A grande casa verde, de 16 cômodos, casa dos Braga onde Rubem Braga nasceu
Volto,
como antigamente, a esta grande casa amiga, na noite de domingo. Recuso, com o
mesmo sorriso, a batida que o dono da casa me oferece, e tomo a mesma
cachacinha de sempre. O dono da casa é o mesmo, a cachaça é a mesma, a casa,
eu… E tantas vezes vim aqui que não tomo consciência das coisas que mudaram.
Sento-me, por
acaso, ao lado de uma jovem senhora, amiga da família, e a conversa é tranquila
e morna. Mas de repente, a propósito de alguma coisa, ela diz que se lembra de
mim há muito tempo. “Você vinha às vezes jantar, sempre assim, de paletó e sem
gravata. Sentava calado, com a cara meio triste, um ar sério. Eu me lembro
muito bem.
Eu tinha seis
anos… “
Seis anos!
Certamente não me lembro dessa menina de seis anos; a casa sempre esteve cheia
de meninas e mocinhas, há pessoas que eu conheço de muitos domingos através de
muitos anos, e das quais nem sequer sei o nome. Pessoas que para mim fazem
parte desta casa e desses domingos, visitando esta casa.
A primeira
recordação que tenho dessa jovem é de uma adolescente que às vezes dançava no
jardim. Era certamente linda; mas não creio que tivéssemos trocado, através dos
anos, mais de duas ou três frases ocasionais. Sempre tive a vaga impressão de
que, por algum motivo imponderável, ela não simpatizava comigo. Só agora me dou
conta de que a vi crescer, terei sido uma distraída testemunha de seus flertes,
seu namoro; lembro-me de seu noivado, lembro-me quando se casou, sei que hoje,
ainda tão moça, tem dois filhos – e a maternidade veio definir melhor sua
radiosa beleza juvenil.
Inutilmente
procuro reconstituir a menina de seis anos que me olhava na mesa, e me achava
triste. E não faço a menor ideia do que ela soube ou viu a meu respeito durante
esses inumeráveis domingos. Certamente fui sempre, para ela, uma figura
constante, mas vaga – um senhor feio e quieto, que ela se acostumou a ver
distraidamente de vez em quando, as vezes com um ano ou mais de intervalo, que
viaja e reaparece com a mesma cara e o mesmo jeito. Tomo consciência de que é a
primeira vez que conversamos os dois, ao fim de tantos anos de vagos “boa-noite”
e “como vai?” mas nossa conversa tranquila e trivial me emociona de repente
quando ela diz: “eu tinha seis anos…”
Penso em tudo o
que vivi nestes anos – tanta coisa tão intensa que veio e foi – e penso na
casa, no dono da casa, na família, na gente que passou por aqui. A casa não é
mais a mesma, a casa não é mais casa, é um grande navio que vai singrando o
tempo, que vai embarcando e desembarcando gente no porto de cada domingo:
dentro em pouco outra menina de seis anos, filha dessa menina, estará sentada
na mesma sala, sob a mesma lâmpada, e com seus dois olhinhos pretos verá o
mesmo senhor calado, de cara triste – o mesmo senhor que numa noite de domingo,
sem o saber, se despedirá para sempre e irá para o remoto país onde encontrará
outras sombras queridas ou indiferentes que aqui viveram também suas noites de
domingo – e não voltaram mais.
Rubem
Braga, in Para gostar de ler - crônicas
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