“Que
estranho bicho o homem. O que ele mais deseja no convívio
inter-humano não é afinal a paz, a concórdia, o sossego coletivo.
O que ele deseja realmente é a guerra, o risco ao menos disso, e no
fundo o desastre, o infortúnio. Ele não foi feito para a conquista
de seja o que for, mas só para o conquistar seja o que for. Poucos
homens afirmaram que a guerra é um bem (Hegel, por exemplo), mas é
isso que no fundo desejam. A guerra é o perigo, o desafio ao
destino, a possibilidade de triunfo, mas sobretudo a inquietação em
ação. Da paz se diz que é podre,
porque é o estarmos recaídos sobre nós, a inatividade, a derrota
que sobrevém não apenas ao que ficou derrotado, mas ainda ou
sobretudo ao que venceu. O que ficou derrotado é o mais feliz pela
necessidade iniludível de tentar de novo a sorte. Mas o que venceu
não tem paz senão por algum tempo no seu coração alvoroçado. A
guerra é o estado natural do bicho humano, ele não pode suportar a
felicidade a que aspirou. Como o grupo de futebol, qualquer vitória
alcançada é o estímulo insuportável para vencer outra vez.
Imaginar
o mundo pacificado em aceitação e contentamento consigo é apenas o
mito que justifique a continuação da guerra. A paz é insuportável
como a pasmaceira. Nas situações mais vulgares, nós vemos a
imperiosa necessidade de desafiar, irritar, provocar, agredir, sem
razão nenhuma que não seja a de agitar a quietude, destruir a
estagnação, fazer surgir o risco, a aventura. É o que leva o
jogador a jogar, mesmo que não necessite de ganhar, pelo puro prazer
de saborear o poder perder para a hipótese de não perder e ganhar.
A excelência de nós próprios só se entende se se afirmar sobre o
que o não é.
Numa
sociedade de ricaços ninguém era feliz. Seria então necessário
que por qualquer coisa houvesse alguns felizes sobre a infelicidade
dos outros. O homem é o lobo do homem para que este possa ser o
cordeiro daquele. Nenhuma luta se destina a criar a justiça, mas
apenas a instaurar a injustiça. O homem é um ser sem remédio. Todo
o remédio que ele quiser inventar é só para sobrepor a razão ao
irracional que de fato é. Toda a história das guerras é uma
parada de comédia para iludir a sua invencível condição de
tragédia. A verdade dele é o crime. E tudo o mais é um pretexto
para o disfarçar. A fábula do lobo e do cordeiro já disse tudo. A
superioridade do homem sobre o lobo é que ele tem mais imaginação
para inventar razões. A superioridade do homem sobre o lobo é que
ele tem
mais hábitos de educação. E a razão é uma forma de sermos
educados.”
Vergílio
Ferreira,
in
Conta-Corrente IV
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