“Das
coisas que há no mundo, umas estão na nossa mão e outras não. Na
nossa mão estão a opinião, a suspeita, o apetite, o aborrecimento,
o desejo e, numa palavra, todas as obras que são nossas. Não estão
na nossa mão o corpo, a fazenda, nem a honra (reputação), nem o
senhorio, nem com efeito nenhuma das que não são obra nossa. As
coisas que estão na nossa mão, de sua natureza são livres e
senhoras sem impedimento nem embaraço. E as que não estão na nossa
mão, de si são fracas, servis, embaraçadas e sujeitas.
Pois
olha que, se tiveres por livre o que se sua natureza não o for, e
por teu o que em efeito não o é, haverás de embaraçar-te, e
lamentar-te, e queixar-te dos deuses e dos homens. Mas se só o que é
teu tiveres por tal, e por alheio, como o é, o que não é teu, não
haverá nunca quem te faça força; a ninguém acusarás; de ninguém
te queixarás; nenhuma coisa farás contra tua vontade; não terás
nenhum inimigo; ninguém te fará mal; nem receberás nenhum dano nem
perda.
Se
vires algum homem muito honrado, ou poderoso, ou por qualquer outra
via engrandecido, olha que não te deixes levar por essas aparências
e o tenhas por bem-aventurado; porque se a importância, e ser do
sossego se puder ser no que está em nossa mão, nem a inveja, nem a
emulação terão lugar em nada; e tu mesmo, antes que ser imperador,
cônsul, ou senador, tomarias ser livre e senhor de ti mesmo: para o
que há um só caminho, que é o desprezo de todas as coisas que não
estão na nossa mão. Traz sempre diante dos olhos a morte,
desterros e tudo que se tem por trabalho, e mais que tudo a morte. E
com isto nem terás nenhum pensamento baixo, nem desejarás nada com
muita força.
Das
coisas que servem ao corpo não se há-de tomar mais de quanto
convenha para o ânimo; como de comer, beber, vestido, e casa, e
serviço: o que não serve senão de vaidade, ou de delícias,
deita-o de ti.
Quando
alguém te fizer mal, ou disser de ti, lembra-te que cuidava que
fazia bem naquilo, e assim lhe pareceu; porque não pode ser que ele
siga o teu entendimento, senão o seu. E se ele julga mal das tuas
coisas, sua é a perda, pois que vive enganado. Porque se um julga a
verdade por mentira, não é por isso ofendida a verdade, senão o
que a não conheceu. Com esta consideração sofrerás com ânimo o
que disser mal de ti, e a tudo dirás: assim lhe pareceu a ele.
Se
a razão, que deve regular todas as coisas, é desregrada, quem a
regulará a ela?”
Epicteto,
in Manual
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