Firmina
detinha a chave do cemitério, uma chave preta, grande e enferrujada que nenhum
menino queria ver, e vivia de pequenas quantias que lhe dava a família do
morto.
Recebia
pouco ou quase nada dos enterros pobres de rede. Fazendo as contas, eram os anjinhos, nos seus caixões cor de rosa
ou azuis, que remediavam a sua velhice de pernas tortas. Vindos de todos os
cantos daquele sertão miserável de moscas e espinhos, obrigavam o sacristão a
bater o sino todos os dias – o repique fino e ligeiro acompanhando os cortejos
dos inocentes até a entrada do cemitério.
Ouvia-se
em qualquer casa do povoado o reco-reco do serrote, o martelo do carpinteiro
pregando as tábuas do caixão. Imaginava-se a plaina aparando a madeira
encontrada nos arredores, ainda fresca e perfumada. Diante desses e outros
anúncios da morte, os parentes tomavam o cuidado em batizar cedo as crianças,
para que não ficassem errando no outro mundo, perdidas no limbo.
Morriam
sedentas, os lábios ressecados pela febre. O choro, que no começo era alto,
esgoelado, ia aos poucos se aquietando, até silenciar entre gemidos e
convulsões. Era a hora em que apareciam as moscas, ninguém sabe de onde, e
pousavam insistentes nos olhos roídos. Depois vinham as flores e as meninas,
que chegavam inquietas com sombrinhas estampadas e vestidos de laço.
Firmina
não se importava com esse morticínio, pois carecia dos anjos para viver. Pela manhã, sem nada para comer, circulava a
praça da cidade, o xale puído nos ombros. Cantava baixinho, para ela mesma, a
cantiga de louvor de sua preferência – “Meu anjo de asa, meu São Serafim, você
vai pro céu, num galho de alecrim”-, requerendo a Deus mais enterro.
Voltava
da bodega com um cacho de banana colado ao peito, apoiando-se na bengala de
mulungu cheia de nós. Quebrado o jejum, sentava-se num tamborete. Que era o
único móvel da casa, e rezava e terço. De olhos cerrados, apenas os lábios se
moviam.
Nunca
se soube das intenções de sua reza. Para alguns pedia os cortejos, mas para
dona Deolinda que envelheceu com a ingenuidade de uma moça, Firmina rogava
favores para as almas. O mais provável é que nos embaçamentos da velhice e nos
limites da precisão, andasse misturando os motivos.
Com o tempo foi ficando sozinha, isolada,
até o dia em que morreu entrevada, e foram necessários cinco homens para estica-la
no caixão da prefeitura.
Demétrio
Vieira Diniz, in Sob o céu de Natal
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