Há
mulheres que procuram um homem que lhes abra o mundo. Outras buscam
um que as tire do mundo. A maior parte, porém, acaba se unindo a
alguém que lhes tira o mundo.
Este
foi o destino de Vivalma, mulher entre as mulheres, cheia de
desgraça, nem o Senhor punha oração nela. Mulher gorda, exibia os
seios em cacho, carnes de muito volume e herança. Tanta redondeza,
aliás, suprimia a curva. Vivalma era esposa do latoeiro Xidakwa,
homem zangadiço e com nervo florindo na pele.
A
volumosa senhora saía de manhã para o serviço de sentar no bazar,
em banca rente ao chão. Eram tão poucas e abreviadas as coisas que
vendia que ela nunca fazia as contas. A vida é um por enquanto no
que há-de vir. Vivalma se deixava no assento, mais vagarosa que
orvalho. Até a mão dela poupava esforços, num mesmo gesto de ida e
volta: para lá, enxotava mosca; para cá, chamava cliente. Seus
braços eram tão curtos que nem era capaz de arregaçar as mangas.
Pois
Vivalma se dava a conhecer pelo modo como zarolhava, olho deitado
abaixo. Razão de que o marido lhe batia, por dádiva daquela palha.
Nem carecia de motivo: o murro era a língua dele, vingança de lhe
fugirem desejos de sua vista. Todos se admiravam: Xidakwa até que
parecia tranquilinho, sonholento, incapaz de violência. Mas os
hematombos no rosto da mulher, o sangue pisado lhe enchendo a
quotidiana pálpebra dela, eram provas indesmentíveis. Todos punham
a devida pena na vendecora. Tão batidinha, coitada. E ainda por
cima, sempre no mesmo olho. As colegas lhe sugeriam:
— Você
podia pedir a ele para variar-se: cada vez num lado, cada vez no
outro.
Ela
sorria, parecia isenta de pensamento. A gordura era sua única
resposta. Ela sabia: mais se engorda, menos se sofre. Com o volume a
dor vai ficando mais e mais distante, perdida lá nas curvas das
entranhas. As vendedeiras lhe puxavam o brio:
— Mas
você Vivalma, nem viva nem alma?
Quem
fala consente? E a mulher gorda suspirava:
— Deus
me reze, minhas amigas.
Ela
é que sabia. Xidakwa, seu marido, enganava era nas aparências. Ele
era um mosca-viva, esgazelado, tratando-lhe a berro e fogo. Outros já
lhe tinham chamado as atenções. Mas o latoeiro varria os reparos,
explicando:
— A
vida é dura de mais para aceitar carícia: cabedal se cose é com
dedal.
As
colegas do bazar insistiam:
— Ora,
Vivalminha, lhe deixe de vez, esse homem não vale uma vida. Você é
como o nariz: toda a vida no meio, sem nunca fazer escolha.
Em
silêncio, Vivalma amealhava suas razões. Não que houvesse segredo:
para ela, aquela era a ordem do mundo, estavam-se cumprindo destinos.
Nem ela nem ele teriam tempo para uma outra ocasião. O mundo dele
era de outra razão, um confim. Ele lhe queria à razão de pontapés?
Que fosse. Ela não tinha querer nem ser. E quem não tem vontade,
não tem lamento.
E
era sem lamento que ela regressava a casa, tardes a fio, sempre
última das vendedoras. Demorava os vinte e quatro ponteiros no
caminho. Perto de casa colhia uma flor mas, ao entrar no portão, a
deitava no chão. No pátio se acumulavam pétalas brancas, secreto e
perfumado lençol da noiva que nunca houve.
Até
que, um dia, o olho negro de Vivalma se apresentou piorado, em feio e
ampliado derrame. As vendeiras transbordaram-se. Não, aquilo era de
mais! E se conluiaram para desafiar o marido violento. Sem que
Vivalma suspeitasse, umas delas lá foram a casa de Xidakwa. Enquanto
pisavam aquele mar de flores desfeitas souberam o espantável: que o
dito marido, Xidakwa, há tempo que se fora, amanteado com outra. As
vizinhas diziam e comprovavam. Os tais derrames que Vivalma exibia no
rosto eram por ela mesma fabricados, sem infligência de mais
ninguém.
As
vendedores regressaram ao bazar, caladas, sob uma bategazinha de
Verão. A chuva caía tristonha como um luto, cada gota uma mulher em
Outono, chuviuvinha. Ingrata é a morte que não agradece a ninguém.
Vivalma teatrava, para que ninguém suspeitasse de seu abandono? Pois
as amigas se compustararam em igual disfarce. Na Natureza ninguém se
perde, tudo inventa outra forma.
Sucedeu,
por astúcia do acaso, o seguinte percalço: a nova mulher de Xidakwa
ouviu dizer que Vivalma continuava a revalidar suas equimoças, olho
da cor do chão. Se assim era, quem mais poderia ser o batedor senão
o dito latoeiro? E a moça, mais nascida que a gorda vendedeira,
contraverteu caminho e foi agasalhar outra felicidade.
O
homem, desconcertado, voltou a casa para afinar contas com Vivalma.
Se admirou de ver o pátio varrido, limpo das habituais florinhas. Os
vizinhos se surpreenderam, depois, a ouvir os gritos dele, batendo em
sua original esposa.
Manhãzinha
seguinte, viram Vivalma sair de casa, canteirando pelo jardim, a
encher as mãos de petalazitas brancas. Haveria quê nessas flores:
alegria de quem se ilude vencer? Ou eram pequenitas raivas,
desapercebidas como lágrimas em seu rosto molhado? Só ela, a
matinal vendedeira, sabe do valor dessas minusculinhas naturezas em
seus dedos decepadas. Dizem, finalmente, que sob o véu de seus
enegrecidos olhos havia, nessa manhã, uns fiapos de satisfeição.
Poderá ela, alguma vez, ser sabida? Se, como diz nenhuma canção, a
água corre com saudade do que nunca teve: o total, imenso mar.
Mia
Couto, in Contos do nascer da Terra
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