O
que ela amava acima de tudo era fazer bonecos de barro — o que
ninguém lhe ensinara. — Trabalhava numa pequena calçada de
cimento em sombra, junto à última janela do porão. Quando queria
com muita força ia pela estrada até ao rio. Numa de suas margens,
escalável embora escorregadia, achava-se o melhor barro que alguém
poderia desejar: branco, maleável, pastoso: frio. Só em pegá-lo,
em sentir sua frescura delicada, alegrezinha e cega, aqueles pedaços
timidamente vivos, o coração da pessoa se enternecia úmido quase
ridículo. Virgínia cavava com os dedos aquela terra pálida e
lavada — na lata presa à cintura iam se reunindo os trechos
amorfos. O rio em pequenos gestos molhava-lhe os pés descalços e
ela mexia os dedos úmidos com excitação e clareza. As mãos
livres, ela então cuidadosamente galgava a margem até a extensão
plana. No pequeno pátio de cimento depunha a sua riqueza. Misturava
o barro à água, as pálpebras frementes de atenção —
concentrada, o corpo à escuta, ela podia obter uma porção exata de
barro e de água numa sabedoria que nascia naquele mesmo instante,
fresca e progressivamente criada. Conseguia uma matéria clara. e
tenra de onde se poderia modelar um mundo.
Como,
como explicar o milagre… Ela se amedrontava pensativa. Nada dizia,
não se movia, mas interiormente sem nenhuma palavra repetia: Eu não
sou nada, não tenho orgulho, tudo me pode acontecer; se quiser, me
impedirá de fazer a massa de barro; se quiser, pode me pisar, me
estragar tudo; eu sei que não sou nada. Era menos que uma visão,
era uma sensação no corpo, um pensamento assustado sobre o que lhe
permita conseguir tanto barro e água e diante de quem ela devia
humilhar-se com seriedade . Ela lhe agradecia com uma alegria
difícil, frágil e tensa; sentia em alguma coisa como o que não se
vê de olhos fechados. Mas o que não se vê de olhos fechados tem
uma existência e uma força, como o escuro, como a ausência —
compreendia-se ela, assentindo feroz e muda com a cabeça. Mas nada
sabia de si, passaria inocente e distraída pela sua realidade sem
reconhecê-la; como uma criança, como uma pessoa.
Depois
de obtida a matéria, numa queda de cansaço ela poderia perder a
vontade de fazer bonecos. Então ia vivendo para a frente como uma
menina.
Um
dia, porém, sentia seu corpo aberto e fino, e no fundo uma
serenidade que não se podia conter, ora se desconhecendo, ora
respirando trêmula de alegria, as coisas incompletas. Ela mesma
insone como luz — esgazeada, fugaz, vazia, mas no íntimo um ardor
que era vontade de guiar-se a uma só coisa, um interesse que fazia o
coração acelerar-se sem ritmo… de súbito, como era vago viver.
Tudo isso também poderia passar, a noite caindo repentinamente, a
escuridão fresca sobre o dia morno.
Mas
às vezes ela se lembrava do barro molhado, corria alegre e assustada
para o pátio: mergulhava os dedos naquela mistura fria, muda e
constante como uma espera; amassava, amassava, aos poucas ia
extraindo formas. Fazia crianças, cavalos, uma mãe com um filho,
uma mãe sozinha, uma menina fazendo coisas de barro, um menino
descansando, uma menina contente, uma menina vendo se ia chover, uma
flor, um cometa de cauda salpicada de areia lavada e faiscante, uma
flor murcha com sol por cima, o cemitério do Brejo Alto, uma moça
olhando… Muito mais, muito mais. Pequenas formas que nada
significavam, mas que eram na realidade misteriosas e calmas. Às
vezes alta como uma árvore alta, mas não eram árvores, m:to eram
nada…Ás vezes um pequeno objeto de forma quase estrelada, mas
sério e cansado como uma pessoa. Um trabalho que jamais acabaria,
isso era o que de mais bonito e atento ela já soubera. Pois se ela
podia fazer o que existia e o que não existia!…
Depois
de prontos, os bonecos eram colocados ao sol. Ninguém lhe ensinara,
mas ela os depositava nas manchas de sol no chão, manchas sem vento
nem ardor. O barro secava mansamente, conservava o tom claro, não
enrugava, não rachava. mesmo quando seco parecia delicado,
evanescente e úmido. E ela própria podia confundi-lo com o barro
pastoso. As figurinhas assim, pareciam rápidas, quase como se fossem
se desmanchar — e isso era como se elas fossem se movimentar.
Olhava para o boneco imóvel e mudo. Por amor ou apenas prosseguindo
o trabalho ela fechava os olhos e se concentrava numa força viva e
luminosa, da qualidade do perigo e da esperança, numa força de sede
que lhe percorria o corpo celeremente com um impulso que se destinava
à figura. Quando, enfim, se abandonava, seu fresco e cansado
bem-estar vinha de que ela podia enviar, embora não soubesse o que,
talvez. Sim ela às vezes possuía um gosto dentro do corpo, um gosto
alto e angustiante que tremia entre a força e o cansaço — era um
pensamento como sons ouvidos, uma flor no coração: Antes que ele se
dissolvesse, maciamente rápido, no seu ar interior, para sempre
fugitivo, ela tocava com os dedos num objeto, entregando-o. E, quando
queria dizer algo que vinha fino, obscuro e liso — e isso poderia
ser perigoso — ela encostava um dedo apenas, um dedo pálido,
polido e transparente, um dedo trêmulo de direção. No mais agudo e
doído do seu sentimento ela pensava: Sou feliz. Na verdade, ela o
era nesse instante, e se em vez de pensar: Sou feliz, procurava o
futuro, era porque, obscuramente, escolhia um movimento para a frente
que servisse de forma à sua sensação.
Assim
juntara uma procissão de coisas miúdas. Quedavam-se quase
despercebidas no seu quarto. Eram bonecos magrinhos e altos como ela
mesma. Minuciosos, ligeiramente desproporcionados, alegres, um pouco
perplexos — às vezes, subitamente, pareciam um homem coxo rindo.
Mesmo suas figurinhas mais suaves tinham uma imobilidade atenta como
a de um santo. E pareciam inclinar-se, para quem as olhava, também
como os santos. Virgínia podia fitá-las uma manhã inteira, que seu
amor e sua surpresa não diminuiriam.
—
Bonito…
bonito como uma coisinha molhada, dizia ela excedendo-se num ímpeto
imperceptível e doce.
Ela
observava: mesmo bem acabados, eles eram toscos como se pudessem
ainda ser trabalhados. Mas vagamente, ela pensava que nem ela nem
ninguém poderia tentar aperfeiçoá-los sem destruir sua linha de
nascimento . Era como se eles só pudessem se aperfeiçoar por si
mesmos, se isso fosse possível.
As
dificuldades surgiam como uma vida que vai crescendo. Seus bonecos,
pelo efeito do barro claro, eram pálidos. Se ela queria sombreá-los
não o conseguia com o auxílio da cor, e por força dessa
deficiência aprendeu a lhes dar sombra ainda por meio de forma.
Depois inventou uma liberdade: com uma folhinha seca sob um fino
traço de barro conseguia um vago colorido, triste assustada quase
inteiramente morto. Misturando barro à terra, obtinha ainda outro
material menos plástico, porém mais severo e solene. MAS COMO FAZER
O CÉU? Nem começar podia! Não queria nuvens — o que poderia
obter, pelo menos grosseiramente — mas o céu, o céu mesmo, com
sua existência, cor solta, ausência de cor. Ela descobriu que
precisava usar uma matéria mais leve que não pudesse sequer ser
apalpada, sentida, talvez apenas vista, quem sabe! Compreendeu que
isso ela conseguiria com tintas.
E
às vezes numa queda, como se tudo se purificasse, ela se contentava
em fazer uma superfície lisa, serena, unida, numa simplicidade fina
e tranquila.
Clarice
Lispector, in Revista Nordeste (Ano XIII, nº 2, julho de 1960,
Recife-PE)
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