Vórtice,
voragem, vertigem: qualquer abismo nas estrelas de papel brilhante no
teto.
Queria
tanto poder usar a palavra voragem. Poder não, não quero poder
nenhum, queria saber. Saber não, não quero saber nada, queria
conseguir. Conseguir também não — sem esforço, é como eu
queria. Queria sentir, tão dentro, tão fundo que quando ela, a
palavra, viesse à tona, desviaria da razão e evitaria o intelecto
para corromper o ar com seu som perverso. A-racional, abismal. Não
me basta escrevê-la — que estou escrevendo agora e sou capaz de
encher pilhas de papel repetindo voragem voragem voragem voragem
voragem voragem voragem sete vezes ao infinito até perder o sentido
e nada mais significar — não é dessa forma que eu a desejo. Ah
essa palavra de desgrenhados cabelos, enormes olhos e trêmulas mãos.
Melodramática palavra, de voz rouca igual à daquelas mulheres que,
como dizia John Fante, só a adquirem depois de muitos conhaques e
muitos cigarros. Eu quero sê-la, voragem.
Espio
no dicionário seu significado oficial, tentativa inútil de
exorcizar o encantamento maligno. O que leio inquieta ainda mais:
“Aquilo que sorve ou devora.” E vejo um redemoinho lamacento de
areias movediças à superfície do qual uma única mão se crispa.
Vórtice, penso, numa vertigem. Repito, hipnotizado: vertigem,
vórtice, voragem. “Qualquer abismo” — continuo a ler. Os
abismos de rosas, os abismos de urzes, e aqueles abismos à beira do
qual duas crianças correm perigo, protegidas pelas asas do Anjo da
Guarda. Os abismos de estrelas falsas no falso céu do teto do meu
quarto, os abismos de beijos e desejos, o abismo onde se detém o rei
daquela história zen para abrir o anel que lhe deu o monge, onde
está guardado o condão capaz de salvá-lo — e o condão é a
frase “isto também passará”. Sim, e leio então: “Tudo que
subverte ou consome” — paixões, ideologias, ódios, feitiçarias,
vocações, ilusões, morte e vida. Essas outras palavras de
maiúsculas implícitas — vorazes, voragem —, abismais.
Eu
estava lá, no centro do furacão. E repito palavras que são e não
são minhas enquanto o porteiro do edifício em frente toca violão e
canta, e a chuva desaba outra vez, e peço: por favor, me socorre, me
socorre que hoje estou sentido e português, lusitano e melancólico.
Me ajuda que hoje tenho certeza absoluta que já fui Pessoa ou
Virginia Woolf em outras vidas, e filósofo em tupi-guarani, enganado
pelos búzios, pelas cartas, pelos astros, pelas fadas. Me puxa para
fora deste túnel, me mostra o caminho para baixo da quaresmeira em flor que eu quero encostar em seu tronco o lótus de mil pétalas do
topo da minha cabeça tonta para sair de mim e respirar aliviado de
por um instante não ser mais eu, que hoje não me suporto nem me
perdoo de ser como sou e não ter solução. Me ajuda, peço, quando
Excalibur afunda sem volta no lago.
Ela
se debruça sobre mim, me beija com sua grande boca ver melha
movediça. Tenho medo mas abro minha boca para me perder.
Ela
repete baixinho em meus ouvidos nomes cheios de sangue — Galizia,
Ana Cristina, Júlio Barroso — enquanto contemplo o céu no teto do
meu quarto, girando intergaláctico em direção a ER8, a estrela de
10 bilhões de anos, o cadáver insepulto para sempre da estrela
perdida nos confins do Universo. Choro sozinho no escuro, e você não
enxuga as minhas lágrimas. Você não quer ver a minha infância.
Solto nesse abismo onde só brilham as estrelas de papel no teto,
desguardado do anjo com suas mornas asas abertas. Você não me ouve
nem vê, e se ouvisse e visse não compreenderia quando eu abrir os
braços para Ela e saudar, amável e desesperado como quem dá
boas-vindas ao terror consentido: voragem, benvinda.
Voragem,
vórtice, vertigem: ego. Farpas e trapos. Quero um solo de guitarra
rasgando a madrugada. Te espero aqui onde estou, abismo, no centro do
furacão. Em movimento, águas.
Caio
Fernando Abreu, in Pequenas Epifanias
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