Você
vai pela rua,
distraído ou preocupado, não importa. Vai a determinado lugar para
fazer qualquer coisa que está escrita em sua agenda. Nem é preciso
que tenha agenda. Você tem um destino qualquer, e a rua é só a
passagem entre sua casa e a pessoa que vai procurar. De repente
estaca. Estaca e fica ouvindo.
Eu
fiz o ninho.
Te ensinei o bom caminho.
Mas quando a mulher não tem brio,
é malhar em ferro frio.
Te ensinei o bom caminho.
Mas quando a mulher não tem brio,
é malhar em ferro frio.
Aí
você fica
parado,
escutando até o fim o som que vem da loja de discos, onde alguém se
lembrou de reviver o velho samba de Cartola; Na Floresta (música de
Sílvio Caldas).
Esse
Cartola!
Desta
vez, está desiludido e zangado, mas em geral a atitude dele é de
franco romantismo, e tudo se resume num título: Sei
Sentir.
Cartola sabe sentir com a suavidade dos que amam pela vocação de
amar, e se renovam amando. Assim, quando ele nos anuncia: “Tenho um
novo amor”, é como se desse a senha pela renovação geral da
vida, a germinação de outras flores no eterno jardim. O sol
nascerá, com a garantia de Cartola. E com o sol, a incessante
primavera.
A
delicadeza
visceral
de Angenor de Oliveira (e não Agenor, como dizem os descuidados) é
patente quer na composição, quer na execução. Como bem me
observou Jota Efegê, seu padrinho de casamento, trata-se de um
distinto senhor emoldurado pelo Morro da Mangueira. A imagem do
malandro não coincide com a sua. A dura experiência de viver como
pedreiro, tipógrafo e lavador de carros, desconhecido e trazendo
consigo o dom musical, a centelha, não o afetou, não fez dele um
homem ácido e revoltado. A fama chegou até sua porta sem ser
procurada. O discreto Cartola recebeu-a com cortesia. Os dois
convivem civilizadamente. Ele tem a elegância moral de Pixinguinha,
outro a quem a natureza privilegiou com a sensibilidade criativa, e
que também soube ser mestre de delicadeza.
Em
Tempos
Idos,
o divino Cartola, como o qualificou Lúcio Rangel, faz o histórico
poético da evolução do samba, que se processou, aliás, com a sua
participação eficiente:
Com
a mesma roupagem
que saiu daqui
exibiu-se para a Duquesa de Kent
no Itamaraty.
que saiu daqui
exibiu-se para a Duquesa de Kent
no Itamaraty.
Pode-se
dizer
que
esta foi também a caminhada de Cartola. Nascido no Catete, sua
grande experiência humana se desenvolveu no Morro da Mangueira, mas
hoje ele é aceito como valor cultural brasileiro, representativo do
que há de melhor e mais autêntico na música popular. Ao gravar o
seu samba Quem
Me Vê Sorrir (com
Carlos Cachaça), o maestro Leopold Stockowski não lhe fez nenhum
favor: reconheceu, apenas, o que há de inventividade musical nas
camadas mais humildes de nossa população. Coisa que contagiou a
ilustre Duquesa.
Mas
então eu fiquei parado,
ouvindo a filosofia céptica do Mestre Cartola, na voz de Sílvio
Caldas. Já não me lembrava o compromisso que tinha de cumprir, que
compromisso? Na floresta, o homem fizera um ninho de amor, e a mulher
não soubera corresponder à sua dedicação. Inutilmente ele a amara
e orientara, mulher sem brio não tem jeito não. Cartola devia estar
muito ferido para dizer coisas tão amargas. Hoje não está. Forma
um par feliz com Zica, e às vezes a televisão vai até a casa
deles, mostra o casal tranquilo,
Cartola discorrendo com modéstia e sabedoria sobre coisas da vida.
“O mundo é um moinho...” O moleiro não é ele, Angenor, nem eu,
nem qualquer um de nós, igualmente moídos no eterno girar da roda,
trigo ou milho que se deixa pulverizar. Alguns, como Cartola, são
trigo de qualidade especial. Servem de alimento constante. A gente
fica sentindo e pensamenteando sempre o gosto dessa comida. O nobre,
o simples, não direi o divino, mas o humano Cartola, que se
apaixonou pelo samba e fez do samba o mensageiro de sua alma
delicada. O som calou-se, e “fui à vida”, como ele gosta de
dizer, isto é, à obrigação daquele dia. Mas levava uma companhia,
uma amizade de espírito, o jeito de Cartola botar em lirismo a sua
vida, os seus amores, o seu sentimento do mundo, esse moinho, e da
poesia, essa iluminação.
Carlos
Drummond de Andrade,
in Jornal do Brasil, em 27/11/1980, três dias antes da morte de
Cartola. Ao
saber que Cartola estava doente, Drummond decidiu escrever-lhe uma
homenagem. “Em seus derradeiros momentos de lucidez, em sua cama no
hospital, Cartola ainda pôde lê-la, transformando-a em sua última
felicidade”, conta o jornalista e pesquisador musical Arley
Pereira, autor do livro Cartola
– 90 Anos.
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