quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

A filosofia de uma osga

Venho estudando desde há semanas José Buchmann. Observo-o a mudar. Não é o mesmo homem que entrou nesta casa, seis, sete meses atrás. Algo, da mesma natureza poderosa das metamorfoses, vem operando no seu íntimo. É talvez, como nas crisálidas, o secreto alvoroço das enzimas dissolvendo órgãos. Podem argumentar que todos estamos em constante mutação. Sim, também eu não sou o mesmo de ontem. A única coisa que em mim não muda é o meu passado: a memória do meu passado humano. O passado costuma ser estável, está sempre lá, belo ou terrível, e lá ficará para sempre.
(Eu acreditava nisto antes de conhecer Félix Ventura.)
Ao chegarmos a velhos apenas nos resta a certeza de que em breve seremos ainda mais velhos. Dizer de alguém que é jovem não me parece uma expressão correcta. Alguém está jovem, isso sim, da mesma forma que um copo se mantém intacto momentos antes de se estilhaçar no chão. Mas perdoem-me a deriva; é nisto que dá quando uma osga se põe a filosofar. Voltemos, pois, a José Buchmann. Não estou a sugerir que dentro de alguns dias irrompa de dentro dele, sacudindo grandes asas multicores, uma imensa borboleta. Refiro-me a alterações mais subtis. Em primeiro lugar está a mudar de sotaque. Perdeu, vem perdendo, aquela pronúncia entre eslava e brasileira, meio doce, meio sibilante, que ao princípio tanto me desconcertou. Serve-se agora de um ritmo luandense, a condizer com as camisas de seda estampada e os sapatos desportivos que passou a vestir. Acho-o também mais expansivo. A rir, é já angolano. Além disso tirou o bigode. Ficou mais jovem. Apareceu-nos aqui em casa esta noite, após quase uma semana de ausência e mal o albino lhe abriu a porta, disparou:
Estive na Chibia!
Vinha febril. Sentou-se no majestoso trono de verga que o bisavô do albino trouxe do Brasil. Cruzou as pernas, descruzou-as. Pediu um uísque. O meu amigo serviu-o, aborrecido. Santo Deus, o que fora ele fazer à Chibia?
Fui visitar a campa do meu pai.
Como?! O outro engasgou-se. Qual pai, o fictício Mateus Buchmann?
O meu pai! Mateus Buchmann pode ser uma ficção sua, aliás urdida com muita classe. Mas a campa, juro!, essa é bem real.
Abriu um envelope e tirou lá de dentro uma dúzia de fotografias, a cores, que espalhou sobre o tampo em vidro da pequena mesa de mogno. Na primeira imagem cabia um cemitério; na segunda podia ler-se a lápide de uma das campas: “Mateus Buchmann / 1905-1978.” As outras eram imagens da vila:
a) Casas baixas.
b) Ruas direitas, abertas com largueza para uma paisagem verde.
c) Ruas direitas, abertas com largueza para a paz imensa de um céu sem nuvens.
d) Galinhas ciscando em meio à poeira vermelha.
e) Um velho (mulato), sentado à mesa triste de um bar, o olhar pousado numa garrafa vazia.
f) Flores murchas num vaso. g) Uma enorme gaiola, sem pássaros.
h) Um par de botas, muito gastas, aguardando à soleira de uma casa.
Havia em todas as fotografias algo de crepuscular. Era o fim, ou era quase o fim, só não se percebia de quê.
Eu insisti consigo, pedi-lhe, avisei-o para que nunca fosse à Chibia!
Bem sei. Por isso fui...
O meu amigo abanou a cabeça. Não consegui perceber se estava furioso ou divertido ou ambas as coisas. Estudou demoradamente a fotografia da campa. Sorriu desarmado:
Bom trabalho. E olhe que lhe falo como profissional. Dou-lhe os parabéns!
José Eduardo Agualusa, in O vendedor de passados

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