quarta-feira, 25 de maio de 2011

Outro Melville

Vocês podem chamá-lo de Melville. O autor de uma das aberturas mais marcantes da literatura universal, Herman Melville, é daqueles nomes cuja representação se confunde com o magnetismo exercido por sua magnum opus — no caso, o clássico Moby Dick, narrativa sobre uma obsessão que transcende as páginas da literatura para tomar forma em exemplos mais cotidianos. Até mesmo em seriados televisivos, como é o caso da comédia Seinfeld, a idéia de “baleia branca” aparece nos diálogos dos personagens. Se um livro alcança esse status, não é pouca coisa dizer que seu autor conseguiu atingir um patamar elevado na literatura, sem levar em consideração toda a relevante fortuna crítica que se faz a respeito do texto. Mais recentemente, a propósito, os leitores brasileiros puderam, com efeito, descobrir outras obras que compõem o edifício literário do autor. Assim, textos como Baterbly, o escrivão (cuja edição mais prestigiosa é a da CosacNaify) mostram que a força criativa do autor reside não apenas no seu épico romance, mas, também, nas narrativas curtas. Na apresentação de O violinista e outras histórias, Caetano Galindo desenvolve um pouco essa reflexão. Nas palavras do professor e tradutor, “a reputação inquestionável de Moby Dick tem servido também para ocultar o restante de uma obra que guarda surpresas interessantíssimas”.
Em O violinista e outras histórias, o leitor tem a chance de descobrir mais dessas surpresas interessantes. A seleta da editora Arte e Letra traz sete histórias que salientam as características já conhecidas de Melville, ao mesmo tempo em que apresenta sua versatilidade nas histórias curtas. Aqui, de antemão, o leitor não encontrará um texto norteador, daqueles que já vem com as notas de rodapé sublinhadas e comentadas pela crítica especializada. Em vez disso, chama a atenção o fato de que o autor envolve seus textos com certa aura de mistério, de maneira a fazer com que o seu desfecho seja inesperado. Não seria o primeiro escritor a fazê-lo. O que se nota com destaque, no entanto, é que em Melville as estratégias da narrativa se transformam em ironia em vez de convenção literária. Um belo exemplo disso é o conto que abre o volume: O violinista. A abertura do conto traz uma espécie de lamento, conforme segue: “Então meu poema é maldito e a fama imortal não é para mim! Sou um ninguém para todo o sempre. Destino inexorável!”. Lido apenas como trecho pertencente à literatura do século 19, mesmo os leitores mais experimentados tendem a ver aqui a simples execução da linhagem romântica: o eu lírico e a voz subjetiva do narrador. A traição a esse lugar-comum é que faz do conto uma peça interessante. Afinal, à medida que a história avança, o leitor é apresentado a um contraponto desse primeiro personagem, que, como se lê, tem mais a mostrar sobre o fazer artístico do que reza a simplória subjetividade.
De forma semelhante, em O homem dos pára-raios, lê-se uma história cuja mensagem principal pode ser a do elogio ao ceticismo. O mistério que envolve o visitante de uma noite chuvosa aos poucos vai sendo revelado como um embuste que se torna assustador graças à fé cega (e ao temor absoluto) que, grosso modo, o ser humano possui em relação ao desconhecido. Dessa maneira, o que se inicia como um diálogo de dois, logo se transforma em duelo entre duas visões de mundo, e fica claro para o leitor qual é a posição tomada pelo narrador: “o homem dos pára-raios ainda habita a região; ainda viaja em dias de tormenta para, audaciosamente, explorar os temores humanos”. O conteúdo ou sentido dos textos não pode nem deve ser confundido com o estilo do autor. Em verdade, nota-se na prosa de Melville um autor consciente do poder e do uso das palavras. Dito de outra maneira, o autor não coloca em risco a beleza literária do texto sob o argumento de que a mensagem é mais importante. A utilização da descrição em detalhe, mais do que caracterizar um cenário ou sublinhar o estilo ao qual o autor pertence, serve bem para provocar no leitor um efeito de envolvimento com a história.
Se é verdade que os escritores tentam isso, é necessário lembrar que nem todos alcançam esse intento, e Melville é um desses poucos. Num conto como Eu e minha chaminé, os leitores têm a comprovação disso constantemente. Isso porque o texto não teria o mesmo efeito não fosse pelas descrições que servem a dar uma espécie de tecido peculiar à narrativa: Embora larga, como a chaminé se mostra acima do telhado, não se tem idéia de sua extensão na parte de baixo. A base, no porão, forma um quadrado, cujos lados medem doze pés; donde se conclui que ela cobre uma área de cento e quarenta e quatro pés.
Galeria dos grandes
Já no texto A varanda, o escritor opta pela traição das expectativas dos leitores, algo que geralmente é pouco valorizado na observação dos estilos e da capacidade de imaginação mesmo em se tratando de narrativas curtas. De volta ao prefácio, Caetano Galindo acrescenta que o conto merece estar na galeria de grandes momentos da prosa em língua inglesa. Não é por menos, muito embora a tradução tenha escorregado e deixado passar trechos como “Outra alternativa”, algo que não pertence ao texto original. De todo modo, observa-se aqui características elementares das formas breves de Melville: as primeiras impressões do mundo e da realidade, a partir de certo momento, mostram-se visões equivocadas, não resistindo à evidência dos fatos, ou, à maneira do autor, um ponto de vista irônico sugerido pelo autor. Como se trata do conto mais extenso do livro, é concedida a chance de ver essa capacidade narrativa do autor em diversos momentos.
A leitura contemporânea de textos como O paraíso dos solteirões e O inferno das donzelas, contos que encerram o volume, pode servir para eliminar vestígios de incorreção política por parte do autor. Afinal, permanece a capacidade de o autor subverter o que o público médio espera e, no primeiro caso, observar o cinismo da sociedade, enquanto, no segundo, mostra a condição à qual as mulheres são submetidas. Trata-se não apenas de uma leitura válida, como também necessária, a depender do objetivo da interpretação. Uma leitura menos sofisticada do ponto de vista acadêmico há de constatar, no entanto, que esse alvo foi alcançado mais pelo desejo de subverter a ordem do que para prestar continência à certa correção moral. Eis um dado curioso: para reverter os costumes daquele tempo, talvez o autor tenha se adequado aos costumes do tempo futuro. Talvez seja a prova mais determinante de que os textos de Herman Melville permanecem tanto pela fama de seu grande romance como também por seu talento literário em diversas formas, como em O violinista e outras histórias.

Fábio Silvestre Cardoso, in Rascunho, Gazeta do Povo, de Londrina

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