“Meu
avô tinha um encantamento com as palavras. Eu fui aprendendo com ele
a cultivar esse encantamento.
Lembro
que na casa dele tinha uma copa muito grande. Ele ficava sentado na
ponta da mesa fazendo cigarros para o dia seguinte. Havia um Cristo
crucificado na parede. De vez em quando, ele levantava a cabeça e
falava para mim: “Sofreu, né? Sofreu demais. Sofreu tanto. Mas
morreu gordo, você não acha?”.
Era
toda uma trama que me deslocava. Já fui criado com a metáfora. Tive
uma infância junto com as metáforas. Outra coisa que me ajuda na
literatura é ter nascido de sete meses. Fui sempre muito fraquinho.
Era miúdo, fraco, tratado com cuidado. Quando adoecia, a mãe
chamava o médico por via de dúvida. Mas por via de dúvida, ela
mandava benzer; e por via de dúvida, acendia uma vela; e por via de
dúvida, me dava um chá e eu, então, melhorava por via de dúvida.
Depois,
cheguei a uma conclusão: Quem sabe as coisas faz livro didático e
quem não sabe faz literatura. Se você tem uma coisa a afirmar, você
não tem que fazer literatura. Literatura é uma conversa sobre as
dúvidas. É uma conversa sobre as delicadezas, sobre as faltas. Não
é uma conversa crua como desejam as ciências exatas. A literatura é
mais delicada. Ela trabalha com a dúvida, com as incertezas, com as
inseguranças, com as faltas, que são coisas que nos unem.
Tive
uma infância rica. Tive um avô e uma experiência muito boa com
ele. A minha mãe era uma leitora. Não havia em casa literatura
infantil. Eu lia os livros que a minha mãe lia: A toutinenegra do moinho (Emílio Richebourg), As mulheres de bronze (Xavier de Montépin).
Também
ficou uma coisa que hoje conto sem problemas. Quando a minha mãe
morreu, eu tinha seis para sete anos. Ela ficou doente por muitos
anos. Eu sempre a conheci um pouco doente. Minha mãe cantava muito
bonito, ela era soprano. Quando a dor era muito forte, quando a dor
pesava muito, sabíamos que a morfina não era suficiente, a minha
mãe cantava. Ela cantava umas cantigas de Carlos Gomes. A voz dela
atravessava a casa e o quintal. Então, a gente sabia que ela estava
com muita dor.
Outro
dia, estava pensando que eu também, quando dói muito, escrevo. É a
mesma coisa. Quando pesa muito, eu escrevo. Hoje, não fico na janela
como meu avô ficava. Mas fico o tempo todo em frente ao Windows. Trocamos
os lugares, mas continuamos na janela.”
Bartolomeu
Campos de Queirós
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