quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Por que escrevo

Desde muito pequeno, talvez com cinco ou seis anos de idade, eu sabia que, quando crescesse, seria escritor. Mais ou menos entre dezessete e vinte e quatro anos, tentei abandonar essa ideia, embora ciente de que estava indo contra minha verdadeira natureza e de que cedo ou tarde teria de tomar juízo e escrever livros.
Éramos três irmãos, eu o do meio, mas havia um intervalo de cinco anos entre um e outro, e mal vi meu pai antes dos oito anos. Por esse e outros motivos, eu era um pouco solitário e logo adquiri modos peculiares e pouco simpáticos, que me tornaram malquisto durante toda a minha vida escolar. Tinha o hábito de menino solitário de inventar histórias e travar conversas com pessoas imaginárias, e acho que desde o início minhas ambições literárias se confundiram com o sentimento de ser isolado e subestimado. Sabia que tinha habilidade com as palavras e capacidade para enfrentar fatos desagradáveis, e sentia que isso criava uma espécie de mundo particular em que podia compensar fracassos da vida cotidiana. No entanto, o volume de textos sérios — quer dizer, de intenção séria — que produzi ao longo da infância e da adolescência não somava meia dúzia de páginas. Aos quatro ou cinco anos escrevi meu primeiro poema, que minha mãe anotou enquanto eu ditava. Dele nada me lembro, a não ser que era sobre um tigre e o tigre tinha “dentes iguais a uma cadeira” — uma expressão razoável, mas acho que o poema era plágio de Tigre, tigre, de William Blake. Aos onze, quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial (1914-8), escrevi um poema patriótico que foi publicado no jornal local, e outro dois anos mais tarde, sobre a morte do marechal-de-campo Kitchner de Cartum [Horatio Herbert]. Um pouco mais velho, escrevi alguns maus “poemas sobre a natureza”, em estilo georgiano, em geral inacabados. Em duas ocasiões também tentei escrever um conto que foi um tremendo fracasso. Esse foi o total do pretenso trabalho sério que pus no papel ao longo de todos aqueles anos.
Entretanto, durante esse período sempre estive envolvido, de certo modo, em atividades literárias. Em primeiro lugar, havia as incumbências que eu produzia com rapidez e facilidade, sem muito prazer. Afora o trabalho escolar, escrevi vers d’occasion, poemas semicômicos que eu compunha com uma velocidade que hoje me parece espantosa — aos catorze, escrevi uma peça toda rimada, à maneira de Aristófanes, em cerca de uma semana —, e ajudei a editar revistas escolares, impressas e manuscritas. Essas revistas eram a coisa mais ridícula que se pode imaginar, e tive muito menos problemas com elas do que tenho hoje com o jornalismo mais pretensioso. Mas, paralelamente a tudo isso, por quinze anos ou mais fiz um tipo de exercício literário diferente: era a composição de uma “história” contínua sobre mim mesmo, uma espécie de diário que só existia na minha cabeça. Acredito que seja um hábito comum em crianças e adolescentes. Quando pequeno, eu costumava imaginar que era, digamos, Robin Hood, e me concebia como o herói de aventuras emocionantes, mas em pouco tempo minha história abandonou seu narcisismo primário e se tornou cada vez mais uma simples descrição do que eu fazia e das coisas que via. Durante minutos, às vezes, me passava pela cabeça este tipo de coisa: 'Ele abriu a porta com ímpeto e entrou na sala. Um feixe amarelo de luz solar, infiltrando-se pelas cortinas de musselina, incidia obliquamente sobre a mesa, onde uma caixa de fósforos, semiaberta, estava ao lado do tinteiro. Com a mão direita no bolso, ele foi até a janela. Lá embaixo, na rua, um gato malhado perseguia uma folha seca', e assim por diante. Esse hábito continuou até mais ou menos os vinte e cinco anos, durante toda a minha fase não literária. Embora tivesse de procurar, e de fato procurava, as palavras certas, parecia que me empenhava nesse esforço descritivo quase a contragosto, obedecendo a uma espécie de compulsão que vinha de fora. Suponho que a história tenha refletido os estilos dos vários escritores que admirei em diferentes épocas, mas, tanto quanto me lembro, tinha sempre a mesma qualidade descritiva meticulosa."
George Orwell, in Por que escrevo

Nenhum comentário:

Postar um comentário