Uma
boa maneira de começar um conto é imaginar uma situação rigidamente formal —
digamos, um recital de quarteto de cordas — e depois começar a desfiá-la, como
um pulôver velho. Então vejamos. Um recital de quarteto de cordas.
O
quarteto entra no palco sob educados aplausos da seleta plateia. São três
homens e uma mulher. A mulher, que é jovem e bonita, toca viola. Veste um
longo vestido preto. Os três homens estão de fraque. Tomam os seus
lugares atrás das partituras. Da esquerda para a direita: um violino, outro
violino, a viola e o violoncelo. Deixa ver se não esqueci nenhum detalhe. O
violoncelista tem um grande bigode ruivo. Isto pode se revelar importante mais
tarde, no conto. Ou não.
Os
quatro afinam seus instrumentos. Depois, silêncio. Aquela expectativa nervosa
que precede o início de qualquer concerto. As últimas tossidas da plateia. O
primeiro violinista consulta seus pares com um olhar discreto. Estão todos
prontos, o violinista coloca o instrumento sob o queixo e posiciona seu arco.
Vai começar o recital. Nisso...
Nisso,
o quê? Qual a coisa mais insólita que pode acontecer num recital de um quarteto
de cordas? Passar uma manada de zebus pelo palco, por trás deles? Não. Uma
manada de zebus passa, parte da plateia pula das suas poltronas e procura as
saídas em pânico, outra parte fica paralisada e perplexa, mas depois tudo volta
ao normal. O quarteto, que manteve-se firme em seu lugar até o último zebu —
são profissionais e, mesmo, aquilo não pode estar acontecendo — começa a tocar.
Nenhuma explicação é pedida ou oferecida. Segue o Mozart.
Não.
É preciso instalar-se no acontecimento, como a semente da confusão, uma pequena
incongruência. Algo que crie apenas um mal-estar, de início e chegue
lentamente, em etapas sucessivas, ao caos. Um morcego que posa na cabeça do
segundo violinista durante um pizzicato. Não. Melhor ainda. Entra no palco um
homem carregando uma tuba.
Há
um murmúrio na plateia. O que é aquilo? O homem entra, com sua tuba, dos
bastidores. Posta-se ao lado do violoncelista. O primeiro violinista, retesado
como um mergulhador que subitamente descobriu que não tem água na piscina, olha
para a tuba entre fascinado e horrorizado. O que é aquilo? Depois de alguns
instantes em que a tensão no ar é como a corda de um violino esticada ao
máximo, o primeiro violinista fala:
—
Por favor...
—
O quê? — diz o homem da tuba, já na defensiva. — Vai dizer que eu não posso
ficar aqui?
—
O que o senhor quer?
—
Quero tocar, ora. Podem começar que eu acompanho.
Alguns
risos na plateia. Ruídos de impaciência. Ninguém nota que o violoncelista olhou
para trás e quando deu com o tocador de tuba virou o rosto em seguida, como se
quisesse se esconder. O primeiro violinista continua:
—
Retire-se, por favor.
—
Por quê? Quero tocar também.
O
primeiro violinista olha nervosamente para a plateia. Nunca em toda a sua
carreira como líder do quarteto teve que enfrentar algo parecido. Uma vez um
mosquito entrou na sua narina durante uma passagem de Vivaldi. Mas
nunca uma tuba.
—
Por favor. Isto é um recital para quarteto de cordas. Vamos tocar Mozart.
Não tem nenhuma parte para a tuba.
—
Eu improviso alguma coisa. Vocês começam e eu faço o um-pá-pá.
Mais
risos na plateia. Expressões de escândalo. De onde surgiu aquele homem com uma
tuba? Ele nem está de fraque. Segundo algumas versões veste uma camisa do
Vasco. Usa chinelos de dedo. A violista sente-se mal. O violinista
ameaça chamar alguém dos bastidores para retirar o tocador de tuba a força. Mas
ele aproxima o bocal do seu instrumento dos lábios e ameaça:
—
Se alguém se aproximar de mim eu toco pof!
A
perspectiva de se ouvir um pof naquele recinto paralisa a todos.
—
Está bem — diz o primeiro violinista. — Vamos conversar. Você, obviamente,
entrou no lugar errado. Isto é um recital de cordas. Estamos nos
preparando para tocar Mozart. Mozart não tem um-pá-pá.
—
Mozart não sabe o que está perdendo — diz o tocador de tuba, rindo para a plateia
e tentando conquistar a sua simpatia.
Não
consegue. O ambiente é hostil. O tocador de tuba muda de tom. Torna-se
ameaçador:
—
Está bem, seus elitistas. Acabou. Onde é que vocês pensam que estão, no século
XVIII? Já houve 17 revoluções populares depois de Mozart. Vou confiscar estas
partituras em nome do povo. Vocês todos serão interrogados. Um a um, pá-pá.
Torna-se
suplicante:
—
Por favor, só o que eu quero é tocar um pouco também. Eu sou humilde. Não pude
estudar instrumento de cordas. Eu mesmo fiz esta tuba, de um Volkswagen velho.
Deixa...
Num
tom sedutor, para a violista:
—
Eu represento os seus sonhos secretos. Sou um produto da sua imaginação
lúbrica, confessa. Durante o Mozart, neste quarteto antisséptico, é em mim que
você pensa. Na minha barriga e na minha tuba fálica. Você quer ser violada por
mim num alegro assai, confessa...
Finalmente,
desafiador, para o violoncelista:
—
Esse bigode ruivo. Estou reconhecendo. É o mesmo bigode que eu usava em 1968.
Devolve!
O
tocador de tuba e o violoncelista atracam-se. Os outros membros do quarteto
entram na briga. A plateia agora grita e pula. É o caos! Simbolizando, talvez,
a falência final de todo o sistema de valores que teve início com o iluminismo
europeu ou o triunfo do instinto sobre a razão ou ainda, uma pane mental do
autor. Sobre o palco, um dos resultados da briga é que agora quem está com o
bigode ruivo é a violista. Vendo-a assim, o tocador de tuba pára de morder a
perna do segundo violinista, abre os braços e grita: "Mamãe!"
Nisso, entra no palco uma manada de
zebus.
Luís
Fernando Veríssimo, in O analista de Bagé
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