevard
Saint-Michel, carros são queimados e esbarro numa garota com a frase
“pas de future!” pintada na cara. O trem deixa a Gare de
Montparnasse, ligo o walkman para ouvir Barbara cantando
“Marienbad” . Viajando para a Aquitânia, perto da Espanha, me
afasto cada vez mais de Marienbad, cidade checa aonde nunca fui. A
cólera dos estudantes ficou longe. Sinto-me solidário, voilà,
mas ser estrangeiro me dá a liberdade enorme de ser apenas
espectador. E para falar a verdade — a esta altura da vida, pouco
além do meio da estrada — estou mais interessado em encontrar
velhos em paz do que jovens em fúria…
Claire
Cayron, minha tradutora francesa, me espera com um convite: visitar
sua amiga Hélène, também tradutora, que mora na região de
Périgord. Os nomes não me dizem nada, mas tudo sempre é bom chez
Claire, eu concordo. O crepúsculo lentíssimo de abril desce atrás
dos vidros, ouvimos Chico Buarque e espiamos as corças que às vezes
saem do bosque, sempre nessa hora, para chegar perto da casa. Como se
confiassem em nós, humanos medonhos. Pode ser tão doce a França,
sabia?
Na
manhã seguinte tomamos o carro pela estrada que persegue o rio
Dordogne. Faço perguntas como uma criança ignorante: Périgord é a
região onde foram encontrados os restos do homem de Cro-Magnon,
nosso antepassado pré-histórico. Lugar sombrio, de energia estranha
brotando de rochas, furnas, casas coladas às pedras. E Hélène,
nessa mania francesa de afrancesar todos os nomes, é Helen Lane, a
grande tradutora dos grandes latino-americanos (Octavio Paz, Vargas
Llosa, Roa Bastos, García Márquez, Juan José Saer e muitos outros)
para o inglês. Vive só numa cabana modestíssima, no fundo de um
vale perdido no Périgord. Perto da origem? Na frente da casa esvoaça
uma bandeira vermelha com dizeres em tibetano. Helen é budista, tem
84 anos.
Mas
a pessoa que nos abre a porta, pequenina e sólida, de cabelos
brancos e lisos cortados curtos com uma franja, tem um sorriso de
menina. Olhos negros redondos, atentíssimos. Jovens, e sem cólera
alguma. Ao lado do fogão ronrona seu companheiro, o gato Dagobert.
Então, de repente, por um milagre feito faísca na cozinha dessa
casa cheia de livros, ficamos subitamente os três — Helen,
Dagobert, eu — amigos íntimos. Ela fala em francês, inglês,
espanhol, italiano, e para minha surpresa até em português
(traduziu Márcio de Souza e Nélida Piñon, de cuja generosidade
lembra com carinho). Viveu no México, no Tibete, está de mudança
para Albuquerque. Tem osteoporose, mostra o braço enfaixado enquanto
serve o almoço que preparou e descreve rindo uma radiograf i a de
sua própria coluna — “tão transparente, parecia de vidro”.
Na
partida, ganho um presente: os poemas de Ryokan, monge budista zen do
século XVIII. Desde então leio e releio este poema — no livro, em
japonês e inglês — que tento precariamente traduzir para o
português e deixar para vocês como outro presente, para que pensem
em Helen Lane:
“Pensar
viagens
toda
noite me leva
a
um pouso diferente mas o sonho que sonho
é
sempre o mesmo: um lar.”
Lindo,
não? Ah: pelos campos da França, os ajoncs continuam
amarelos.
Caio
Fernando Abreu, in Pequenas epifanias
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