Morreu hoje, aos 66 anos, na CTI do Biocor de Nova
Lima, Minas Gerais, um gigante da música brasileira: Wando,
compositor de algumas pérolas conhecidas por uma legião de brasileiros, cantor
de extraordinários recursos técnicos, exímio violonista, pioneiro no
desbravamento de uma série de temas tabu durante a ditadura – como a
homossexualidade ou a organização popular nas favelas –, Wando foi conhecido,
sobretudo, como um artista de palco. Quem viu ao vivo, não se esquece. A partir
do final dos anos 70, quando dá a guinada melosa-romântica com a qual ficaria
conhecido, Wando desenvolve uma persona inconfundível. Galã e sedutor, ele
passava longe da figura do machão. Era pura delicadeza. Levava o público feminino
à loucura, mas não provocava nos homens temor ou desconforto. Tinha um jeito
suave de desarmá-los. Associado ao “cafona” ou ao “brega”, era reconhecido –
por qualquer um que tivesse prestado um mínimo de atenção – como um artista no
nível dos grandes da música brasileira popular.
Natural do arraial de
Bom Jardim, em Minas Gerais, e registrado em Cajuri, ao lado da velha ferrovia
Leopoldina, Wanderley Alves dos Santos cursou o ensino fundamental em Juiz de
Fora e daí foi para Volta Redonda. Trabalhou como leiteiro, feirante, motorista
de caminhão. Estudou violão clássico, mas abandonou-o quando viu que o queria
mesmo era “tocar para as moças”. Começou a fazer canções românticas e passou
por uma etapa comum na época, os conjuntos de baile. Quando a música passou a
“atrapalhar” na feira, Wando se mudou para Congonhas do Campo, em Minas Gerais,
onde ficou durante cinco anos e pela primeira vez ganhou dinheiro com música,
num grupo chamado “Escaravelhos”. Ainda em Congonhas, ele compôs o seu primeiro
sucesso, que depois seria gravado por Jair Rodrigues: “O importante é ser
fevereiro”, e logo depois se mudou para o Rio de Janeiro, levando emprestado,
sem avisar, o violão de um amigo.
A passagem rápida pelo
Rio não deu certo, e o começo mesmo viria em São Paulo. Hospedado num hotel
popular na Rua Timbiras, ele conheceu um dentista que o apresentaria a Jair
Rodrigues. Jair se apaixona por “O importante é ser fevereiro” e trinta dias
depois, Wando era sucesso nacional como compositor, na voz de Jair, e logo em seguida
sucesso também como intérprete, com o compacto “Maria, Mariá”. Seu primeiro LP,
de 1973, “Glória a Deus e samba na terra”, mostrava Wando de camiseta sem
manga, cabelão black power e pose intimista com o violão. É uma das capas
antológicas da época. Sucesso no carnaval de 1974, Wando já pôde comprar seu
primeiro carro, um Opala vermelho. Voltou a Congonhas para a devolver o violão
do amigo, enquanto emplacava mais um sucesso como compositor, “Vá mas volte”,
na voz de Ângela Maria.
Em 1975, Wando chegava ao ápice: “Moça”,
tema da novela Pecado Capital, de Janete Clair,
vendia nada menos que 1,2 milhão de cópias. Magnífica pérola pop, com uma linha
melódica e um arranjo que deixavam entrever a formação clássica
de Wando, mas que mostravam seu total domínio da forma canção, uma letra que
timidamente anunciava o jeito Wando de lidar com temas difíceis, relacionados
aos espinhos do amor (sei que já não és pura / teu passado é tão
forte / pode até machucar), “Moça” foi desprezada como “cafona”
pelos emepebistas da época, mas 37 anos depois ela ainda é cantada não só no
Brasil, mas em outras latitudes.
Em 1977, Wando desbravou novo território, com a
composição “Presidente da favela”. Ela rendia homenagem ao líder comunitário
Dalvino de Freitas, que impressionou Wando durante uma de suas participações no
programa de Aírton Rodrigues, na TV Tupi: que sirva de exemplo / a todas
as favelas brasileiras / arranjem um presidente / de boas maneiras / que a vida
lá no morro será bem melhor. A letra jogava com um duplo sentido:
homenageava o “presidente da favela”, mas subrrepticiamente mostrava a ausência
de um presidente como aquele – da favela – no país. Quando se fala de protesto
político na música dos anos 70, em geral pensamos na MPB intelectualizada. Mas
nenhuma canção de Chico ou Caetano teve, sobre as formas de organização das
comunidades urbanas mais pobres, o impacto que teve “Presidente da favela”, de
Wando.
Mais pioneirismo viria em 1978. Wando ainda não era
conhecido como “obsceno”, mas a canção “Emoções” foi uma das primeiras da época
a falar abertamente de homossexualidade masculina, logo depois do desbravamento
do tema realizado por outro artista considerado “cafona”, Agnaldo Timóteo. A
letra de “Emoções” (a lua iluminou teu corpo / moreno bonito pra
me provocar) não deixava dúvidas, era explícita quanto ao
homoerotismo, e a canção por pouco não foi censurada. O pioneirismo de Wando no
tratamento tanto da organização popular na favela como da homossexualidade
masculina passaram completamente desapercebidos pelos estudiosos de música
brasileira, sempre dispostos a privilegiar a MPB intelectualizada, até ser
notado por Paulo César de Araújo, no seu grande livro Eu não sou cachorro, não: Música popular cafona e ditadura militar (Record,
2002).
Nos anos 80, quando começaram a associá-lo ao
rótulo de “obsceno”, Wando fez o que faz todo grande artista: apropriou-se do
rótulo redutor e reinventou-o, trazendo-o para o seu terreno e conferindo-lhe
mil outros sentidos. Compôs e gravou seu grande sucesso, “Fogo e Paixão”, e percebeu, segundo suas palavras, que se você virar uma calcinha de cabeça para baixo ela se transforma
uma tenda. O disco Tenda dos Prazeres faz
enorme sucesso e os shows de Wando se converteram em verdadeiras apoteoses de
liberação simbólica feminina. É um fenômeno único na música popular. Nas palavras do próprio Wando: Na verdade, quem fez a minha coleção de calcinhas, nem fui eu,
foram as mulheres que faziam questão de jogar suas calcinhas no palco durante
meus shows… Os homens acabam percebendo que sou um aliado deles e não um
inimigo. Acabam aprendendo com as dicas que dou. Mulher adora ser chamada de
gostosa. Sempre. Já para chamar de safada você tem que saber o momento certo.
Folclorize-se o quanto
se quiser as histórias com calcinhas, mulheres infláveis, sorteios de entradas
para motéis e receitas de sedução. Wando não se importaria – ele jogava com
isso. Mas não se esqueça também de que morreu hoje um gigantesco artista, uma
enorme figura daquela forma de arte que é o nome do nosso ser, nosso único e
verdadeiro passaporte para a eternidade: a música brasileira popular.
Vai na fé, Wando.
Obrigado por tudo.
Idelber Avelar, in revistaforum.com.br
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