terça-feira, 31 de março de 2015

Beleza do mundo

A beleza do mundo, que é cedo demais para perecer, possui dois extremos, um da alegria, outro da angústia, rachando o coração.”
Virginia Woolf

Mudanças

As coisas mudam no devagar depressa dos tempos.”
Guimarães Rosa

Saudade: vítima da televisão


A primeira vítima da televisão vai ser a velha e boa Saudade, que no fundo é filha da Lentidão e da Falta de Transportes. A saudade desaparecerá do mundo. Em breve futuro a palavra ‘longe’ se tornará arcaísmo.”
Monteiro Lobato, em Carta a Godofredo Rangel, Nova York, 17/8/1928.

Livros que nos despertam

Apenas deveríamos ler os livros que nos picam e que nos mordem. Se o livro que lemos não nos desperta como um murro no crânio, para que lê-lo?”
Franz Kafka

Narcisista

“– Você deve estar imensamente feliz.
Por quê?
A homenagem. Na certa vai receber até um telegrama do rei. Você é muito narciso e essas coisas o engrandecem, você gosta.
Em termos de narcisismo não tenho nada a ensinar a uma mulher.
Errado. Em nós é uma obrigação imposta pelo papel de chamariz. Em vocês muda muito a segunda pessoa. Você, por exemplo, é narcisista porque só tem a si mesmo. Desconfia afetivamente de todos os que estão à sua volta.”
Manuel Vázquez Montalbán, in Erec e Enide

segunda-feira, 30 de março de 2015

Metáforas e amor

Tomás compreendeu então que as metáforas são perigosas. Não se brinca com as metáforas. O amor pode nascer de uma simples metáfora”
Milan Kundera, in A insustentável leveza do ser

Cronopio

Un cronopio encuentra una flor solitaria en medio de los campos. Primero la va a arrancar, pero piensa que es una crueldad inútil y se pone de rodillas a su lado y juega alegremente con la flor, a saber: le acaricia los pétalos, la sopla para que baile, zumba como una abeja, huele su perfume, y finalmente se acuesta debajo de la flor y se duerme envuelto en una gran paz. La flor piensa: 'Es como una flor'.”
Julio Cortázar, in Historias de cronopios y de famas

Como encarar a morte, de Carlos Drummond de Andrade

De longe

Quatro bem-te-vis levam nos bicos
o batel de ouro e lápis-lazúli,
e pousando-o sobre uma acácia
cantam o canto costumeiro.

O barco lá fica banhado
de brisa aveludada, açúcar,
e os bem-te-vis, já esquecidos
de perpassar, dormem no espaço.


A meia distância

Claridade infusa na sombra,
treva implícita na claridade?
Quem ousa dizer o que viu,
se não viu a não ser em sonho?

Mas insones tornamos a vê-lo
e um vago arrepio vara
a mais íntima pele do homem.
A superfície jaz tranquila.


De lado

Sente-se já, não a figura,
passos na areia, pés incertos,
avançado e deixando ver
um certo código de sandálias.

Salvo rosto ou contorno explícito,
como saber que nos procura
o viajante sem identidade?
Algum ponto em nós se recusa.


De dentro

Agora não se esconde mais.
Apresenta-se, corpo inteiro,
se merece nome de corpo
o gás de um estado indefinível.

Seu interior mostra-se aberto.
Promete riquezas, prêmios,
mas eis que falta curiosidade,
e todo ferrão de desejo.


Sem vista

Singular, sentir não sentindo
ou sentimento inexpresso
de si mesmo, em vaso coberto
de resina e lótus e sons.

Nem viajar nem estar quedo
em lugar algum do mundo, só
o não saber que afinal se sabe
e, mais sabido, mais se ignora.

Direitos sociais

Deve-se recordar que o mais forte argumento adotado pelos reacionários de todos os países contra os direitos do homem, particularmente contra os direitos sociais, não é a sua falta de fundamento, mas a sua inexequibilidade. Quando se trata de enunciá-los, o acordo é obtido com relativa facilidade, independentemente do maior ou menor poder de convicção de seu fundamento absoluto; quando se trata de passar à ação, ainda que o fundamento seja inquestionável, começam as reservas e as oposições.

O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político.”

Norberto Bobbio, A era dos direitos

Nossa casa

“– Voltou cedo (pra casa), patrão – disse Agáfia Mikhálovna. 
Cansei, Agáfia Mikhálovna. Na casa dos outros, é bom; mas na nossa casa é melhor.”
Leon Tolstoi, in Anna Karenina

Folicular*

“– É verdade que em Paris estão sempre rindo? indagou Cândido.
É, respondeu o abade, mas é de raiva; pois queixam-se de tudo às gargalhadas, praticam-se rindo as mais detestáveis ações.
Quem é, perguntou Cândido, aquela besta que falava tão mal da peça em que tanto chorei, e dos atores que tanto me agradaram?
É um trapaceiro, respondeu o abade, que ganha a vida falando mal de todas as peças e de todos os livros; odeia qualquer pessoa que faça sucesso, como os eunucos odeiam os capacitados; é uma das serpentes da literatura que se alimentam de lama e veneno; é um folicular."
Voltaire, in Cândido, ou O otimismo


* Palavra criada por Voltaire, e que desde então designa um jornalista necessitado e malévolo. Folículo não é uma folhinha, mas uma pequena bolsa. Voltaire preferiu a vulgaridade expressiva à exatidão.

Verossimilhança

Porque a vida, por todos os seus descarados absurdos, grandes e pequenos, dos quais está tranquilamente repleta, tem o inestimável privilégio de poder prescindir daquela estúpida verossimilhança, à qual a arte se crê obrigada a obedecer.
Os absurdos da vida não precisam parecer verossímeis porque são verdadeiros. Ao contrário dos da arte que, para parecerem verdadeiros, precisam ser verossímeis. E sendo verossímeis, deixam de ser absurdos.
Um acontecimento da vida pode ser absurdo; uma obra de arte, se é obra de arte, não. De onde se deduz que tachar uma obra de arte de absurda e inverossímil, em nome da vida, é idiotice. Em nome da arte, sim; em nome da vida, não.”
Luigi Pirandello, in Advertência sobre os escrúpulos da fantasia

Resumo do circo


Ódio: o que o grupo político rival sente. Já nós somos cândidos e gostamos de ouvir o contraditório.
Golpe: está constantemente sendo promovido pelo grupo rival na mídia, no judiciário, no aparelhamento de estatais, na doutrinação de escolas e universidades.
Classe média: todo mundo o é quando fala do próprio salário, ninguém o é quando discute cultura ou moral.
Povo: entidade cuja versão não manipulada aparece somente nas manifestações que apoiamos, sejam elas a marcha na Paulista em 2015, as jornadas de junho de 2013, o “Fora, FHC” ou os caras pintadas vestindo as cores da CBF.
PM: instituição tão competente na contagem de multidões quanto em direitos humanos.
Militante de direita: indivíduo com diferentes aplicações dos conceitos de competência e ética se a riqueza natural em debate for água ou petróleo, se o meio de transporte for metrô ou bicicleta.
Militante de esquerda: indivíduo cujas aplicações dos conceitos de competência e ética, assim como a habilidade de interpretar textos, números e imagens, estão suspensos até que se institua a solução estrutural para os males do universo –o financiamento público de campanha.
Ajuste fiscal: o que a oposição ataca, quando não é governo.
Presunção de inocência: o que o governo defende, quando não é oposição.
Empresário liberal: a depender dos amigos que tiver, pode virar nacional desenvolvimentista de si próprio.
Jornalista “independente”: se precisa obsessivamente se declarar como tal, as aspas saem do adjetivo e grudam na conduta.
Movimentos sociais: entidades que, ensinam os manuais políticos em sua comovente ingenuidade, estão aí para fazer barulho sem discriminar contra quem.
Exército: parafraseando Clemenceau, o futuro democrático sob militares está para a democracia assim como a música militar está para a música.
Bancos: instituições que usam juros de 12,75% para pagar salários de uns 75,12% dos palpiteiros do debate público.
Palpiteiros mais divertidos, financiados ou não por bancos: autores ou apoiadores do
Plano Cruzado, da Tablita, do Plano Verão, do sequestro da poupança, da
sobrevalorização cambial continuada e de outras medidas de sucesso da história
recente do país.
Humanismo: doutrina morta em algum ponto entre o fim do século 20 e o início do 21, cuja presunção de universalismo foi soterrada por demandas de grupos de interesse –algumas legítimas e urgentes, outras ilegítimas e perdidas no tempo, no espaço e na lógica elementar.
Marketing: ciência capaz de atribuir slogans como “pátria educadora” a um governo que não compra livros para suas bibliotecas e escolas.
Bancada evangélica: em meio ao problema todo, resolveu protestar contra o beijo gay na novela.
Sibá Machado: em meio ao problema todo, descobriu que a culpa é da CIA.
Carmen Mayrink Veiga: esclarecendo um aspecto ainda não percebido do problema,
elogiou o terno verde da Dilma.
Democracia representativa: o que está aí. A frase basta por em si só. Alternativas a esse sistema: a história humana está aí. A frase basta por si só.
Últimos 20 anos: dois blocos disputando cargos. Por algum tempo, em prazos e graus distintos, ambos melhoraram a vida da população. Nos dois exemplos, isso acabou por circunstâncias e escolhas. Entre as escolhas, a de sentar confortavelmente sob a lona e assistir ao circo parlamentarista do PMDB.
Urna eletrônica: tela com nomes de representantes dos dois blocos, mais um ou outro que não tem chance e que, se tivesse, provavelmente compraria ingresso e bateria palma para o espetáculo.
Palhaço: quem aperta um dos botões na tela. Palhaço que, além de votar nulo ou mal, escreve coluna louvando a própria falta de convicção: espécie de comentarista de portal ao contrário, mas que (não) é levado a sério na mesma medida.
Amigos: em meio ao que virou o debate público brasileiro, convictos ou não, meu amor por vocês segue incondicional.
Amor: fogo que arde sem se ver, solitário andar por entre a gente.
Futuro: algo entre a Itália, a Rússia e a Argentina, com toques de “House of Cards” e revisita (sempre) a José Sarney.
Michel Laub, in Folha de S. Paulo, 27/03/2015

sábado, 28 de março de 2015

Arte é a vida

Pois a Arte é a vida, mas num outro ritmo.”

Muriel Barbery, in A elegância do ouriço

Longe dos homens


Fotograma do filme Vidas Secas, de Nélson Pereira dos Santos

[Fabiano] Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não se aguentava bem. Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. Às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos - exclamações, onomatopeias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas.”
Graciliano Ramos, in Vidas Secas

Igualdade

É encorajador o fato de que a maior parte das culturas pareça ter considerado os seres humanos como iguais em algum sentido fundamental. É desencorajador o fato de que essa crença não signifique muita coisa no que diz respeito à igualdade de status social, econômico ou político.”
Samuel Fleischacker, in Uma breve história da justiça distributiva

Nós


Nós
Somos
Nós
Cegos
De paixão.
Elilson José Batista

Dor

"Dor é vida exacerbada. O processo dói. Vir-a-ser é uma lenta e lenta dor boa. É o espreguiçamento amplo até onde a pessoa pode se esticar. E o sangue agradece. Respiro, respiro. O ar é it. Ar com vento já é um ele ou ela. Se eu tivesse que me esforçar para te escrever ia ficar tão triste. Às vezes não aguento a força da inspiração. Então pinto abafado. É tão bom que as coisas não dependam de mim."
Clarice Lispector, in Água viva

sexta-feira, 27 de março de 2015

Gilberto Gil - Futurível (1969)



Você foi chamado, vai ser transmutado em energia
Seu segundo estágio de humanoide hoje se inicia
Fique calmo, vamos começar a transmissão
Meu sistema vai mudar
Sua dimensão
Seu corpo vai se transformar
Num raio, vai se transportar
No espaço, vai se recompor
Muitos anos-luz além
Além daqui
A nova coesão

Lhe dará de novo um coração mortal.
Pode ser que o novo movimento lhe pareça estranho
Seus olhos talvez sejam de cobre, seus braços de estanho
Não se preocupe, meu sistema manterá
A consciência do ser
Você pensará
Seu corpo será mais brilhante
A mente, mais inteligente
Tudo em superdimensão
O mutante é mais feliz
Feliz porque
Na nova mutação
A felicidade é feita de metal.

O comportamento alheio

Se Papai estivesse presente, sem dúvida teria comentado que a maior parte dos adultos presentes estava 'perigosamente perto de abdicar de sua dignidade' e que aquilo era triste e perturbador, porque 'todos estavam buscando algo que nunca reconheceriam, mesmo que o encontrassem'. O Papai era notoriamente severo ao comentar o comportamento alheio. Ainda assim, ao observar uma Mulher Maravilha de quarenta e poucos anos que tombou de costas na ordenada pilha de revistas Viagem de Hannah, eu me perguntei se a própria ideia de Crescer não seria uma farsa, um ônibus que esperamos tão ansiosos que nem sequer notamos sua chegada.”
Marisha Pessl, in Tópicos especiais em física das calamidades

Paixão e amor

Na juventude temos a inclinação de nos apaixonarmos pelo amor.”
Umberto Eco, in Baudolino

Artistas e personalidades famosas "tatuadas"

Dean

#marilynmonroe #shoppedtattoos

Dylan

Wonder Woman

#stevemcqueen #shoppedtattoos #cheyennerandall

#jackieO #shoppedtattoos #cheyennerandall

#elvis #shoppedtattoos #cheyennerandall #newbackgrounds #oldfutures

Mad Brazil follows today 🙏 #giselebundchen #runawaymodel #shoppedtattoos #cheyennerandall

Mayhemstein

Taylor

#audreyhepburn #shoppedtattoos #wontstopcantstop #sorryimnotsorry

John & Yoko 

#pablopicasso #shoppedtattoos #cheyennerandall

O artista norte-americano Chennye Randall, utilizando recursos digitais, tatuou artistas e personalidades famosas, estabelecendo um novo olhar para essas pessoas, a partir desses novos visuais criados. E pergunta-se: Esse novo olhar nosso seria diferente depois dessa nova (e inusitada) aparência? Reveríamos nossos conceitos em relação a essas personalidades com o corpo coberto de tatuagens?
Acesse o sítio do artista aqui.

Diferentes, mas somos iguais

Mas, sabe, eu acho fascinante que, não importa como nós homens pareçamos diferentes, por baixo de tudo somos exatamente iguais.”
Arthur Golden, in Memórias de uma gueixa

Questionamentos

Suponho que o senhor estará feliz, disse aos anjos, ganhou a aposta contra satã e, apesar de tudo quanto esta a sofrer, job não o renegou, Todos sabíamos que não o faria, Também o senhor, imagino, O senhor primeiro que todos, Isso quer dizer que ele apostou porque tinha a certeza de que ia ganhar, De certo modo, sim, Portanto, tudo ficou como estava, neste momento o senhor não sabe mais de job do que aquilo que sabia antes, Assim é, Então, se é assim, expliquem-me por que esta job leproso, coberto de chagas purulentas, sem filhos, arruinado, O senhor arranjará maneira de o compensar, Ressuscitará os dez filhos, levantará as paredes, fará regressar os animais que não foram mortos, perguntou caim, Isso não sabemos, E que fará o senhor a satã, que tão mau uso, pelos vistos, parece ter feito da autorização que lhe foi dada, Provavelmente nada, Como, nada, perguntou caim em tom escandalizado, mesmo que os escravos não contem para as estatísticas, há muita outra gente morta, e ouço que provavelmente o senhor não irá fazer nada, No céu as coisas sempre foram assim, não é nossa culpa, Sim, quando numa assembleia de seres celestes esta presente satã, há qualquer coisa ali que o simples mortal não entende.”
José Saramago, in Caim

quinta-feira, 26 de março de 2015

Parábolas

Se você não quiser ser compreendido, fale sempre através de parábolas. As pessoas, em geral, adoram não compreender. Isso não quer dizer que vão ler teu livro se ele for incompreensível. Mas hão de comprá-lo. É bonito ter em casa alguma coisa que não se compreenda.”
Hilda Hilst

Ecos

“– Esta cidade está cheia de ecos. Parece até que estão trancados no oco das paredes ou debaixo das pedras. Quando você caminha, sente que vão pisando seus passos. Ouve rangidos. Risos. Umas risadas já muito velhas, como cansadas de rir. E vozes já desgastadas pelo uso. Você ouve tudo isso. Acho que vai chegar o dia em que esses sons se apagarão.”
Juan Rulfo, in Pedro Páramo

Segredo

O segredo, dizia Chang (…), não é descobrir o que as pessoas escondem, e sim o que elas mostram.”
Marçal Aquino, in Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios

Pregando

Quer que lhe diga? Eu fazia aquela gente pular e exortar em altos brados o nome e a glória de Deus até todos caírem no chão, exaustos. E a alguns, batizava-os. E depois, sabe você o que eu fazia? Levava uma daquelas moças para o mato e deitava-me com ela. Era o que sempre fazia. Depois, arrependia-me e rezava, rezava, mas sem proveito. Daí a pouco ela e eu estávamos cheios do Espírito e acontecia a mesma coisa, outra vez. Pensei que tudo isso era inútil e que eu não passava dum danado dum hipócrita. Mas era sem querer.
Joad sorriu, mostrando os dentes alongados, e também os lábios.
Não tem nada como uma reunião de culto bem animada para aquecer as moças – disse ele. – Eu também já fiz isso.
Você vê – gritou. – Eu vi que tudo não passava disso. – Agitou a mão ossuda e nodosa num movimento de vaivém semelhante a uma carícia. – Então comecei a pensar: “Aqui estou eu pregando a graça divina. E eis aqui gente que obtém tanta graça que até salta e grita. Mas há quem diga que dormir com uma mulher é obra do diabo. O caso é que quanto mais graça divina uma moça obtém, mais rápido ela quer ir pro mato.”
John Steinbeck, in As vinhas da ira

Dor e alegria

 “Profunda é a dor, mas a alegria é ainda mais profunda. A dor diz: Passa! Mas toda alegria quer eternidade, quer profunda eternidade.”
Friedrich Nietzsche

Roubar: mau ofício para TODOS

Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo mar Eritreu a conquistar a Índia; e como fosse trazido à sua presença um pirata, que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício; porém ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim: Basta, senhor, que eu porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza: o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar muito, os Alexandres. Mas Sêneca, que sabia bem distinguir as qualidades e interpretar as significações, a uns e outros definiu com o mesmo nome: Eodem loco ponem latronem, et piratam quo regem animum latronis et piratae habentem. Se o rei da Macedônia, ou de qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata; o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo nome.
Padre Antônio Vieira, in Sermão do bom ladrão

A linguagem é o meu esforço humano

Eu tenho à medida que designo e este é o esplendor de se ter linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar. A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscar – e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho de ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas – volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção é que tenho o que ela não conseguiu.”
Clarice Lispector, in A paixão segundo G.H.

Nossa existência

 “Uma parte de nossa existência está nas almas de quem se aproxima de nós; por isso, não é humana a experiência de quem viveu dias nos quais o homem foi apenas uma coisa ante os olhos de outro homem.”
Primo Levi

O fantasma da minha vida


Se eu começar a correr”, pensei, “ela me seguirá!”
Passei a mão na testa com força, com medo de estar ficando louco, de transformar aquilo numa obsessão. Mas era isso mesmo! O símbolo, o fantasma da minha vida era aquela sombra: eu era esse aí no chão, à mercê dos pés dos outros. Era o que restava de Mattia Pascal, falecido na Stìa: sua sombra pelas ruas de Roma.
A sombra tinha um coração, mas não podia amar; tinha dinheiro, mas qualquer um podia roubá-lo; tinha uma cabeça, apenas para pensar e compreender que era a cabeça de uma sombra e não a sombra de uma cabeça. Nada mais que isso!
Luigi Pirandello, in O falecido Mattia Pascal

terça-feira, 24 de março de 2015

Enigma

Faço e ninguém me responde
esta perguntinha à-toa:
Como pode o peixe vivo
morrer dentro da Lagoa?
Carlos Drummond de Andrade

Esforços e convicções

Há, na verdade, esforços e convicções que nunca compreendi. Eu olhava sempre com um ar de espanto e com um pouco de suspeita aquelas estranhas criaturas que morriam por dinheiro e se desesperavam com a perda de uma “situação” ou se sacrificavam com grande ostentação pela prosperidade da família. Eu compreendia melhor aquele amigo que havia decidido nunca mais fumar e que, pela força de vontade, fora bem-sucedido. Certa manhã, abriu o jornal, leu que a primeira bomba H havia explodido, informou-se sobre seus admiráveis efeitos e entrou sem demora numa tabacaria.”
Albert Camus, in A queda

Pena: necessidade absoluta

“Toda pena que não derive da necessidade absoluta, diz o grande Montesquieu, é tirânica; proposição essa que pode ser assim generalizada: todo ato de autoridade de homem para homem que não derive da necessidade absoluta é tirânico. Eis, então, sobre o que se funda o direito do soberano de punir os delitos: sobre a necessidade de defender o depósito do bem comum das usurpações particulares; e tanto mais justas são as penas quanto mais sagrada e inviolável é a segurança e maior a liberdade que o soberano garante aos súditos.”
Cesare Beccaria, in Dos delitos e das penas

De pedra

 “Sim, é tempo. Se tenho de existir, é pelo esforço da minha atenção. Lúcido e calmo, devo olhar o que se desprende de mim como fragmentos abandonados de uma figura que se esculpe. Agora vejo os meus contornos. Os meus vazios, é o que reconquistei até agora. De ausências é que me formo. Revejo-me no espelho imenso da minha desolação – mas é assim de pedra que me quero.”
Lúcio Cardoso, in Diários

segunda-feira, 23 de março de 2015

Tempo humano

O tempo humano não gira em círculos, mas avança em linha reta. Por isso o homem não pode ser feliz, pois a felicidade é o desejo da repetição.”
Milan Kundera, in A insustentável leveza do ser

Espelho

Rocamadour, já sei que és como um espelho. Estás dormindo ou olhando os pés. Eu aqui seguro um espelho e creio que és tu. Mas não acredito nisso, escrevo-te porque não sabes ler. Se soubesses, não te escreveria ou escreveria coisas importantes. O dia chegará em que terei de escrever para recomendar que tu te comportes ou que te agasalhes. Parece incrível que alguma vez Rocamadour. Agora, somente te escrevo no espelho, de vez em quando tento secar o dedo, porque fica molhado com as lágrimas. Por que, Roucamadour? Não estou triste, tua mamãe é uma tola, queimei o borsch que tinha feito para Horacio; sabe muito bem quem é Horacio, Rocamadour, é aquele senhor que, no domingo, levou-te um coelhinho de feltro e que se aborrecia muito porque tu e eu falávamos tanto e ele queria voltar a Paris; foi então que começaste a chorar e ele mostrou como o coelhinho mexia as orelhas; nesse momento, ele ficou muito bonito, estou falando de Horacio, algum dia compreenderás, Rocamadour.”
Julio Cortázar, in O jogo da amarelinha

Levantadores de copo

Ilustração: Jaguar

Eram quatro e estavam ali já ia pra algum tempo, entornando seu uisquinho. Não cometeríamos a leviandade de dizer que era um uísque honesto porque por uísque e mulher quem bota a mão no fogo está arriscado a ser apelidado de maneta. E sabem como é, bebida batizada sobe mais que carne, na COFAP. Os quatro, por conseguinte, estavam meio triscados.
A conversa não era novidade. Aquela conversa mesmo, de bêbedo, de língua grossa. Um cantarolava um samba, o outro soltava um palavrão dizendo que o samba era ruim. Vinha uma discussão inconsequente, os outros dois separavam, e voltavam a encher os copos.
Aí a discussão ficava mais acalorada, até que entrasse uma mulher no bar. Logo as quatro vozes, dos quatro bêbedos, arrefeciam. Não há nada melhor para diminuir tom de voz, em conversa de bêbedo, do que entrada de mulher no bar. Mas, mal a distinta se incorporava aos móveis e utensílios do ambiente, tornavam à conversa em voz alta.
Foi ficando mais tarde, eles foram ficando mais bêbedos. Então veio o enfermeiro (desculpem, mas garçom de bar de bêbedo é muito mais enfermeiro do que garçom). Trouxe a nota, explicou direitinho por que era quanto era etc. etc., e, depois de conservar nos lábios aquele sorriso estático de todos os que ouvem espinafração de bêbedo e levam a coisa por conta das alcalinas, agradeceu a gorjeta, abriu a porta e deixou aquele cambaleante quarteto ganhar a rua.
Os quatro, ali no sereno, respiraram fundo, para limpar os pulmões da fumaça do bar e foram seguindo calçada abaixo, rumo a suas residências. Eram casados os quatro entornados que ali iam. Mas a bebida era muita para que qualquer um deles se preocupasse com a possibilidade de futuras espinafrações daquela que um dia — em plena clareza de seus atos — inscreveram como esposa naquele livrão negro que tem em todo cartório que se preze.
Afinal chegaram. Pararam em frente a uma casa e um deles, depois de errar várias vezes, conseguiu apertar o botão da campainha. Uma senhora sonolenta abriu a porta e foi logo entrando de sola.
Bonito papel! Quase três da madrugada e os senhores completamente bêbedos, não é?
Foi aí que um dos bêbedos pediu:
Sem bronca, minha senhora. Veja logo qual de nós quatro é o seu marido que os outros três querem ir para casa.
Sérgio Porto (o Stanislaw Ponte Preta), in Gol de padre e outras crônicas

Cumprir o protocolo

“–Todos nós pensamos de duas maneiras diferentes, Marta. Primeiro pensamos para cumprir o protocolo e dizer bom-dia ou me dá esse vestido ou o que vamos fazer neste verão. E depois pensamos de verdade que os nossos pensamentos habituais falsificam o que sentimos ou o que deveríamos sentir com sinceridade. Pedro e a mulher dele viram o outro lado dessa trama de pequenas misérias, disso que chamamos de viver corretamente. Quase tudo aquilo em que acreditamos ou fingimos acreditar, e não me refiro ao aspecto religioso, é uma merda.
Nossa.
Digamos uma porcaria.
Não melhora muito a realidade.”

Manuel Vázquez Montalbán, in Erec e Enide

Objetos perdidos


 “Os guarda-chuvas perdidos… aonde vão parar os guarda-chuvas perdidos? E os botões que se desprenderam? E as pastas de papéis, os estojos de pince-nez, as maletas esquecidas nas gares, as dentaduras postiças, os pacotes de compras os lenços com pequenas economias, aonde vão parar todos esses objetos heteróclitos e tristes? Não sabes? Vão parar nos anéis de Saturno, são eles que formam, eternamente girando, os estranhos anéis desse planeta misterioso e amigo.”
Mário Quintana, in Sapato florido

domingo, 22 de março de 2015

De que serve a bondade

1
De que serve a bondade
Quando os bondosos são logo abatidos, ou são abatidos
Aqueles para quem foram bondosos?

De que serve a liberdade
Quando os livres têm que viver entre os não-livres?

De que serve a razão
Quando só a sem-razão arranja a comida de que cada um precisa?

2
Em vez de serdes só bondosos, esforçai-vos
Por criar uma situação que torne possível a bondade, e melhor;
A faça supérflua!

Em vez de serdes só livres, esforçai-vos
Por criar uma situação que a todos liberte
E também o amor da liberdade
Faça supérfluo!

Em vez de serdes só razoáveis, esforçai-vos
Por criar uma situação que faça da sem-razão dos indivíduos
Um mau negócio!
Bertold Brecht

Interesses

Recém-chegado ao seu albergue, Cândido foi acometido por uma leve doença causada pela fadiga. Como trazia no dedo um enorme diamante, e como haviam percebido em sua bagagem um pequeno cofre prodigiosamente pesado, teve no mesmo instante a seu lado dois médicos que não mandara chamar, alguns amigos íntimos que não o deixaram, e duas devotas que lhe esquentavam os caldos. Martinho dizia: ‘Lembro-me de também ter adoecido em Paris na minha primeira viagem; eu era muito pobre, por isso não tive amigos, nem devotas, nem médicos, e sarei.’
Entretanto, à força de medicamentos e sangrias, a doença de Cândido se agravou. Um padre assistente do bairro veio com toda a brandura pedir-lhe uma letra pagável ao portador no outro mundo; Cândido não quis saber. As devotas garantiram-lhe que era uma moeda nova. Cândido respondeu que não era um homem na moda. Martinho quis atirar o padre pela janela. O clérigo julgou que não enterrariam Cândido (em solo sagrado). Martinho jurou que enterraria o clérigo se ele continuasse a importuná-los. A discussão acalorou-se; Martinho agarrou-o pelos ombros e escorraçou-o rudemente; isso causou grande escândalo, do qual foi lavrado um auto.
Cândido sarou-se, e durante a convalescença teve ótima companhia na ceia. Jogavam alto. Cândido ficava muito espantado de que nunca lhe viessem ases; e Martinho não se espantava.”
Voltaire, in Cândido, ou O otimismo

“‘Muitas relíquias guardadas aqui em Constantinopla são de origem duvidosa, mas o fiel que vai beijá-las sente a emanação de aromas sobrenaturais. É a fé que as faz verdadeiras, não são elas que fazem a verdadeira fé’.”
Umberto Eco, in Baudolino

Mártires

Os mártires, caro amigo, têm de escolher entre serem esquecidos, ridicularizados, ou usados. Quanto a serem compreendidos, isso, nunca.”
Albert Camus, A queda

sábado, 21 de março de 2015

Qualificação

Não venham com razões
e palavras estreitas.

O que sou sustenta
o que não sou.
Por mais grave a doença,
a dor já me curou.

E levo no bordão,
o campo, a cerca,
as passadas que vão,
o rosto que se acerca
na rudeza do chão.

O que sou
é dar socos
contra facas quotidianas.
E é pouco.
Carlos Nejar

Dormir

Me mande mentalmente coisas boas. Estou tendo uns dias difíceis? mas nada, nada de grave. Dias escuros sem sorrisos, sem risadas de verdade. Dias tristes, vontade de fazer nada, só dormir. Dormir porque o mundo dos sonhos é melhor, porque meus desejos valem de algo, dormir porque não há tormentos enquanto sonho, e eu posso tornar tudo realidade. Quando acordo, vejo que meus sonhos não passam disso, sonhos; e é assim que cada dia começa: desejando que não tivesse começado, desejando viver no mundo dos sonhos, ou transformar meu mundo real num lugar que eu possa viver, não sobreviver.”
Caio Fernando Abreu