segunda-feira, 16 de março de 2015

A eternidade nos escapa

Assim, como se passa a vida? Nós nos esforçamos bravamente, dia após dia, para assumir nosso papel nessa comédia fantasma. Como primatas que somos, o essencial de nossa atividade consiste em manter e entreter nosso território de tal modo que nos proteja e nos envaideça, em escalar, ou pelo menos em não descer, a escada hierárquica da tribo, e em fornicar de todas as maneiras possíveis – ainda que como um fantasma – tanto para o prazer como para a descendência prometida. Assim, gastamos parte não desprezível de nossa energia a intimidar ou seduzir, já que essas duas estratégias garantem, sozinhas, a busca territorial, hierárquica e sexual que anima nosso conato. Mas nada disso chega à nossa consciência. Falamos de amor, de bem e de mal, de filosofia e de civilização, e nos agarramos a esses ícones respeitáveis como o carrapato sedento a seu cão bem quentinho.
Às vezes, porém, a vida nos parece uma comédia fantasma. Como tirados de um sonho, olhamos os outros agir e, gelados ao verificarmos o dispêndio vital requerido pela manutenção de nossos requisitos primitivos, perguntamos com espanto o que restou da Arte. Nosso frenesi de caretas e olhadelas nos parece de repente o cúmulo da insignificância, nosso pequeno ninho tão macio, fruto de um endividamento de vinte anos, parece um inútil costume bárbaro, e nossa posição na escala social, tão duramente conquistada e tão eternamente precária, parece de uma grosseira inutilidade. Quanto à nossa descendência, nós a contemplamos com um olhar novo e horrorizado porque, sem as vestes do altruísmo, o ato de se reproduzir parece profundamente deslocado. Restam apenas os prazeres sexuais; mas, arrastados no rio da miséria primal, eles vacilam da mesma forma, pois a ginástica sem o amor não entra no quadro de nossas lições bem aprendidas.
A eternidade nos escapa.
Nestes dias em que soçobram no altar de nossa natureza profunda todas as crenças românticas, políticas, intelectuais, metafísicas e morais que os anos de instrução e educação tentaram imprimir em nós, a sociedade, campo territorial cruzado por grandes ondas hierárquicas, afunda no nada do Sentido. Acabam-se os ricos e os pobres, os pensadores, os pesquisadores, os gestores, os escravos, os gentis e os malvados, os criativos e os conscienciosos, os sindicalistas e os individualistas, os progressistas e os conservadores; não são mais que hominídeos primitivos, e suas caretas e risos, seus comportamentos e enfeites, sua linguagem e seus códigos, inscritos na carta genética do primata médio, significam apenas isto: manter o próprio nível ou morrer.
Nesses dias, precisamos desesperadamente da Arte. Aspiramos ardentemente a retomar nossa ilusão espiritual, desejamos apaixonadamente que algo nos salve dos destinos biológicos para que toda poesia e toda grandeza não sejam excluídas deste mundo.”
Muriel Barbery, in A elegância do ouriço

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