quinta-feira, 7 de julho de 2011

Fábulas fabulosas, de Millôr Fernandes

Um Dia de Cão

Chegou em casa pelas últimas. Não aguentava mais. Jogou a pasta no chão da sala, jogou-se ele próprio em cima do sofá sem nem tirar o paletó e, quando o filho entrou vindo da rua, estranhando ele ali, desolado, na semiescuridão da sala, perguntou, assustado: "Que é que foi, papai, o senhor tem alguma coisa?" Ele, pela primeira vez na vida, desabafou, atirou tudo que tinha dentro de si em cima do garoto de 8 anos, de olhos arregalados:
"Ah, meu filho, coitado do teu pai: foi um dia terrível! Eu e a tua mãe, você sabe, ela te telefonou, logo de manhã assinamos o desquite. Eu esperava que o juiz mandasse dar a ela 6.000 por mês mas ele decretou 12.000 e eu ainda tive que pagar, na hora, todas as despesas do advogado, meu e dela: 83.000,73 cruzeiros. Assinei ali mesmo uns cheques pré-datados que ambos os advogados aceitaram.
"Ao sair, abatido, descobri, na rua, que meu carro tinha sido rebocado. Quando consegui localizar o carro na inspetoria, os desgraçados tinham, ao rebocá-lo, amassado toda a frente e quebrado a caixa de mudança. Mas disseram que é assim mesmo, que isso às vezes acontece. Paguei multa, reboque, seguro obrigatório atrasado, fiz novo exame de vista - de agora em diante vou ter de guiar com óculos - e deixei o carro na oficina, pra consertar.
"Quando cheguei no escritório soube que vão mesmo desapropriar o prédio por causa do metrô, tendo que me mudar em quinze dias. Minha secretária, grávida de seis meses, que só estava esperando essa decisão, se demitiu na mesma hora.
"Do laboratório, o médico telefonou e disse que tenho que tomar muito cuidado com a minha pressão porque, com minha diabete e um princípio de anemia, qualquer coisa no coração pode ser fatal. Liguei pro meu corretor pra vender umas ações a fim de pagar todas as despesas do dia, mas ele me disse, aborrecido, que a corretora tinha sofrido uma intervenção, devido a inúmeras irregularidades, inclusive desfalques. Eu então resolvi não trabalhar mais - na verdade não tinha trabalhado nada - e vir para casa, mas não consegui nem um taxi porque começou a chover torrencialmente.
"Vim a pé da cidade até aqui, embaixo da maior chuva, mas, quando cheguei aí na esquina, me lembrei de que tinha esquecido as chaves no escritório. Aí eu não aguentei e comecei a chorar em plena rua. Ah, meu filho, foi o dia mais terrível da minha vida!"
O menino, tristíssimo, perguntou apenas: "Mas, papai, quando é assim, por que é que o senhor não muda de canal?"

MORAL: A SALVAÇÃO ESTÁ NA TECNOLOGIA.

Nenhum comentário:

Postar um comentário