domingo, 12 de julho de 2015

Família

Minha mãe guardava com cuidados de sete chaves, sobre a cômoda do quarto, três cadernos. No primeiro, ela copiava receitas de amorosos doces: suspiros, amor-em-pedaços, baba-de-moça, casadinhos, e fazia olho-de-sogra de cor. No segundo caderno, ela anotava riscos de bordados, com nomes camuflados em pesares: ponto-atrás, ponto de sombra, ponto de cruz, ponto de cadeia, laçadas e nós. No terceiro, ela escondia longas poesias, boiando em sofrimentos: A Louca d’Albano, Tédio, O Beijo do Papai. Eu reparava em seus cadernos, encardidos pelo tempo e pelo uso, admirava sua letra redonda e grande, com caneta de molhar, sem ainda desconfiar das palavras. Eu sabia do todo, sem suspeitar das partes. Durante muitas tardes, com o pensamento enfastiado de passado, ela passava as páginas, lentamente, espreitando as folhas vazias, como se cansada de escrever e de pouco exercer. Eram sempre as mesmas comidas, os mesmos pontos, a mesma poesia e muito por decidir.
Meu pai, junto ao rádio no alto da cristaleira e longe do meu alcance, protegia alguns poucos livros sobre homens célebres, com vidas prósperas sem precisar viajar de sol a sol. Aos pedaços ele lia os compêndios, escutando a Voz do Brasil ou o Repórter Esso. Eu apreciava o silêncio, sem me aventurar em perguntas ou demandas. De vez em quando ele interrompia a leitura e me acariciava com os olhos, me amando sem mãos, como se me desejando outros futuros diferentes do seu. Seu jeito me arranhava por não ser meu anseio me fazer herói ou mártir. Eu queria saber, mas sem perdê-lo. Lastimando a ausência de futuro, ele fechava o livro, reparava as horas e buscava o sono. Seu dia era pequeno para trabalhar por todos nós. E nos livros, eu percebia, estava escrito o já não mais possível a ele. Eu sabia irrealizável, sem querer nascer de novo.
Na pequena capela da praça morava uma imagem de sant’Ana. Minha irmã levava piedosos ramos de flores, colhidos na horta, e trocava pedidos balbuciados. Eu encarava a santa com seu livro aberto sobre os joelhos ensinando a Menina Maria. Eu espiava o livro de gesso, indagando o que a futura Mãe de Deus não sabia ainda. O que estava guardado em abençoado livro e que a Rainha desconhecia? Aproveitava as suspeitas e rezava por mim, pelas minhas desconfianças. Mesmo sabendo repetir o credo, o pai-nosso, a ave-maria, meu coração se aventurava a interrogar o Perfeito por me ofertar tanta incoerência para sobreviver.
Meu irmão, o mais velho, se debruçava sobre a mesa e examinava, enfastiado, seu livro de leitura. Passava horas soletrando, com desalento, seus afazeres. Os deveres lhe pareciam insossos, pois constantemente, pedia a meu pai para “lhe tomar lições”. Meu pai negava por não necessitar mais de lições. Já trabalhava e amava. Minha mãe, propensa a justificar fracassos, elogiava o esforço do filho maior, o suposto responsável pela família em caso de desgraça, mesmo reconhecendo não serem os livros o seu caminho. Eu invejava o lugar de meu irmão estudando afluentes do Rio Amazonas, a rosa-dos-ventos, os pontos cardeais, as três caravelas. Eu sonhava rio, vento, direção e barco sem querer partir. E, se partir, deixar bilhete sobre o norte buscado. Se sufocado em desejos, eu vivia cheio de medo de minhas vontades virarem verdades.
Minha avó, toda manhã, ainda em jejum, arrancava a página da folinha Mariana e lia as recomendações. Meditava, cambaleando no meio da sala, sobre o pensamento escrito no verso do papel para depois conferir a fase da Lua, a previsão das enchentes e estiagens. Em seguida acendia mais uma vela para os santos do dia: santa Genoveva, são Philippus, são Clemente Maria, santo Antão, santo Agripino. Eu reparava sua fé e guardava o papelzinho como se armazenando sabedoria, como se acreditando na possibilidade de o passado se repetir no futuro. Minha mãe, de soslaio, espiava minha avó e continuava sem anotar receita de olho-de-sogra em seu primeiro caderno.
Bartolomeu Campos de Queirós, in Foram muitos, os professores

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