terça-feira, 17 de março de 2015

Os condenados da Terra

“– Mas que horror de homem! – me escapou, e os olhos claros da mulher loura me censuraram antes de seus lábios explicarem.
Perdeu as estribeiras. Ele não é assim. Ultimamente as coisas não andam bem para o seu lado e está com uma paranoia gravíssima. Alguém disse que o pior que pode acontecer com um paranoico é ser perseguido de verdade. De qualquer modo, o problema é meu e muito obrigada.
Você é enfermeira?
Como percebeu?
Pelas meias brancas.
Tenho o título e faço algumas substituições, como agora. É duro lutar por uma vaga. São milhares de candidatos para cada emprego e isso numa sociedade com expectativa de vida de mais de setenta anos.
Acha que é expectativa demais?
Depende da vida que você levar.
A conversa era entre eles dois e eu estava alucinada porque tinha acabado de descobrir que Pedro era um homem que podia sentir-se atraído por uma garota loura, de olhos claros e lábios rosados. Ela tinha projetos. Inscrever-se nos Médicos Sem Fronteiras e tentar melhorar o nível de vida dos condenados da Terra, expressão que repetiu três vezes. Gostava dela. Era bonita e me emocionou. Os condenados da Terra! Havia superado a comoção do desagradável encontro e, estimulada por nossas perguntas, Myriam disse coisas brilhantes e muito instigantes. Por exemplo, que sua liberdade sem a dos outros não era liberdade e que isso deveria se estender à satisfação das necessidades, até mesmo dos prazeres.
Isso é muito bonito. Muito cristão – exclamei entusiasmada.
Procuro praticar o que digo sem necessidade de ser cristã. O cristianismo é um mero hábito cultural.”
Manuel Vázquez Montalbán, in Erec e Enide

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