terça-feira, 23 de abril de 2013

Palavras, raras

Verdadeiramente nunca falamos um com o outro.
Sem dúvida teremos dito algumas palavras, mas essas palavras, raras, terão mais o valor de gestos, de carícias, do que o sentido das complexas construções mentais da linguagem. A nossa intimidade foi porém total.
Dessa intimidade, bruscamente interrompida pelo acidente na banheira, não guardei um álbum de imagens que possa rever enternecido nos longos serões de inverno que nos aguardam no futuro. O universo tem em comum a textura, a cor e o brilho dos olhos humanos, da íris cheia de móveis profundidas, do abismo interior das pupilas.
Ignorávamos a pobre decoração dos quartos, a angústia dos espaços, a áspera textura de sensações da cidade.
A comunicação fazia-se ao nível do plano próximo dos olhos, ao nível da pele dos corpos nus em contato, pela troca permanente dos hálitos, pela invasão gradual dos sentidos donde as outras imagens iam sendo afastadas para distantes regiões da memória.
Da intimidade fizemos um destino. Apropriamo-nos dos domínios interiores das experiências que trazíamos até a fusão numa vida única e num corpo único, apenas mascarada pela farsa absurda e ridícula da morte.
Júlio Moreira, in O insecto perfeito

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