“Desabafo
dum amigo, que não encontra justificação para o seu pecado mortal, que é viver.
Viver ao sol, gratuitamente, como um lagarto. Respondi-lhe que a maravilha da
vida é tudo nela ter justificação. É, da mais rasteira erva ao mais nojento
bicho, não haver presença no mundo que não seja necessária e insubstituível.
Que, do contrário, era faltar na terra esta admirável plurivalência, que faz de
uma tarde de sol, de trigo e de cigarras o mais assombroso espetáculo que se
pode ver. O medir depois a distância que vai da formiga ao leão, da urtiga ao
castanheiro, de Nero a S. Francisco de Assis, é uma casuística que não tem nada
que ver com a torrente de seiva que inunda o mundo de pólo a pólo.
Foi-se, e à tarde apareceu-me com um belo
poema.”
Miguel
Torga, in Diário
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