terça-feira, 17 de novembro de 2015

Fui criado com a Metáfora

Meu avô tinha um encantamento com as palavras. Eu fui aprendendo com ele a cultivar esse encantamento.
Lembro que na casa dele tinha uma copa muito grande. Ele ficava sentado na ponta da mesa fazendo cigarros para o dia seguinte. Havia um Cristo crucificado na parede. De vez em quando, ele levantava a cabeça e falava para mim: “Sofreu, né? Sofreu demais. Sofreu tanto. Mas morreu gordo, você não acha?”.
Era toda uma trama que me deslocava. Já fui criado com a metáfora. Tive uma infância junto com as metáforas. Outra coisa que me ajuda na literatura é ter nascido de sete meses. Fui sempre muito fraquinho. Era miúdo, fraco, tratado com cuidado. Quando adoecia, a mãe chamava o médico por via de dúvida. Mas por via de dúvida, ela mandava benzer; e por via de dúvida, acendia uma vela; e por via de dúvida, me dava um chá e eu, então, melhorava por via de dúvida.
Depois, cheguei a uma conclusão: Quem sabe as coisas faz livro didático e quem não sabe faz literatura. Se você tem uma coisa a afirmar, você não tem que fazer literatura. Literatura é uma conversa sobre as dúvidas. É uma conversa sobre as delicadezas, sobre as faltas. Não é uma conversa crua como desejam as ciências exatas. A literatura é mais delicada. Ela trabalha com a dúvida, com as incertezas, com as inseguranças, com as faltas, que são coisas que nos unem.
Tive uma infância rica. Tive um avô e uma experiência muito boa com ele. A minha mãe era uma leitora. Não havia em casa literatura infantil. Eu lia os livros que a minha mãe lia: A toutinenegra do moinho (Emílio Richebourg), As mulheres de  bronze (Xavier de Montépin).
Também ficou uma coisa que hoje conto sem problemas. Quando a minha mãe morreu, eu tinha seis para sete anos. Ela ficou doente por muitos anos. Eu sempre a conheci um pouco doente. Minha mãe cantava muito bonito, ela era soprano. Quando a dor era muito forte, quando a dor pesava muito, sabíamos que a morfina não era suficiente, a minha mãe cantava. Ela cantava umas cantigas de Carlos Gomes. A voz dela atravessava a casa e o quintal. Então, a gente sabia que ela estava com muita dor.
Outro dia, estava pensando que eu também, quando dói muito, escrevo. É a mesma coisa. Quando pesa muito, eu escrevo. Hoje, não fico na janela como meu avô ficava. Mas fico o tempo todo em frente ao Windows. Trocamos os lugares, mas continuamos na janela.”
Bartolomeu Campos de Queirós

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