Venho
estudando desde há semanas José Buchmann. Observo-o a mudar. Não é
o mesmo homem que entrou nesta casa, seis, sete meses atrás. Algo,
da mesma natureza poderosa das metamorfoses, vem operando no seu
íntimo. É talvez, como nas crisálidas, o secreto alvoroço das
enzimas dissolvendo órgãos. Podem argumentar que todos estamos em
constante mutação. Sim, também eu não sou o mesmo de ontem. A
única coisa que em mim não muda é o meu passado: a memória do meu
passado humano. O passado costuma ser estável, está sempre lá,
belo ou terrível, e lá ficará para sempre.
(Eu
acreditava nisto antes de conhecer Félix Ventura.)
Ao
chegarmos a velhos apenas nos resta a certeza de que em breve seremos
ainda mais velhos. Dizer de alguém que é jovem não me parece uma
expressão correcta. Alguém está jovem, isso sim, da mesma forma
que um copo se mantém intacto momentos antes de se estilhaçar no
chão. Mas perdoem-me a deriva; é nisto que dá quando uma osga se
põe a filosofar. Voltemos, pois, a José Buchmann. Não estou a
sugerir que dentro de alguns dias irrompa de dentro dele, sacudindo
grandes asas multicores, uma imensa borboleta. Refiro-me a alterações
mais subtis. Em primeiro lugar está a mudar de sotaque. Perdeu, vem
perdendo, aquela pronúncia entre eslava e brasileira, meio doce,
meio sibilante, que ao princípio tanto me desconcertou. Serve-se
agora de um ritmo luandense, a condizer com as camisas de seda
estampada e os sapatos desportivos que passou a vestir. Acho-o também
mais expansivo. A rir, é já angolano. Além disso tirou o bigode.
Ficou mais jovem. Apareceu-nos aqui em casa esta noite, após quase
uma semana de ausência e mal o albino lhe abriu a porta, disparou:
–
Estive na Chibia!
Vinha
febril. Sentou-se no majestoso trono de verga que o bisavô do albino
trouxe do Brasil. Cruzou as pernas, descruzou-as. Pediu um uísque. O
meu amigo serviu-o, aborrecido. Santo Deus, o que fora ele fazer à
Chibia?
– Fui
visitar a campa do meu pai.
Como?!
O outro engasgou-se. Qual pai, o fictício Mateus Buchmann?
– O
meu pai! Mateus Buchmann pode ser uma ficção sua, aliás urdida com
muita classe. Mas a campa, juro!, essa é bem real.
Abriu
um envelope e tirou lá de dentro uma dúzia de fotografias, a cores,
que espalhou sobre o tampo em vidro da pequena mesa de mogno. Na
primeira imagem cabia um cemitério; na segunda podia ler-se a lápide
de uma das campas: “Mateus Buchmann / 1905-1978.” As outras eram
imagens da vila:
a)
Casas baixas.
b)
Ruas direitas, abertas com largueza para uma paisagem verde.
c)
Ruas direitas, abertas com largueza para a paz imensa de um céu sem
nuvens.
d)
Galinhas ciscando em meio à poeira vermelha.
e)
Um velho (mulato), sentado à mesa triste de um bar, o olhar pousado
numa garrafa vazia.
f)
Flores murchas num vaso. g) Uma enorme gaiola, sem pássaros.
h)
Um par de botas, muito gastas, aguardando à soleira de uma casa.
Havia
em todas as fotografias algo de crepuscular. Era o fim, ou era quase
o fim, só não se percebia de quê.
– Eu
insisti consigo, pedi-lhe, avisei-o para que nunca fosse à Chibia!
– Bem
sei. Por isso fui...
O
meu amigo abanou a cabeça. Não consegui perceber se estava furioso
ou divertido ou ambas as coisas. Estudou demoradamente a fotografia
da campa. Sorriu desarmado:
– Bom
trabalho. E olhe que lhe falo como profissional. Dou-lhe os parabéns!
José
Eduardo Agualusa, in O vendedor de passados
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