“A
não ser por estes aborrecimentos, não
me sentia muito infeliz. Todo o problema, ainda uma vez, estava em
matar o tempo. Acabei por não me entediar mais, a partir do instante
em que aprendi a recordar. Punha-me às vezes a pensar no meu quarto
e, na imaginação, partia de um canto e dava a volta ao quarto,
enumerando mentalmente tudo o que encontrava pelo caminho. A
princípio, isto durava pouco. Mas a cada vez que recomeçava, era um
pouco mais longo, pois lembrava-me de cada móvel e, para cada móvel,
de cada objeto, de todos os detalhes e, para os próprios detalhes,
de uma incrustação, de uma rachadura, de um bordo lascado, da cor
que tinham, ou de sua textura. Tentava, ao mesmo tempo, não perder o
fio deste inventário e fazer uma enumeração completa. De tal forma
que, ao fim de algumas semanas, conseguia passar horas apenas
enumerando o que se encontrava no meu quarto. Assim, quanto mais
pensava, mais coisas esquecidas ia tirando da memória. Compreendi,
então, que um homem que houvesse vivido um único dia, poderia sem
dificuldade passar cem anos numa prisão. Teria recordações
suficientes para não se entediar. De certo modo, isto era uma
vantagem.”
Albert Camus, in O estrangeiro
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