segunda-feira, 2 de novembro de 2015

O pregador

O homem lançou um olhar prolongado a Joad. Seus olhos castanhos pareciam inundados pela luz, a íris salpicada de pequenos pontos dourados. Os músculos duros do pescoço se lhe retesaram mais.
Joad permaneceu na sombra, quieto, a luz lançando manchas no solo. Tirou então o boné, enxugou com ele o rosto suado e deixou-o cair no chão, juntamente com o casaco enrolado.
O homem descruzou as pernas e arranhou o chão com os dedos do pé.
Joad disse então:
Mas tá um calor dos diabos nessa estrada.
O homem o fitou, interrogativo:
Escute, você não é o Tom Joad, filho do velho Tom?
Sou, sim — anuiu Joad. — Vou indo pra casa.
Aposto que você não se lembra de mim — disse o homem. Sorriu, exibindo uns dentes grandes, cavalares. — Não, não pode mesmo se lembrar. Você estava sempre ocupado em puxar as trancinhas de uma menina quando eu lhe ministrava a Sagrada Comunhão. Parecia até que queria arrancar os cabelos da menina. Talvez não se lembre mais, mas eu me lembro bem. Tanto você como a menina, por castigo, vieram juntos à presença de Jesus; foram batizados juntos nas valas de irrigação. Berravam e se debatiam feito dois gatinhos bravos.
Joad olhou-o pensativamente e desandou a rir.
Ah, já sei. O senhor é o pregador. Sim senhor, agora me lembro. Não faz uma hora, tava até falando do senhor.
Eu era o pregador — falou o homem, grave. — Reverendo Jim Casy, da Sarça Ardente, para glorificar o nome de Jesus. Costumava ter a vala de irrigação tão cheia de pecadores que metade deles morria afogada. Sim, mas isso já acabou. Agora sou apenas Jim Casy... e nada mais. E cheio de ideias pecaminosas, que contudo me parecem bastante razoáveis.
A gente tem que ter ideias, quando se vive pensando o tempo todo — disse Joad. — Eu me lembro bem do senhor. Fazia umas pregações muito boas. Me lembro até que uma vez deu o sermão todo andando de quatro, gritando como que possuído pelo demônio. Minha mãe gostava muito do senhor. E a vó disse que o senhor era dominado pelo Espírito.
Sua mão explorou o bolso do casaco e retirou a garrafinha de uísque. A tartaruguinha moveu uma perna, mas Tom a envolveu com mais cuidado. Destampou o frasco e convidou o outro:
Quer um trago?
Casy pegou a garrafinha e ficou a segurá-la, pensativo.
Agora não faço mais sermões. O Espírito não reside mais na minha gente; pior que isso: o Espírito não mais reside em mim. É claro que de vez em quando o Espírito me toca, e aí eu faço uma oração, ou então quando me dão comida, retribuo com uma bênção. Mas meu coração é fraco.
Joad esfregou novamente o suor do rosto com o boné.
Mas o senhor não é assim tão santo para recusar um trago, é? — disse.
Casy só agora pareceu enxergar a garrafa que segurava. Encostou-lhe o gargalo aos lábios e tomou três longos goles.
É uma boa bebida — elogiou.
Tem que ser boa — disse Joad. — É da fábrica. Custou um dólar.
Casy tomou outro gole antes de entregar a garrafa.
Sim, senhor! — falou. — Sim, senhor!
Joad tomou-lha e, por polidez, não limpou o gargalo com o punho antes de beber também. Pôs-se de cócoras e guardou a garrafinha junto do casaco. Seus dedos encontraram uma vara fina, boa para escrever seus pensamentos no chão. Varreu as folhas, desenhou um quadrado e alisou a poeira. E então começou a desenhar pequenos círculos.
Faz tempo que não vejo o senhor.
Ninguém tem me visto — disse o pregador. — Tenho andado por aí sozinho, pensando. O Espírito continua em mim com a mesma força, só que já não é mais o mesmo. Não tenho mais aquela certeza sobre uma porção de coisas.
John Steinbeck, In As vinhas da ira

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