“A
Ira, a Soberba, a Inveja, a Luxúria, a Avareza, a Gula e,
finalmente, a Preguiça, o sonolento Demônio do Meio-Dia – esses
os sete pecados capitais que já podem ser identificados na
satanificação, isso de acordo com local e hora. Os diabinhos da Ira
estão no trânsito, olhos injetados de fumaça e ódio, a boca
espumejando no ranger de dentes e freios: seis horas da tarde, Hora
da Ave-Maria, lembra? Tinha um quadro que em várias salas de visita
da minha infância: no doce colorido do crepúsculo, um grupo de
camponeses bem vestidos e rosados, as mulheres de longos aventais e
toucas, os homens de sapatões rudes mas sólidos, as mãos limpas,
os olhos baixos no fervor da prece por entre os montes de feno
dourado, Ave-Maria
–
acho que esse era o nome do quadro. Lembro que tinha um bebezinho
louro no cesto ou berço de madeira, queria eu ser aquele bebezinho,
pensei na tarde em que vi um tipo descer do carro (ao lado do meu) e
verde e aumentando em cólera apontar o revólver para um velho que
teria propositadamente amassado o seu pára-lama. Hora de vítimas de
desastres e da fuzilaria, as armas esperando no porta-luvas, que
luvas? Hora de vítimas dos assaltos, quando o carro para no sinal
vermelho e um outro vermelho se acende no peito. Na nuca. Tinha um
antigo programa no rádio nessas hora crepuscular, as músicas tão
espirituais, minha mãe chamava a gente para rezar junto, só
pensamentos elevados enquanto o chefe de família – mas que
família? Que chefe?
Os
possessos da Soberba evitam as aglomerações, as misturas. Portas
fechadas, o horror da invasão. Gostam de reuniões sociais seletas
mas espaçosas, onde os peitos estufados, cobertos de medalhas,
iniciam a lenta dança dos pavões – poder político, poder
econômico e outros poderes, varetas dos leques que se cruzam mas não
se olham, o que digo? se olham para admirar a própria imagem
refletida no olho do outro. Já os possessos da Inveja têm especial
predileção pelos palácios burocráticos e centros de artistas do
baile das quatro artes, ô Deus! como sofrem os invejosos na luta
competitiva à qual são condenados, os olhos cozidos como os olhos
da lagosta
em água fervente, sou Caim matando meu irmão? Sou Judas traindo o
meu Mestre? O invejoso só tem trégua com a infelicidade do próximo
mas por que no lugar desse próximo aniquilado nascem dez, vinte
vencedores?! Um sofrimento. De todos os pecadores, talvez o invejoso
seja o que mais sofre embora os possessos da Luxúria também
rodopiem sem descanso, as injúrias
(era
assim que minha pajem chamava às partes baixas) açuladas e
trespassadas pelos garfos dos diabinhos luxuriosos, a voz pesada, o
olhar pesado – tantas ruas do prazer e do desprazer da
insatisfação. Os estímulos da indústria do sexo no auge do
aperfeiçoamento para o desempenho
à altura e
ainda a ansiedade, o desassosego na busca que é só obsessão, sou
caçador? Ou caça? Mas essa gente não pensa noutra coisa? –
perguntaria tia Pombinha diante de uma banca de revistas e jornais.
Pensa, sim. Pensa muito em guardar e agora as caras e casas tomam um
ar respeitável, estamos entrando na rua dos bancos e dos negócios:
eis a Avareza com seus demoninhos de olho vivo, umedecendo a ponta do
dedo entortado de tanto contar dinheiro, medo de dar, medo de
dividir. O medo dos medos: medo de perder, ih! como acumular tudo
numa vida assim provisória? “Mas por que o desperdício dessa vela
acesa?” – reclamou o avarento que preferiu morrer no escuro.
Quanto aos possessos da Gula e da Preguiça, esses se espalharam tão
intensamente: os da Gula nos bairros ricos de preferência, não por
virtude dos pobres mas por simples insuficiência econômica. Se a
beleza (que os luxuriosos amam) virou artigo de luxo, a comida só
pode ser um belo vício nos bairros de classe A. É por acaso que
falo nos dois pecados assim juntos porque o preguiçoso nunca é um
guloso. A gula exige empenho, imaginação do apetite. Mastigar cansa
e esse dispêncio de energia o preguiçoso evita, prefere papinhas,
líquidos. Quando o guloso chega à saciedade e não está saciado
(nunca está) mete o dedo na garganta, quer recomeçar tudo. Mas eis
uma violência que o preguiçoso detesta: o ato de vomitar. Ou antes,
que não aprecia porque ele não odeia nem ama, a paixão é
laboriosa, exige fervor e o preguiçoso nunca esquenta. Não se
define nem define: contorna. Na imobilidade se defende dos prazeres
da cama e da mesa. No alheamento que chama de privacidade, se guarda.
Música suave, que não seja solicitante. Pessoas que não façam
perguntas, ele nem sequer termina as frases, os gestos. A graça das
coisas incompletas no ar… Vem a mosca obumbrada, pousa na sua face
e ele afasta a mosca com um movimento brando mas quando ela volta uma
segunda vez ele deixa ficar deixa ficar deixa ficar.”
Lygia
Fagundes Telles,
in A
disciplina do amor
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