Conta-se
na família que, quando meu pai comprou a nossa casa de Cachoeiro
esse relógio já estava na parede da sala; e que o vendedor o deixou
lá, porque naquele tempo não ficava bem levar.
(Hoje,
meu Deus, carregam até a lâmpada de sessenta velas, até o bocal da
lâmpada, deixam aquele fio solto no ar.)
Há
poucos anos trouxe o relógio para minha casa de Ipanema. Mais velho
do que eu, não é de admirar que ele tresande em pouco. Há uma
corda para fazer andar os ponteiros, outra para fazer bater as horas.
A primeira é forte, e faz o relógio se adiantar: de vez em quando
alguém me chama a atenção, dizendo que o relógio está adiantado
quinze ou vinte minutos, e eu digo que é a hora de Cachoeiro. Em
matéria de som, vamos muito mais adiante. É comum o relógio
marcar, digamos, duas e meia, e bater solenemente nove horas. “Esse
relógio não diz coisa com coisa” – comenta um amigo severo.
Explico que é uma pequena disfunção audiovisual.
Na
verdade essa defasagem não me aborrece nada; há muito desanimei de
querer as coisas deste mundo todas certinhas, e prefiro deixar que o
velho relógio badale a seu bel-prazer. Sua batida é suave, como
costumam ser as desses Ansonias antigos; e esse som me carrega para
as noites mais antigas da infância. Às vezes tenho a ilusão de
ouvir, no fundo, o murmúrio distante e querido do Itapemirim.
Que
outros sons me chegam da infância? Um cacarejar sonolento de
galinhas numa tarde de verão; um canto de cambaxirra, o ranger e o
baque de uma porteira na fazenda, um tropel de cavalos que vinha
vindo e depois ia indo no fundo da noite. E o som distante dos bailes
do Centro Operário, com um trombone de vara u um pistom perdidos na
madrugada.
Sim,
sou um amante da música, ainda que desprezado e infeliz. Sou
desafinado, desentoado, um amigo diz que tenho orelha de pau. Outro
dia fiquei perplexo ouvindo uma discussão de jovens sobre um som que
eu achava perfeito e eles acusavam de flutter, wow, rumble, hiss e
outros males estranhos.
Meu
amigo Mario Cabral dizia que queria morrer ouvindo Jesus, alegria dos
homens; nunca soube se lhe fizeram a vontade. A mim, um lento ranger
de porteira e seu baque final, como na Fazenda do Frade, já me
bastam. Ou então a batida desse velho relógio, que marcou a morte
de meu pai e, vinte anos depois, a de minha mãe; e que eu morra às
quatro e quarenta da manhã, com ele marcando cinco e batendo onze,
não faz mal; até é capaz de me cair bem.
Rubem
Braga, in Os melhores contos
Nenhum comentário:
Postar um comentário