Davam para o beco fundos de quintal, pela maior parte
de varas de marmeleiro, e era ao fundo barrado por um estaleiro de barcos
pequenos. Era o tempo em que apareciam almas do outro mundo e, sendo o beco
onde mais se davam as aparições, ficou com a indicação de Beco das Almas.
Tinha mesmo um aspecto mal-assombrado, de noite,
pelas velas que os parentes iam acender ao pé das cercas, justamente no local
teriam sido vistos seus mortos.
Havia na cidade uma velhinha devota das almas que, toda
boquinha da noite, a cabeça coberta por um pano preto, ia acender uma vela e
depositar uma rosa branca no meio do beco, pelo descanso das almas penadas. Em
seguida, ajoelhada no local, rezava suas preces. Com o tempo, e por isso,
veio-lhe o outro nome – Dona Maria do Beco.
A velhinha dava o cavaco, e era porque também havia na
cidade uma mulher com o mesmo nome do batismo, e a mesma alcunha bem antes
dela, a velhinha, e que, mais nova, costumava levar seus homens para dentro do
beco.
Até o vigário da paróquia, nas suas homilias, pedia ao
povo fiel que lhe poupasse, a Dona Maria dos Anjos, o nome civil de Dona Maria
do Beco, o duvidoso apelido, isto de confundi-la com a outra. Não lhe ficava
bem, até pelo respeito que se lhe devia à idade, extensivo à honrada família,
filhos e netos, noras e genros. Não lhe fizessem tanta maldade.
Um dia morreu Maria do Beco, a primeira dona do nome, e
noite não havia em que não lhe aparecesse a alma dentro do beco, e com gestos
obscenos, entre gargalhadas devassas mostrando as duas presas de ouro que tinha
em vida.
Não demorou, e o Beco das Almas passou a ser chamado
por outro nome o Beco de Maria. O que, para a grande maioria de habitantes,
soava como agressão aos brios da decência da cidade, era uma mulher de vida
depravada enquanto vida mortal tivera neste mundo.
Indicava-se que a prefeitura bem poderia encontrar um
jeito de salvar a cidade dessa mancha vergonhosa, que seria espalhada adiante
pelos de fora, naturalmente contando a origem desse nome, para vergonha da
cidade – de povo honrado e temente a Deus.
Foi o caso que o prefeito, de
acordo com os reclamos honestos do seu povo, se decidiu por estimular
construções ali nos fundos de quintal, a prefeitura contribuiria quando
pudesse, de modo que a fisionomia de beco desaparecesse sob a forma de rua ou
travessa, com nome oficial inaugurado em placa. Os quintais, todos, ofereciam
terreno para tanto, largura e fundo. Realizado em pouco semelhante propósito, com
adesão do vigário, do delegado, dos figurões da cidade enfim, hoje o Beco das Almas,
depois ultrajado como Beco de Maria, ostenta a dignidade de Travessa Dona Maria
dos Anjos, qualquer coisa assim a título de compensação da ofensa, mas sem
maldade, à boa velhinha devota das almas.
José Nicodemos, in Outras Palavras, Jornal de Fato
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