sábado, 5 de abril de 2014

Cena VI - (um bom "arranjo")

Limoeiro — Então o que diz do nosso doutor?
Chico Bento — Não é de todo desajeitado.
Limoeiro — Desajeitado! É um rapaz de muito talento!
Chico Bento — E diga-me cá uma coisa: a respeito de política, quais são as idéias dele?
Limoeiro — Tocou o tenente-coronel justamente no ponto que eu queria ferir.
Chico Bento — Omnibus tulit puntos, quis miscuit util et dolcet.
Limoeiro, gritando — Olá de dentro? Tragam duas cadeiras. O negócio é importante, devemos discutir com toda a calma.
Chico Bento — Estou às suas ordens (Entra um negro e põe as duas cadeiras em cena). Tem a palavra o suplicante. (Sentam-se.)
Limoeiro — Tenente-coronel, cartas na mesa e jogo franco. É preciso arrumar o rapaz; e não há negócio, neste país, como a política. Pela política cheguei a major e comendador, e o meu amigo a tenente-coronel e a inspetor da instrução pública cá da freguesia.
Chico Bento — Pela política, não, porque estava o parti-do contrário no poder; foi pelos meus merecimentos.
LIMOEIRO — Seja como for, o fato é que, apesar de estar o meu partido de cima, o tenente-coronel é e será sempre a primeira influência do lugar. Mas vamos ao caso. Como sabe, tenho algumas patacas, não tanto quanto se diz…
Chico Bento — Oxalá que eu tivesse só a metade do que possui o major.
LiMOEiRO — Ouro é o que ouro vale. Se a sorte não o presenteou com uma grande fortuna, tem-lhe dado, todavia, honras, considerações e amigos. Eu represento o dinheiro; o tenente-coronel a influência. O meu partido está escangalhado, e é preciso olhar seriamente para o futuro de Henrique, antes que a reforma eleitoral nos venha por aí.
Chico Bento — Quer então que.. .
Limoeiro — Que o tome sob a sua proteção quanto antes, apresentando-o seu candidato do peito nas próximas eleições.
Chico Bento — Essis modus in rebus.
Limoeiro — Deixemo-nos de latinónos. O rapaz é meu herdeiro universal, casa com a sua menina, e assim conciliam-se as coisas da melhor maneira possível.
Chico Bento (com alegria concentrada) — Confesso ao major que nunca pensei em tal; uma vez, porém, que este negócio lhe apraz…
Limoeiro — é um negócio, diz muito bem; porque, no fim de contas, estes casamentos por amor dão sempre em água de barreia. O tenente-coronel compreende… Eu sou liberal.. . o meu amigo conservador…
Chico Bento — Já atinei! Já atinei! Quando o partido conservador estiver no poder.. .
Limoeiro — Temos o governo em casa. E quando o partido liberal subir.. .
Chico Bento — Não nos saiu o governo de casa.
Limoeiro (batendo na coxa de Chico Bento) — Maganão!
Chico Bento (batendo-lhe no ombro) — Vivório! E se se formar um terceiro partido?.. . Sim, porque devemos prevenir todas as hipóteses. . .
Limoeiro — Ora, ora.. . Então o rapaz é algum bobo? Encaixa-se no terceiro partido, e ainda continuaremos com o
governo em casa. O tenente-coronel já não foi progressista no tempo da Liga?
Chico Bento — Nunca. Sempre protestei contra aquele estado de coisas; ajudei o governo, é verdade, mas no mesmo caso está também o major, que foi feito comendador naquela ocasião.
Limoeiro — é verdade, não o nego; mudei de ideias por altas conveniências sociais. Olhe, meu amigo, se o virar casaca fosse crime, as cadeias do Brasil seriam pequenas para conter os inúmeros criminosos, que por aí andam.
Chico Bento — Vejo que o major é homem de vistas largas.
Limoeiro — E eu vejo que o tenente-coronel não me fica atrás.
Chico Bento — Então casamos os pequenos… Limoeiro — Casam-se os nossos interesses… Chico Bento — Et cetera e tal…
Limoeiro — Pontinhos… (Vendo Henrique) Aí vem o rapaz, deixe-me só com ele.
Chico Bento — Fiam voluntatis tue. Vou mudar estas botas. (Sai).
França Júnior, in Como se fazia um deputado

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