O milagre da poesia

Sou poeta
e como poeta posso ser engenheiro,
e como engenheiro
posso construir pontes com versos
para que pessoas possam passar sobre rios
ou apenas servir de abrigo aos indigentes.

Sou poeta
e como poeta posso ser médico,
e como médico
posso fazer transplantes de coração
para que pessoas amem novamente
ou simplesmente receitar poemas
para tristezas com alergias
e alegrias sem satisfação.

Sou poeta
e como poeta posso ser operário,
e como operário
posso acordar antes do sol e dar corda no dia,
e quando a noite chegar, serena e calma,
descansar a ferramenta do corpo
no consolo da família –
autopeças de minha alma.

Sou poeta
e como poeta posso ser assassino,
e como assassino posso esfaquear os tiranos
com o aço das minhas palavras
e disparar versos de grosso calibre
na cabeça da multidão
sem me preocupar com padre, juiz ou prisão.

Sou poeta
e como poeta posso ser Jesus,
e como Jesus
posso descrucificar-me
e sem os pregos nas mãos e os fanáticos nos pés
andar livremente sobre terra e mar
recitando poesia em vez de sermão.
Onde não tiver milagres,
ensinar o pão.
Onde faltar a palavra,
repartir a ação.

Sérgio Vaz, em Colecionador de pedras 

O Caçula

De volta da repartição, José pendura o chapéu no cabide, atira na mesa da sala a correspondência que retirou da caixa postal. Assim que ele entra no quarto, o velho Francisco, que estava à espreita, vem apanhar o jornal e a carta.
A mãe bate na porta e traz o prato na bandeja. Assiste ao almoço de José, sentado na cama, e põe um pouco de ordem no quarto. Antes de se afastar, a mão de leve na cabeça quase calva:
Meu filho, por que não conversa com seu pai?
Poxa, mãe... Nunca vai aprender?
Dez anos que não fala com o pai e faz as refeições no quarto. Até hoje os filhos, quase todos casados, não fumam na presença do velho; ai de quem esquecia de tomar a bênção pela manhã e antes de dormir! O caçula José, mimado pela mãe, único a desafiar sua prepotência.
Esse rapaz, Cecília, tem jeito não.
Estou velho demais, mãe, para pedir louvado.
Os filhos casaram e desertaram a família, ficou somente José. O pai, que persegue a coitada de dona Cecília, verifica antes se ele não está por perto. Envelhecem, ambos intransigentes no seu rancor, o ancião lépido aos setenta anos e José, bigode grisalho, na flor dos quarenta. Herda a roupa sovada dos irmãos e dona Cecília, escondida do marido, dá-lhe pequena mesada para cinema e cigarro.
José circulou algum tempo de pasta, com prospecto de seguro e amostra de chocolate. Não vendeu apólice alguma, suficiente a importância da pasta preta. As amostras ele mesmo comeu. Chegava em casa, o paletó nas costas, exausto. Afinal ocupava-se em recado e servicinho para a mãe.
Se lhe entregam um cheque para descontar, imediatamente aflito. Do jornal vê a página esportiva, perplexo que a Rússia é comunista. Rapaz bem mandado, embora incapaz de ganhar a vida. Romântico, duas vezes foi noivo. A primeira de uma Fagundes, gorducha e ruiva. O velho Francisco levantou o braço para o céu:
Onde é que esse rapaz tem a cabeça?
José desfez o compromisso — como sustentar a família se nada quer com o trabalho? — e não mais se falaram. A moça casou com outro, asinha se apartou. José em voz alta que o pai ouvisse lá da sala:
Aqui do bichão ela não esquece!
Noivado seguinte com a prima de terceiro grau, ao jeito de dona Cecília, que fez gosto no casamento. José não marcava a data e, cinco anos depois, a pobre se finou do peito. Uma tarde surgiu a tia na casa, reclamou as cartas da filha. José em dúvida se as teria ou não devolvido. Acompanhado das duas senhoras, vasculharam o quarto. Dona Cecília se desculpava das migalhas na cama. As cartas de amor perdidas no fundo de um baú…
Às festinhas de família comparece o irmão Agenor, preferido do pai. José volta bêbado de madrugada. A mãe traz-lhe a comida, ele se queixa, coçando a barba:
O menino de ouro vem aí. Dão o carro para ele. O menino querido sai de carro. E o bichão aqui não tem nada. Depois sou eu que vivo à custa do Chiquinho.
Respeite o seu pai, meu filho.
Quem, o Chiquinho? Que se dê o respeito para as negras dele.
O pai espairece no jardim, braço dado com Agenor.
Olhe a calça caída do Chiquinho. O velho vai mal, hein, mãe? Já de pescoço fino.
Bebe durante a semana. No domingo, em cueca, peito cabeludo, folheia revista antiga e beberica leite com mel. A mãe censura a falta dos dentes.
Todos não, mãe. Veja, firme o canino. O Chiquinho quer a bênção, não é?
Deus te ouça, meu filho.
O canino de lhe morder a mão!
Não sossega a velha enquanto ele não chega. Muita madrugada envolve o xale na cabeça, vai brigar com o botequineiro:
O senhor é que desgraça meu filho. Não o deixa ir para casa. Aí nessa vida de perdição.
Defende-o das insinuações da família:
Nada como um moço em casa. Se entra um ladrão... O que pode um velhinho?
E olha dos lados, o grande Francisco não escute, ainda se considera mais homem que o filho.
Moço é diferente. Ele enfrenta o ladrão!
Famoso no tango com passinho floreado na pensão de mulheres, lenço de seda ao pescoço, chapéu de banda esconde a calvície:
Fiquei careca do elixir 914…
O velhinho aos beijos com uma negra! Há dez anos expulso do quarto sagrado!
...que deram ao Chiquinho.
Em desafio ao velho exibe-se ao sábado, no cinema, de braço não com uma, senão duas e três mulatas pintadas de ouro — por todas é amado de graça. E cada dia mais parecido com o pai, o mesmo andar de mãos cruzadas nas costas, o jeito de alisar o cabelo atrás da orelha.

Dalton Trevisan, em Cemitério de elefantes

A noite mais perigosa

Juro, acredite em mim – a sala de visitas estava escura – mas a música chamou para o centro da sala – uma coisa acordada estava ali – a sala se escureceu toda dentro da escuridão – eu estava nas trevas – senti que por mais escura a sala era clara – agasalhei-me no medo – como já agasalhei de ti em ti mesmo – que foi que encontrei? – nada senão que a sala escura enchia-se de uma claridade que não iluminava – e que eu tremia no centro dessa difícil luz – acredita em mim embora seja difícil explicar – sou alguma coisa perfeita e graciosa – como se eu nunca vira uma flor – e com medo pensei que aquela flor é a alma de quem acabara de morrer – e eu olhava aquele centro iluminado que se movia e se deslocava – e a flor me impressionava como se houvesse uma abelha perigosa rondando a flor – uma abelha gelada de pavor – diante da irrespirável graça desse bruxuleio que era a flor – e a flor depois ficava gelada de pavor diante da abelha que era muito doce das flores que ela no escuro chupava – acredita em mim que não entendo – um rito fatal se cumpria – a sala estava cheia de um sorriso penetrante – tratava-se apenas de um esbranquiçar das trevas – não ficou nenhuma prova – nada te posso garantir – eu sou a única prova de mim – e assim te explico o que os outros não entendem e me põe no hospital – não entendo que se possa ter medo de uma rosa – experimentaram com violetas que eram mais delicadas – mas tive medo – tinha cheiro de flor de cemitério – e as flores e as abelhas já me chamam – não sei como não ir – na verdade eu quero ir – não lamente a minha morte – já sei o que vou fazer e aqui mesmo no hospital – não será suicídio, meu amor, amo demais a vida e por isso nunca me suicidaria, vou mais é ser a claridade móvel, sentir o gosto de mel se eu for designada para ser abelha.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

o remorso de baltazar serapião | Seis


refaladas todas as coisas, era comigo que a ermesinda se casaria, duvidado de ascendência mas bom de aspecto, muito largo e viril, como aos melhores homens se pede que sejam. será um ajuizado chefe de família, reiterado na valentia e astuto nos recursos, está protegido por um misericordioso senhor, garante a nossa filha como se precisa, terá a sua mão e a nossa familiaridade, marquemos a hora para que se festejem nossos intentos e corações decididos. e eu humedeci os olhos, criado de emoção, apartei-me feliz, iludido com o amor como devia ser.
em maio era quando se casavam os noivos de sorte, escolhido o dia de são pancrácio, a velar-nos as juras, com as chuvas meio levantadas, os calores ainda previstos, a claridade dos dias muito imposta como supremacia do que se via sobre o que se sentia, e era como se via no ar essa cor tão forte que deixava felicidade pelos lugares. a igreja de cristo redentor estava aberta ao povo que quisesse participar, e era repleta de velhas que se tinha, a cheirar a mijo e suores, quando entrei e me puseram à espera da ermesinda no altar. também cheirávamos os mortos sepultados chão debaixo das pedras, mal tapados de narizes bicudos e mal dispostos. a nossa igreja estava repleta. não havia muitos mais buracos a abrir onde enfiar mortos sempre a morrer. as velhas, mijadas e paradas nos bancos, até pareciam acorrer ali para nada mais. mais, era o que se devia, acertar-lhes com um pé na nuca para as abater de vez. se lhes perguntássemos alguma coisa, não tinham disposição de entender. olhavam mesmamente para a frente como se vissem para depois da vida. o teodolindo, meu amigo, sentado de orgulho e banho ao pé de mim, sorria e soltava-se de gases na cara de uma velha vertida para o chão. que porcaria de estropício se haveria de sentar à frente, queixava-se ela. era porque onde ele queria ficar se havia metido a mulher sem reacção nenhuma, só como uma pedra morta a marcar lugar.
a cerimónia não teve grande ciência, abençoados pela confissão como estávamos, pedidos pelos pais para nos casarmos, nada se apoquentava com nosso acto e só praticá-lo era preciso. por isso foram ditas as palavras sem grande tempo e já a arca da ermesinda tinha sido levada para nossa casa tão preparada, e era como o seu enxoval ficaria guardado para nosso uso, muito dele para mais tarde, quando me autonomizasse verdadeiramente da casa dos meus pais e não estivesse a disfarçar o espaço que cabia aos animais. e era como dizia o aldegundes, revoltado com a expulsão da sarga, haviam de ser vocês, os dois, a peidar e a cagar o suficiente para aquecer a casa à noite se isso compete por natureza ao gado que se tem.
lá estava a sarga debaixo das madeiras mal seguras. realmente mal seguras, como, à pressa, ainda tive de ser eu a alojá-la. poderia fugir, chorava o aldegundes, vai fugir como parece fazer tanta força sempre que chove, vai esconder-se em lugar que desconhecemos e deixaremos de a ver. era cruel da minha parte alhear-me do seu sofrimento, e mais cruel dizer-lhe em surdina que se calasse dos pretextos pela vaca, não fosse viver um amor estouvado de porcaria e alguém notasse. não fosse o meu pai, passivo e desimportado, notar algum sinal da sua ainda burra masculinidade. não sejas burro, aldegundes, deixa-a a dormir assim, às vacas tanto se lhes dá os confortos, e a sarga quando se assusta faz um grande temporal, nada do que temos esta noite. o meu pai não foi a vê-la, não se inteirou do coberto que lhe fizera eu, e ela estava metida debaixo das madeiras em espaço exíguo, e o meu pai nem perguntara que fora da vaca, já bom tempo decorrido no meu casamento. estava para a cama mais cedo que minha mãe, e ordens claras, todos a dormir que não queria nem fogo nem barulho acesos a impedirem-no de descansar. a sarga estava calada, o aldegundes calou-se, eu e a ermesinda gememos, sem custo, gememos.
uma virgem, de sangrar e tudo, mas que não é feita mulher pelas dores, que poderia significar, perguntava-me eu. nem por um só momento imaginei que se faria mulher sem dores, num silêncio só gemido como naturalmente um casal geme já tempo decorrido. como meus pais, sem novidade ou esforço, apenas o gasto esperado e remediado da rotina. não que fosse destituído de prazer ou forçado à euforia pela novidade, mas que a novidade lhe fosse tão simples e benfazeja da partida à chegada. sob mim a receber os meus jeitos em paz de proveito, muito delicada sem dizer palavra que me quisesse pedir maior cuidado ou carinho. nada. e o lençol sujou-se de sangue e assim o apresentámos aos meus pais para que surdamente se espalhasse o orgulho de toda a família. o teodolindo, jurando por nós nos votos religiosos, abriu os dentes em flor, bateu-me nas costas muito amigo e disse-me, chegaste bem à idade adulta, tens mulher e honra com que te servir. não percas nada. eu tive toda a ideia disso. enchi o peito de mim, feliz de ser quem era. só mirrei um bocado à lembrança de que ele, o teodolindo, o meu melhor amigo, estava ainda longe de se prender. tens recordações em demasia das partes da natureza, tens de esfriar por baixo e ver as raparigas por cima. esquivava-se nas árvores, desaparecia, metido para os seus segredos sem mais conversa.
disse à minha ermesinda que se estendesse nua na cama. que eu a queria ver à luz da vela, muito próxima de cada pedaço da sua pele. ela pareceu acalmar quando lhe pus a mão suave no contorno da anca. lembrei-me, toca-lhe com leveza, tal fosse coisa de partir da casa de dom afonso. porcelana da colecção de dona catarina, faz de conta que, se errares, não voltas a ter tamanha felicidade e deves ter por tal momento todo o cuidado possível. toca-lhe por amor. e assim fiz, segundo as palavras do senhor santiago. depois, ela perguntou se teria de ganhar barriga por cada vez que eu a conhecesse. e eu sorri com sua burrice, e até a amei mais ainda, por corresponder perfeita à estupidez que se espera numa mulher. puxei-lhe a cabeça para trás e busquei-a pelo meio de mim, e ela ali ficou paciente a encontrar-se pelo interior dos buracos sem grande surpresa.
mandada a lavar os lençóis em discrição, ermesinda portou-se como tal, a esbranquiçar o seu sangue com dedicação. e muito diferente se pendurou aquele linho à vista do sol e de todos, esperado por dom afonso à boca das suas janelas, acordado cedo como à espera ansioso de que lá subíssemos para a apresentação combinada. e a correr nos fomos, os dois, no primeiro desmedo que tive de arranjar, liberto de meu pai para as coisas assim, entrado na casa grande para me honrar de virar homem de mulher e tudo. e a desmedo entrei, aberta a porta pela brunilde, que nos contara os minutos de chegar. uma palavra mínima, cortada à socapa para que se escondesse do que a casa pudesse ouvir, que ali dentro da casa tudo era passível de ser inteligente, era da figura e preciosidade das coisas, pareciam guardar vida incrível que se accionasse por poderoso feitiço à voz do proprietário.
era como nos sentíamos na casa de dom afonso, enterrados por preciosas peças que ornavam a casa, como eu imaginaria um castelo de el-rei. dom dinis, ele próprio, viveria ali de agrado sem queixa de qualidade ou luxo, era em que acreditava. parados, silenciosos de tudo como objectos a tremer, esperámos atentos que viesse chamado pela brunilde. esperámos, sem mais olhar que a porta por onde viria, e foi com um salto por dentro que o recebemos. sorrindo, bigode puxado pela mão para fremir os lábios e, que se visse, era claro que a ermesinda lhe agradava de beleza e frescura. e eu abençoei-me por ele de joelhos e agradeci infinitamente a oferta dos dois torneis, como gabei os aposentos em que tornámos o lugar da sarga. sim, essa vaca, dizia ele, quantos anos terá. talvez uns trinta, dom afonso. trinta anos que o teu pai a tem, parece impossível que não a tivesse desfeito em postas quando era de comer. meu pai tem apreço pela bicha, dom afonso. um apreço que lhe deu fama, rapaz. dom afonso saberá. uma mulher é melhor do que uma vaca, disso estou certo, do que o povo diz pouco me interessa, e a tua é uma bela mulher, viçosa nos modos, clara nos olhos, aberta nos membros. é muito bela, sim, como se regozija o meu amor por ela e mais ainda por se ter sem empecilhos ou maleitas. sim, bem vejo, rapaz, que tudo nela está aberto e pronto para a vida. se dom afonso o diz. digo mais, estou seguro que seu corpo se estenderá ao trabalho em grande rendimento e todos aproveitaremos do que souber fazer. por isso, sou capaz de jurar que fará da sua vinda para a nossa casa uma grande surpresa, como surpreso ficarei só de vê-la a cada dia e confirmar que existe tal beleza. assim, quero que passe todas as manhãs aqui a ver-me, deverá fazê-lo bem cedo antes dos horários de dona catarina, para que eu possa gerir o seu dia nos animais com atenção e especial cuidado. ouviste, rapaz, farei tudo para que seja feliz nos trabalhos e destino que lhe competem. se dom afonso o pede. agora vão, dona catarina levanta-se e há que tornar a casa desimpedida para os seus confortos.
naquele tempo o meu martírio começou. empoleirado nas bermas da casa, agarrado às janelas a desesperar de incerteza, fosse a ermesinda meter-se debaixo de dom afonso e que faria eu corno, apaixonado, morto de loucura por ela. nem meu pai me convencia, transtornado a deitar-me juízo cabeça abaixo, incapaz de me impedir de exercer a direcção devida no matrimónio que acabara de realizar. assim falávamos, que se estivesse posto dentro dela lhe arrancaria a cabeça numa só desgraça para toda a família. ou, se me esfriasse o pensamento e pudesse hesitar, talvez o matasse de venenos colhidos secretamente, cozinhados à sua boca com o auxílio da brunilde. senão, muitas cobras poderiam ser minhas presas por um tempo, até que as soltasse infalíveis no quarto do filho do demónio. mas nada da boca da ermesinda me confirmava, nem os olhos que lhe deitava às partes da natureza, abertas em bom sol, me diziam o que ali poderia ter entrado. e mesmo ao toque dos dedos nada parecia diferenciar os seus dias das nossas noites. e era como me enlouquecia, nada saber e saber apenas o que me queria confirmar dos bons intentos de dom afonso. ela dizia que entrava para a sala de grande nobreza para uma conversa muito rápida, em que o senhor lhe perguntava pelos queijos, tão apropriada das tarefas logo de início, e depois lhe desejava bom trabalho em simples continuação de instruções já dadas. mais nada. era como perder tempo, parecia, não acontecia mais nada. dizia-me a minha bela e calada mulher, olhos não abertos dos pés, delicadeza à minha mesa e na minha cama, como coisa branca que me impressionava.
era diariamente, como diariamente ali a mandou, e tudo o que eu fazia para os alcançar em conversa não era suficiente. nem pedido à brunilde o serviço se fazia, mandada embora com veemência, as portas fechavam-se para que nada visse ou ouvisse. e dom afonso não saía de lá a arfar, causado de rosadas faces, abafado de qualquer modo, trôpego, aflito de calores, odores, feridas tocadas, cabeça pesada, nada. saía por seu pé igual como entrara e, sem análise maior, nada parecia acusá-lo de comer a rapariga. puta que o pariu. porque andaria a recebê-la perdia sentido, e tempo decorrido desde a primeira vez, cada vez se parecia mais com um improvável jogo de gato e rato onde o rato, eu, não conhecia as regras. que mais podia senão mugir dia inteiro a trabalhar, furioso sem respostas, adormecido cada vez menos e acordado cada vez mais.
até o teodolindo posto em cuidado nada me dizia. podia fazer coincidir com a visita da minha ermesinda a sua entrega dos trajes do dia. mas não ouvia nada para lá da porta fechada da grande sala. atentamente entrava de orelhas aguçadas, entregava os delicados trajes de dona catarina aprumados de véspera e saía por mesmo pé e silêncio. não lhe parecia ser real que alguém se tivesse de sexo para lá daquela porta, que mesmo em modos meigos um dia haveria em que se soltaria um gemido revelador, um soluço de garganta engasgada, um tropeço no chão ou arrastar de uma cadeira. mas nada. afirmava o teodolindo por cima das notícias da brunilde, nada se ouvia porque nada devia estar a acontecer. claro, além disso, vozes, a voz de um e outro, espaçadamente, percebia-se baixinho, vindas de muito ao fundo da grande sala, sem contorno suficiente para organizar palavras. eram só sons de timbre e nenhuma definição.
como disse à minha ermesinda, ainda volto a pôr-me na teresa diaba só para sentir que conheço o bicho que tenho nas mãos. e ela corava de medo, talvez meus pais atentos a escutarem o que lhe dizia, e a minha mãe como pediria que não fosse bruto com ela. era porque lhe entortara o pé meu pai, descabido com ela num tempo em que eu era muito novo, e assim a ensinou de modos para sempre, tomada de respeitos por ele para o resto da vida, não quisesse que ele lhe entortasse também o outro. e eu acho que ela se escudava como vítima de quando em vez para que nos apiedássemos da sua condição de fêmea, mas eu nunca lhe admitiria que me chamasse a atenção para os tratos tão cedo dados a ermesinda, era porque algo me escapava ao entendimento, e desgraçada da mulher que saísse do entendimento do marido. por isso tudo devia estar bem explícito no seu espírito coarctado, mesmo mulher, determinadas coisas haveriam de ser passíveis de se manterem no seu espírito, coisas inclusive nada complicadas, como não pretender ter segredos para mim e não me encornar nunca. e se lhe dei o primeiro correctivo de mão na cara não foi porque não a amasse, e disse-lho, existe amor entre nós, assim te aceitei por decisão de meu pai que quer o melhor para mim, mas deus quis que eu fosse este homem e tu a minha mulher, como tal está nas minhas mãos completar tudo o que no teu feitio está incompleto, e deverás respeitar-me para que sejas respeitada. nada do que te disser deve ser posto em causa, a menos que enlouqueças e me autorizes a pôr-te fim. deitei-me, a minha mãe estremeceu no lado de lá da parede. o meu pai desconfiou do meu pulso para decidir da vida sozinho. o aldegundes arrepiou-se por todos, ali sozinho de mim, a saber que os nossos pais se juntavam menos na cama à noite, talvez imperfeitos também perante a minha juventude e da ermesinda, e a saber que cada um de nós se afastava para uma nova realidade, apartados pelas opções e papéis que nos eram destinados desde sempre. já não se levantava para acalmar a sarga, e a pobre vaca, talvez percebida de estar velha e pronta a morrer, deixava-se mais quieta e deitada fora, talvez temendo que as tábuas lhe partissem os ossos, se caídas com um coice que lhes desse. e o aldegundes já nada dizia, mais trabalhador e menos brincado.
[...]

Valter Hugo Mãe, em o remorso de baltazar serapião

Não alguém que diz

Não alguém que diz, “Serei cauteloso
e inteligente nas questões do amor”,
que diz, “Irei escolher com calma”,
mas os amantes que nada escolheram
e foram escolhidos
por algo invisível,
poderoso e incontrolável
e belo, talvez inadequado –
apenas esses sabem do que falo
nesta conversa sobre o amor.

Mary Oliver (versão de Pedro Belo Clara)

Estilo

Como uma forma de depuração, eu sempre quis um dia escrever sem nem mesmo o meu estilo natural. Estilo, até próprio, é um obstáculo a ser ultrapassado. Eu não queria meu modo de dizer. Queria apenas dizer. Deus meu, eu mal queria dizer.
E o que eu escrevesse seria o destino humano na sua pungência mortal. A pungência de se ser esplendor, miséria e morte. A humilhação e a podridão perdoadas porque fazem parte da carne fatal do homem e de seu modo errado na terra. O que eu escrevesse ia ser o prazer dentro da miséria. É a minha dívida de alegria a um mundo que não me é fácil.

Clarice Lispector, em Crônicas para jovens: de escrita e vida

Racional

A natureza do universo concedeu aos seres racionais o restante dos seus poderes. Dado que somos racionais, também fomos empoderados.
Ela converte os entraves em material, fixa-os nas suas posições predestinadas e os incorpora. Do mesmo modo, o animal racional é dotado da habilidade de convertê-los e de empregá-los para alcançar os fins pretendidos.

Marco Aurélio, em Meditações

CAPÍTULO II. Que trata da primeira saída que de sua terra fez o engenhoso D. Quixote.



Concluídos pois todos estes arranjos, não quis retardar mais o pôr em efeito o seu pensamento, estimulando-o a lembrança da falta que estava já fazendo ao mundo a sua tardança, segundo eram os agravos que pensava desfazer, sem-razões que endireitar, injustiças que reprimir, abusos que melhorar, e dívidas que satisfazer.
E assim, sem a ninguém dar parte da sua intenção, e sem que ninguém o visse, uma manhã antes do dia, que era um dos encalmados de Julho, apercebeu-se de todas as suas armas, montou-se no Rocinante, posta a sua celada feita à pressa, embraçou a sua adarga, empunhou a lança, e pela porta furtada de um pátio se lançou ao campo, com grandíssimo contentamento e alvoroço, de ver com que felicidade dava princípio ao seu bom desejo.
Mas, apenas se viu no campo, quando o assaltou um terrível pensamento, e tal, que por pouco o não fez desistir da começada empresa: lembrou-lhe não ter sido ainda armado cavaleiro, e que, segundo a lei da cavalaria, não podia nem devia tomar armas com algum cavaleiro; e ainda que as tomara, havia de levá-las brancas, como cavaleiro donzel, sem empresa no escudo enquanto por seu esforço a não ganhasse.
Estes pensamentos não deixaram de lhe abalar os propósitos; mas, podendo nele mais a loucura do que outra qualquer razão, assentou em que se faria armar cavaleiro por algum que topasse, à imitação de muitos que também assim o fizeram, segundo ele tinha lido nos livros do seu uso; e, quanto a armas brancas, limparia as suas por modo, logo que para isso tivesse lugar, que nem um arminho lhes ganhasse.
Com isto serenou, e seguiu jornada por onde ao cavalo apetecia, por acreditar que nisso consistia a melhor venida para as aventuras.
Indo pois caminhando o nosso flamante aventureiro, conversava consigo mesmo e dizia:
Quem duvida de que lá para o futuro, quando sair à luz a verdadeira história dos meus famosos feitos, o sábio que os escrever há-de pôr, quando chegar à narração desta minha primeira aventura tão de madrugada, as seguintes frases: “Apenas tinha o rubicundo Apolo estendido pela face da ampla e espaçosa terra as doiradas melanias dos seus formosos cabelos, e apenas os pequenos e pintados passarinhos, com as suas farpadas línguas, tinham saudado, com doce e melíflua harmonia, a vinda da rosada aurora, que, deixando a branda cama do zeloso marido, pelas portas e varandas do horizonte manchego aos mortais se mostrava; quando o famoso cavaleiro D. Quixote de la Mancha, deixando as ociosas penas, se montou no seu famoso cavalo Rocinante e começou a caminhar pelo antigo e conhecido campo de Montiel (e era verdade, que por esse mesmo campo é que ele ia);” e continuou dizendo: “Ditosa idade e século ditoso, aquele em que hão-de sair à luz as minhas famigeradas façanhas dignas de gravar-se em bronze, esculpir-se em mármores, e pintar-se em painéis para lembrança de todas as idades!” Ó tu, sábio encantador (quem quer que sejas) a quem há-de tocar ser o cronista desta história, peço-te que te não esqueças do meu bom Rocinante, meu eterno companheiro em todos os caminhos e carreiras.
E logo passava a dizer, como se verdadeiramente fora enamorado:
Ó Princesa Dulcinéia, senhora deste cativo coração, muito agravo me fizestes em despedir-me e vedar-me com tão cruel rigor que aparecesse na vossa presença. Apraza-vos, senhora, lembrar-vos deste coração tão rendidamente vosso, que tantas mágoas padece por amor de vós.
E como estes ia tecendo outros disparates, todos pelo teor dos que havia aprendido nos seus livros, imitando, conforme podia, o próprio falar deles; e com isto caminhava tão vagaroso, e o sol caía tão rijo, que de todo lhe derretera os miolos se alguns tivera.
Caminhou quase todo o dia sem lhe acontecer coisa merecedora de ser contada; com o que ele se amofinava, pois era todo o seu empenho topar logo logo onde provar o valor do seu forte braço.
Dizem alguns autores que a sua primeira aventura foi a de Porto Lápice; outros, que foi a dos moinhos de vento. Mas o que eu pude averiguar, e o que achei escrito nos anais da Mancha, é que ele andou todo aquele dia, e, ao anoitecer, ele com o seu rocim se achava estafado e morto de fome; e que, olhando para todas as partes, a ver se se lhe descobriria algum castelo, ou alguma barraca de pastores, onde se recolher, e remediar sua muita necessidade, viu não longe do caminho uma venda, que foi como aparecer-lhe uma estrela que o encaminhava, se não ao alcáçar, pelo menos aos portais da sua redenção.
Deu-se pressa em caminhar, e chegou a tempo, que já a noite se ia cerrando.
Achavam-se acaso à porta duas mulheres moças, destas que chamam de boa avença, as quais se iam a Sevilha com uns arrieiros, que nessa noite acertaram de pousar na estalagem.
E como ao nosso aventureiro tudo quanto pensava, via, ou imaginava, lhe parecia real, e conforme ao que tinha lido, logo que viu a locanda se lhe representou ser um castelo com suas quatro torres, e coruchéus feitos de luzente prata, sem lhe faltar sua ponte levadiça, e cava profunda, e mais acessórios que em semelhantes castelos se debuxam.
Foi-se chegando à pousada (ou castelo, pelo que se lhe representava); e a pequena distância colheu as rédeas a Rocinante, esperando que algum anão surdiria entre as ameias a dar sinal de trombeta por ser chegado cavaleiro ao castelo.
Vendo porém que tardava, e que Rocinante mostrava pressa em chegar à estrebaria, achegou-se à porta da venda, e avistou as duas divertidas moças que ali estavam, que a ele lhe pareceram duas formosas donzelas, ou duas graciosas damas, que diante das portas do castelo se espaireciam.
Sucedeu acaso que um porqueiro, que andava recolhendo de uns restolhos a sua manada de porcos (que este, sem faltar à cortesia, é que é o nome deles), tocou uma buzina a recolher. No mesmo instante se figurou a D. Quixote o que desejava; a saber: que lá estava algum anão dando sinal da sua vinda. E assim, com estranho contentamento, chegou à venda e às damas.
Elas, vendo acercar-se um homem daquele feitio, e com lança e adarga, cheias de susto já se iam acolhendo à venda, quando D. Quixote, conhecendo o medo que as tomara, levantando a viseira de papelão, e descobrindo o semblante seco e empoeirado, com o tom mais ameno e voz mais repousada lhes disse:
Não fujam Suas Mercês, nem temam desaguisado algum, porquanto a Ordem de cavalaria que professo a ninguém permite que ofendamos, quanto mais a tão altas donzelas, como se está vendo que ambas sois.
Miravam-no as moças, e andavam-lhe com os olhos procurando o rosto, que a desastrada viseira em parte lhe encobria; mas como se ouviram chamar donzelas, coisa tão alheia ao seu modo de vida, não puderam conter o riso; e foi tanto, que D. Quixote chegou a envergonhar-se e dizer-lhes:
Comedimento é azul sobre o ouro da formosura; e demais, o rir sem causa grave denuncia sandice. Não vos digo isto para que vos estomagueis, que a minha vontade outra não é senão servir-vos.
A linguagem que as tais fidalgas não entendiam, e o desajeitado do nosso cavaleiro, ainda acrescentavam nelas as risadas, e estas nele o enjoo; e adiante passara, se a ponto não saísse o vendeiro, sujeito que por muito gordo era muito pacífico de gênio. Este, vendo aquela despropositada figura, com arranjos tão disparatados como eram os aparelhos, as armas, lança, adarga, e corsolete, esteve para fazer coro com as donzelas nas mostras de hilaridade. Mas, reparando melhor naquela quantia de petrechos, teve mão em si, assentou em lhe falar comedidamente, e disse-lhe desta maneira:
Se Vossa Mercê, senhor cavaleiro, busca pousada, excetuando o leito (porque nesta venda nenhum há) tudo mais achará nela de sobejo.
Vendo D. Quixote a humildade do “alcaide da fortaleza”, respondeu:
Para mim, senhor castelão, qualquer coisa basta porque

minhas pompas são as armas,
meu descanso o pelejar.” etc.

Figurou-se ao locandeiro que o nome de castelão seria troca de castelhano (ainda que ele era andaluz, e dos da praia de S. Lucar, que em tunantes não lhe ficam atrás, e são mais ladrões que o próprio Caco, e burlões como estudante ou pajem); e assim lhe respondeu:
Segundo isso (como também lá reza a trova),

colchões lhe serão as penhas,
e o dormir sempre velar.”

E sendo assim, pode muito bem apear-se, com a certeza de achar nesta choça ocasião e ocasiões para não dormir em todo um ano, quanto mais uma noite.
E dito isto, foi segurar no estribo a D. Quixote, o qual se apeou com muita dificuldade e trabalho, como homem que em todo o dia nem migalha tinha provado.
Disse logo ao hospedeiro que tivesse muito cuidado naquele cavalo, porque era a melhor peça de quantas consumiam pão neste mundo.
Reparou nele o vendeiro, e nem por isso lhe pareceu tão bom como D. Quixote lhe dizia, e nem metade. Acomodou-o na cavalariça, e voltou a saber o que o seu hóspede mandava; achou-o já às boas com as donzelas, que o estavam desarmando. Do peito de armas e couraça bem o tinham elas desquitado; mas o que nunca puderam, foi desencaixar-lhe a gola, nem tirar-lhe a composta celada, que trazia atada com umas fitas verdes, com tão cegos nós, que só cortando-as; no que ele de modo nenhum consentiu.
E assim passou a noite com a celada posta, que era a mais extravagante e graciosa figura que se podia imaginar.
Enquanto o estiveram desarmando, ele, que imaginava serem damas e senhoras, das principais do castelo, aquelas duas safadas firmas, com muito donaire lhes repetia:

Nunca fora cavaleiro
de damas tão bem servido,
como ao vir de sua aldeia
D. Quixote o esclarecido:
donzelas tratavam dele,
princesas do seu rocim,

ou Rocinante, que este é o nome do meu cavalo, senhoras minhas, e D. Quixote de la Mancha o meu. Não quisera eu descobrir-me, até que as façanhas, obradas em vosso serviço e prol, por si me proclamassem; mas a necessidade de acomodar ao lance presente este romance antigo de Lançarote ocasionou que viésseis a saber o meu nome antes de tempo. Dia porém virá em que Vossas Senhorias me intimem suas ordens, e eu lhas cumpra, mostrando com o valor do meu braço o meu grande desejo de servir-vos.
As moças, que não andavam correntes em semelhantes retóricas, não respondiam palavra; unicamente lhe perguntaram se queria comer alguma coisa.
Da melhor vontade, e seja o que for — respondeu D. Quixote —, porque, segundo entendo, bom prol me faria.
Quis logo a mofina que fosse aquele dia uma sexta-feira, não havendo na locanda senão umas postas de um pescado, que em Castela se chama abadejo, e em Andaluzia bacalhau, noutras partes curadillo, e noutras truchuela.
Perguntaram-lhe se porventura comeria Sua Mercê truchuela, atendendo a não haver por então outro conduto.
Muitas truchuelas — respondeu D. Quixote — que são diminutivos, somarão uma truta; tanto me vale que me deem oito reais pegados, como em miúdos. E quem sabe se as tais truchuelas não serão como a vitela, que é melhor do que a vaca, como o cabrito é mais saboroso que o bode? Seja porém o que for, venha logo, que o trabalho e peso das armas não se pode levar sem o governo das tripas.
Puseram-lhe a mesa à porta da venda para estar mais à fresca, e trouxe-lhe o hospedeiro uma porção do mal remolhado e pior cozido bacalhau, e um pão tão negro e de tão má cara, como as armas de D. Quixote.
Pratinho para boa risota era vê-lo comer; porque, como tinha posta a celada e a viseira erguida, não podia meter nada para a boca por suas próprias mãos; e por isso uma daquelas senhoras o ajudava em tal serviço. Agora o dar-lhe de beber é que não foi possível, nem jamais o seria, se o vendeiro não furara os nós de uma cana, e, metendo-lhe na boca uma das extremidades dela, lhe não vazasse pela outra o vinho. Com tudo aquilo se conformava o sofrido fidalgo, só por se lhe não cortarem os atilhos da celada.
Nisto estavam, quando à venda chegou um capador de porcos e deu sinal de si correndo a sua gaita de canas quatro ou cinco vezes; com o que se acabou de capacitar D. Quixote de que estava em algum famoso castelo, e o serviam com música, e que o abadejo eram trutas, o pão candial, as duas mulherinhas damas, e o vendeiro castelão do castelo; e com isto dava por bem empregada a sua determinação e saída.
O que porém sobretudo o desassossegava era não se ver ainda armado cavaleiro, por lhe parecer que antes disso não lhe era dado entrar por justos cabais em aventura alguma.

Miguel de Cervantes, em Don Quixote de La Mancha

Recebei as nossas homenagens

Único homem acordado nesta noite, o apartamento
apertado parece imenso; vagueio desacordado de tudo
e sobretudo em desacordo comigo, único homem
acordado no mundo; o teatro estreito assim vazio

parece largo, perambulo absoluto, príncipe estragado;
não dormir é meu palácio; a Dinamarca, diminuta,
parece dilatar-se enquanto palmilho o ar do quarto.
Vem o dia, e o fantasma de meu pai não me aparece.

Eucanaã Ferraz, em Sentimental

1554 – Cuzco

O alcaide e as orelhas

Desde que o galã fez a ameaça, dom Diego apalpa as orelhas cada manhã, ao despertar, e as mede no espelho. Descobriu que as orelhas crescem quando estão contentes e que as encolhem o frio e as melancolias; que as transformam em ferro em brasa os olhares e as calúnias e que batem asas desesperadamente, como pássaros na gaiola, quando escutam o ruído de uma folha de aço que se afia.
Para pô-las a salvo, dom Diego as traz para Cuzco. Guardas e escravos o acompanham na longa viagem.
Um domingo de manhã, dom Diego sai da missa, mais desfilando que caminhando, seguido por um negrinho que leva seu reclinatório de veludo. De repente um par de olhos se cravam, certeiros, em suas orelhas, e uma capa azul atravessa em rajada a multidão e se desvanece, ondulando, na distância.
Ficam as orelhas como que machucadas.

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

Desespero

Não há nada mais triste do que o grito de um trem no silêncio noturno. É a queixa de um estranho animal perdido, único sobrevivente de alguma espécie extinta, e que corre, corre, desesperado, noite em fora, como para escapar à sua orfandade e solidão de monstro.

Mário Quintana, em Sapato Florido

Um Marlboro Vermelho queimando na mão




[...]
E tinha o ônibus escolar. Naquela manhã, como em todas as manhãs, ninguém sentou ao meu lado. Encostei na janela e preenchi minha visão com o exterior, malva com a escuridão do início da manhã: o Motel 6, a lavanderia Kline’s, que ainda não tinha aberto, um Toyota bege sem capô abandonado em frente a um jardim com um balanço de pneu inclinado na terra. À medida que o ônibus acelerava, pedaços da cidade rodopiavam como objetos numa máquina de lavar. Em todo lugar à minha volta, meninos se empurravam. Eu sentia o vento dos braços e pernas deles se movendo rápido atrás da minha nuca, os braços e punhos agitados deslocando o ar. Conhecendo o rosto que tenho, seus traços raros para essa parte do mundo, forcei a cabeça ainda mais contra a janela para evitá-los. Foi aí que vi uma fagulha no meio de um estacionamento lá fora. Só quando ouvi as vozes atrás de mim percebi que a fagulha veio de dentro da minha cabeça. Que alguém enfiou minha cara no vidro.
Fala inglês”, disse o menino com um corte tigelinha nos cabelos amarelos, a papada corada e ondulante.
Os muros mais cruéis são feitos de vidro, Mãe. Eu queria quebrar o vidro e saltar pela janela.
Ei.” O garoto-papada se inclinou, a boca de vinagre do lado do meu rosto. “Você nunca diz nada? Você não fala inglês?” Ele agarrou meu ombro e me girou para ficar de frente para ele. “Olhe pra mim quando eu falo com você.”
Ele tinha só nove anos, mas já dominava o dialeto dos pais americanos perturbados. Os meninos se aglomeraram em torno de mim, sentindo que ia haver diversão. Eu sentia o cheiro das roupas recém-lavadas deles, os amaciantes de lilás e lavanda.
Eles esperaram para ver o que ia acontecer. Quando a única coisa que fiz foi fechar os olhos, o garoto me deu um tapa.
Diz alguma coisa.” Ele enfiou o nariz roliço na minha bochecha ardendo. “Você não consegue dizer pelo menos uma coisa?”
O segundo tapa veio de cima, de outro garoto.
Corte-tigelinha pegou meu queixo e girou minha cabeça na direção dele. “Diz meu nome, então.” Ele piscou, os cílios, longos e louros, quase nada palpitaram. “Que nem a tua mãe disse ontem de noite.”
Lá fora, as folhas caíam, gordas e úmidas como dinheiro sujo, pelas janelas. Eu me voluntariei a uma obediência severa e disse o nome dele.
Deixei o riso deles entrar em mim.
De novo”, ele disse.
Kyle.”
Mais alto.”
“Kyle.” Meus olhos ainda fechados.
Muito bem, putinha.”
Então, como uma virada no clima, começou a tocar uma música no rádio. “Ei, meu primo foi ao show deles!” E assim, do nada, acabou. As sombras deles saíram de cima de mim. Deixei meu nariz escorrer. Olhei para os meus pés, para os tênis que você comprou para mim, aqueles com luzes vermelhas que piscavam na sola quando eu andava.
Minha testa encostada no banco à minha frente, chutei meus tênis, gentilmente no começo, depois mais rápido. Meus tênis entraram em erupção com luzes silenciosas: as menores ambulâncias do mundo, indo a lugar nenhum.

Naquela noite você estava sentada no sofá com uma toalha enrolada no corpo depois do banho, um Marlboro Vermelho queimando na mão. Fiquei ali, segurando minhas pernas contra o peito.
Por quê?” Você olhava fixamente a TV.
Você enfiou o cigarro na xícara de chá e eu imediatamente me arrependi de ter contado. “Por que você ia deixar eles fazerem isso? Não feche os olhos. Você não está dormindo.”
Você pôs teus olhos em mim, fumaça azul rodopiando entre nós.
Que tipo de menino ia deixar fazerem isso?” A fumaça vazava pelos cantos da tua boca. “Você não fez nada.” Você deu de ombros. “Simplesmente deixou.”
Pensei na janela de novo, pensei que tudo parecia uma janela, mesmo o ar entre nós.
Você agarrou meus ombros, a testa pressionada forte contra a minha. “Pare de chorar. Você chora o tempo todo!” Você estava tão perto que eu sentia o cheiro de cinzas e pasta de dentes. “Ninguém está batendo em você ainda. Pare de chorar. Eu disse pra parar, cacete!”
O terceiro tapa daquele dia arremessou meu olhar para um lado, a tela da TV passou num flash diante dos meus olhos antes de minha cabeça girar de volta para encarar você. Teus olhos percorriam meu rosto de um lado para o outro.
E então você me puxou na tua direção, meu queixo apertado contra teu ombro.
Você tem que encontrar um jeito, Cachorrinho”, você disse em meio aos meus cabelos. “Você precisa encontrar, porque meu inglês não é bom o bastante pra te ajudar. Eu não tenho como dizer alguma coisa pra fazer eles pararem. Encontre um jeito. Encontre um jeito ou nunca mais me conte essas coisas, está ouvindo?” Você se afastou. “Você tem que ser um menino de verdade e ser forte. Você tem que mostrar que é forte ou eles vão continuar. Você já está de barriga cheia de inglês.” Você colocou a mão na minha barriga, quase sussurrando. “Você tem que usar isso, ok?”
Sim, Mãe.”
Você penteou meu cabelo de lado, me deu um beijo na testa. Você me estudou, um pouco a mais do que devia, antes de se jogar no sofá gesticulando. “Me pega outro cigarro.”
Quando voltei com o Marlboro e um isqueiro Zippo, a TV estava desligada. Você ficou ali sentada, só olhando a janela azul.
[...]

Ocean Vuong,em Sobre a terra somos belos por um instante

Vem

Porque os dias quebravam contra sua cara, porque
trocara as horas por nada, quis o espinho extremo;
mas, sobre encontrá-lo, ninguém, nada respondia.
Saberia reconhecê-lo em meio a tudo? Algum sinal?
Um cisne gravado na testa? Talvez

bastasse, à distância, atentar nos modos de dobrar
ou desfazer frases um lenço quem sabe, no levar
água à boca, moeda à bolsa, banal, vislumbrasse
um rastro, mesmo sem saber agora, não saberia
nunca?, o que faria do acaso o certo, até que

se manifestasse numa forma inadiável e porque seria
assim avistaria na matéria mínima a sua fábrica,
o fogo que sobreviria contra a indiferença dos dias;
mas as ruas são compridas, era preciso estar mais perto
para perceber; e logo baralhava unhas vozes cabelos

à maneira de uma teia aos pedaços que o fazia adolescente
como um pombo tonto; mesmo sem vestígios, farejava;
o que as costelas dos viadutos escondiam? Ruas becos
subiam-lhe à boca enchendo-o de inocência e desejo;
envenenara-se com o anseio de que a cidade desaguasse

em alguém, não fosse tão só pedras de seus olhos
se ferirem; mais seguro era cegar as vontades; cerrados
os olhos calariam o teatro excessivo dos gestos; talvez
dormisse, mas a insônia vinha branca ácida alta.
Houve uma vez um comandante prussiano

recostado fundo na poltrona cavando com as esporas
de sua bota o mármore da lareira, lembrava,
era mais fácil deixar a solidão crescer no vento
vir ao quadril, lembrava do conto enquanto seus olhos
erravam, esperança em pelo, juízo em vão, fome

de um relance, um fio. Suave, se ainda soubesse, era
beber sem supor alguém após o drinque, gastar-se só,
sem presumir um abraço à saída do cinema, à saída
de sábado, mas ele sacrificaria qualquer ponderação
para persistir no engano de seguir à própria sorte

por mundos que semelhavam estacionamentos
abarrotados de frases moles blogs celulares
fazer amigos impressionar pessoas dicionários
como se fósforos para queimar o tempo o tédio,
saudade de quando não vagava devastado pela

espera, pela espora, dizia o conto, de uma lâmpada
após o labirinto, por aquela presença tão só pressentida
mas que talvez por adivinhada ardia ainda mais; tudo
(um exagero) escarnecia dele, sequioso de que regressasse
quem nem mesmo houvera, Ulisses ou o filho pródigo

caminhando sobre o mar etílico, turbulento. Canções
de amor foram o seu veneno, todas à roda da mesma
víscera, da mesma válvula sentimental, podia senti-la
sem amores nem romances, sangue e bomba só,
como no peito de um bicho que é apenas isso.

Então, exausto, sem nenhum grito, deitou-se sobre
a pedra escura da rua ou da escarpa mais alta da lua
mais miserável e suja e esteve ali, parado, manso,
sem que nada pedisse ao tempo ou pretendesse.
E era só uma noite entre as noites, quando despertou

agitado, deve ter sido assim, pela visão de uns lábios,
vinham acesos, na direção
dos seus.

Eucanaã Ferraz, em Sentimental

O caso da vara

Damião fugiu do seminário às onze horas da manhã de uma sexta-feira de agosto. Não sei bem o ano; foi antes de 1850. Passados alguns minutos parou vexado; não contava com o efeito que produzia nos olhos da outra gente aquele seminarista que ia espantado, medroso, fugitivo. Desconhecia as ruas, andava e desandava; finalmente parou. Para onde iria? Para casa, não; lá estava o pai que o devolveria ao seminário, depois de um bom castigo. Não assentara no ponto de refúgio, porque a saída estava determinada para mais tarde; uma circunstância fortuita a apressou. Para onde iria? Lembrou-se do padrinho, João Carneiro, mas o padrinho era um moleirão sem vontade, que por si só não faria cousa útil. Foi ele que o levou ao seminário e o apresentou ao reitor:
Trago-lhe o grande homem que há de ser — disse ele ao reitor.
Venha — acudiu este —, venha o grande homem, contanto que seja também humilde e bom. A verdadeira grandeza é chã. Moço...
Tal foi a entrada. Pouco tempo depois fugiu o rapaz ao seminário. Aqui o vemos agora na rua, espantado, incerto, sem atinar com refúgio nem conselho; percorreu de memória as casas de parentes e amigos, sem se fixar em nenhuma. De repente, exclamou:
Vou pegar-me com Sinhá Rita! Ela manda chamar meu padrinho, diz-lhe que quer que eu saia do seminário... Talvez assim...
Sinhá Rita era uma viúva, querida de João Carneiro; Damião tinha umas ideias vagas dessa situação e tratou de a aproveitar. Onde morava? Estava tão atordoado, que só daí a alguns minutos é que lhe acudiu a casa; era no largo do Capim.
Santo nome de Jesus! Que é isto? — bradou Sinhá Rita, sentando-se na marquesa, onde estava reclinada.
Damião acabava de entrar espavorido; no momento de chegar à casa, vira passar um padre, e deu um empurrão à porta, que por fortuna não estava fechada a chave nem ferrolho. Depois de entrar espiou pela rótula, a ver o padre. Este não deu por ele e ia andando.
Mas que é isto, sr. Damião? — bradou novamente a dona da casa, que só agora o conhecera. — Que vem fazer aqui?
Damião, trêmulo, mal podendo falar, disse que não tivesse medo, não era nada; ia explicar tudo.
Descanse, e explique-se.
Já lhe digo; não pratiquei nenhum crime, isso juro; mas espere.
Sinhá Rita olhava para ele espantada, e todas as crias, de casa, e de fora, que estavam sentadas em volta da sala, diante das suas almofadas de renda, todas fizeram parar os bilros e as mãos. Sinhá Rita vivia principalmente de ensinar a fazer renda, crivo e bordado. Enquanto o rapaz tomava fôlego, ordenou às pequenas que trabalhassem, e esperou. Afinal, Damião contou tudo, o desgosto que lhe dava o seminário; estava certo de que não podia ser bom padre; falou com paixão, pediu-lhe que o salvasse.
Como assim? Não posso nada.
Pode, querendo.
Não — replicou ela abanando a cabeça —, não me meto em negócios de sua família, que mal conheço; e então seu pai, que dizem que é zangado!
Damião viu-se perdido. Ajoelhou-se-lhe aos pés, beijou-lhe as mãos, desesperado.
Pode muito, Sinhá Rita; peço-lhe pelo amor de Deus, pelo que a senhora tiver de mais sagrado, por alma de seu marido, salve-me da morte, porque eu mato-me, se voltar para aquela casa.
Sinhá Rita, lisonjeada com as súplicas do moço, tentou chamá-lo a outros sentimentos. A vida de padre era santa e bonita, disse-lhe ela; o tempo lhe mostraria que era melhor vencer as repugnâncias e um dia... Não, nada, nunca! redarguia Damião, abanando a cabeça e beijando-lhe as mãos; e repetia que era a sua morte. Sinhá Rita hesitou ainda muito tempo; afinal perguntou-lhe por que não ia ter com o padrinho.
Meu padrinho? Esse é ainda pior que papai; não me atende, duvido que atenda a ninguém...
Não atende? — interrompeu Sinhá Rita ferida em seus brios. — Ora, eu lhe mostro se atende ou não...
Chamou um moleque e bradou-lhe que fosse à casa do sr. João Carneiro chamá-lo, já e já; e se não estivesse em casa, perguntasse onde podia ser encontrado, e corresse a dizer-lhe que precisava muito de lhe falar imediatamente.
Anda, moleque.
Damião suspirou alto e triste. Ela, para mascarar a autoridade com que dera aquelas ordens, explicou ao moço que o sr. João Carneiro fora amigo do marido e arranjara-lhe algumas crias para ensinar. Depois, como ele continuasse triste, encostado a um portal, puxou-lhe o nariz, rindo:
Ande lá, seu padreco, descanse que tudo se há de arranjar.
Sinhá Rita tinha quarenta anos na certidão de batismo, e 27 nos olhos. Era apessoada, viva, patusca, amiga de rir; mas, quando convinha, brava como diabo. Quis alegrar o rapaz, e, apesar da situação, não lhe custou muito. Dentro de pouco, ambos eles riam, ela contava-lhe anedotas, e pedia-lhe outras, que ele referia com singular graça. Uma destas, estúrdia, obrigada a trejeitos, fez rir a uma das crias de Sinhá Rita, que esquecera o trabalho, para mirar e escutar o moço. Sinhá Rita pegou de uma vara que estava ao pé da marquesa, e ameaçou-a:
Lucrécia, olha a vara!
A pequena abaixou a cabeça, aparando o golpe, mas o golpe não veio. Era uma advertência; se à noitinha a tarefa não estivesse pronta, Lucrécia receberia o castigo do costume. Damião olhou para a pequena; era uma negrinha, magricela, um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda. Contava 11 anos. Damião reparou que tossia, mas para dentro, surdamente, a fim de não interromper a conversação. Teve pena da negrinha, e resolveu apadrinhá-la, se não acabasse a tarefa. Sinhá Rita não lhe negaria o perdão... Demais, ela rira por achar-lhe graça; a culpa era sua, se há culpa em ter chiste.
Nisto, chegou João Carneiro. Empalideceu quando viu ali o afilhado, e olhou para Sinhá Rita, que não gastou tempo com preâmbulos. Disse-lhe que era preciso tirar o moço do seminário, que ele não tinha vocação para a vida eclesiástica, e antes um padre de menos que um padre ruim. Cá fora também se podia amar e servir a Nosso Senhor. João Carneiro, assombrado, não achou que replicar durante os primeiros minutos; afinal, abriu a boca e repreendeu o afilhado por ter vindo incomodar “pessoas estranhas”, e em seguida afirmou que o castigaria.
Qual castigar, qual nada! — interrompeu Sinhá Rita. — Castigar por quê? Vá, vá falar a seu compadre.
Não afianço nada, não creio que seja possível...
Há de ser possível, afianço eu. Se o senhor quiser — continuou ela com certo tom insinuativo —, tudo se há de arranjar. Peça-lhe muito, que ele cede. Ande, sr. João Carneiro, seu afilhado não volta para o seminário; digo-lhe que não volta...
Mas, minha senhora...
Vá, vá.
João Carneiro não se animava a sair, nem podia ficar. Estava entre um puxar de forças opostas. Não lhe importava, em suma, que o rapaz acabasse clérigo, advogado ou médico, ou outra qualquer cousa, vadio que fosse; mas o pior é que lhe cometiam uma luta ingente com os sentimentos mais íntimos do compadre, sem certeza do resultado; e, se este fosse negativo, outra luta com Sinhá Rita, cuja última palavra era ameaçadora: “digo-lhe que ele não volta”. Tinha de haver por força um escândalo. João Carneiro estava com a pupila desvairada, a pálpebra trêmula, o peito ofegante. Os olhares que deitava a Sinhá Rita eram de súplica, mesclados de um tênue raio de censura. Por que lhe não pedia outra cousa? Por que lhe não ordenava que fosse a pé, debaixo de chuva, à Tijuca, ou Jacarepaguá? Mas logo persuadir ao compadre que mudasse a carreira do filho... Conhecia o velho; era capaz de lhe quebrar uma jarra na cara. Ah! se o rapaz caísse ali, de repente, apoplético, morto! Era uma solução — cruel, é certo, mas definitiva.
Então? — insistiu Sinhá Rita.
Ele fez-lhe um gesto de mão que esperasse. Coçava a barba, procurando um recurso. Deus do céu! um decreto do papa dissolvendo a Igreja, ou, pelo menos, extinguindo os seminários, faria acabar tudo em bem. João Carneiro voltaria para casa e ia jogar os três-setes. Imaginai que o barbeiro de Napoleão era encarregado de comandar a batalha de Austerlitz... Mas a Igreja continuava, os seminários continuavam, o afilhado continuava cosido à parede, olhos baixos, esperando, sem solução apoplética.
Vá, vá — disse Sinhá Rita dando-lhe o chapéu e a bengala.
Não teve remédio. O barbeiro meteu a navalha no estojo, travou da espada e saiu à campanha. Damião respirou; exteriormente deixou-se estar na mesma, olhos fincados no chão, acabrunhado. Sinhá Rita puxou-lhe desta vez o queixo.
Ande jantar, deixe-se de melancolias.
A senhora crê que ele alcance alguma cousa?
Há de alcançar tudo — redarguiu Sinhá Rita cheia de si. — Ande, que a sopa está esfriando.
Apesar do gênio galhofeiro de Sinhá Rita, e do seu próprio espírito leve, Damião esteve menos alegre ao jantar que na primeira parte do dia. Não fiava do caráter mole do padrinho. Contudo, jantou bem; e, para o fim, voltou às pilhérias da manhã. À sobremesa, ouviu um rumor de gente na sala, e perguntou se o vinham prender.
Hão de ser as moças.
Levantaram-se e passaram à sala. As moças eram cinco vizinhas que iam todas as tardes tomar café com Sinhá Rita, e ali ficavam até o cair da noite.
As discípulas, findo o jantar delas, tornaram às almofadas do trabalho. Sinhá Rita presidia a todo esse mulherio de casa e de fora. O sussurro dos bilros e o palavrear das moças eram ecos tão mundanos, tão alheios à teologia e ao latim, que o rapaz deixou-se ir por eles e esqueceu o resto. Durante os primeiros minutos, ainda houve da parte das vizinhas certo acanhamento; mas passou depressa. Uma delas cantou uma modinha, ao som da guitarra, tangida por Sinhá Rita, e a tarde foi passando depressa. Antes do fim, Sinhá Rita pediu a Damião que contasse certa anedota que lhe agradara muito. Era a tal que fizera rir Lucrécia.
Ande, sr. Damião, não se faça de rogado, que as moças querem ir embora. Vocês vão gostar muito.
Damião não teve remédio senão obedecer. Malgrado o anúncio e a expectação, que serviam a diminuir o chiste e o efeito, a anedota acabou entre risadas das moças. Damião, contente de si, não esqueceu Lucrécia e olhou para ela, a ver se rira também. Viu-a com a cabeça metida na almofada para acabar a tarefa. Não ria; ou teria rido para dentro, como tossia.
Saíram as vizinhas, e a tarde caiu de todo. A alma de Damião foi-se fazendo tenebrosa, antes da noite. Que estaria acontecendo? De instante a instante, ia espiar pela rótula, e voltava cada vez mais desanimado. Nem sombra do padrinho. Com certeza, o pai fê-lo calar, mandou chamar dous negros, foi à polícia pedir um pedestre, e aí vinha pegá-lo à força e levá-lo ao seminário. Damião perguntou a Sinhá Rita se a casa não teria saída pelos fundos; correu ao quintal, e calculou que podia saltar o muro. Quis ainda saber se haveria modo de fugir para a rua da Vala, ou se era melhor falar a algum vizinho que fizesse o favor de o receber. O pior era a batina; se Sinhá Rita lhe pudesse arranjar um rodaque, uma sobrecasaca velha... Sinhá Rita dispunha justamente de um rodaque, lembrança ou esquecimento de João Carneiro.
Tenho um rodaque do meu defunto — disse ela, rindo —, mas para que está com esses sustos? Tudo se há de arranjar, descanse.
Afinal, à boca da noite, apareceu um escravo do padrinho, com uma carta para Sinhá Rita. O negócio ainda não estava composto; o pai ficou furioso e quis quebrar tudo; bradou que não, senhor, que o peralta havia de ir para o seminário, ou então metia-o no Aljube ou na presiganga. João Carneiro lutou muito para conseguir que o compadre não resolvesse logo, que dormisse a noite, e meditasse bem se era conveniente dar à religião um sujeito tão rebelde e vicioso. Explicava na carta que falou assim para melhor ganhar a causa. Não a tinha por ganha; mas no dia seguinte lá iria ver o homem, e teimar de novo. Concluía dizendo que o moço fosse para a casa dele.
Damião acabou de ler a carta e olhou para Sinhá Rita. “Não tenho outra tábua de salvação”, pensou ele. Sinhá Rita mandou vir um tinteiro de chifre, e na meia folha da própria carta escreveu esta resposta: “Joãozinho, ou você salva o moço, ou nunca mais nos vemos.” Fechou a carta com obreia, e deu-a ao escravo, para que a levasse depressa. Voltou a reanimar o seminarista, que estava outra vez no capuz da humildade e da consternação. Disse-lhe que sossegasse, que aquele negócio era agora dela.
Hão de ver para quanto presto! Não, que eu não sou de brincadeiras!
Era a hora de recolher os trabalhos. Sinhá Rita examinou-os; todas as discípulas tinham concluído a tarefa. Só Lucrécia estava ainda à almofada, meneando os bilros, já sem ver; Sinhá Rita chegou-se a ela, viu que a tarefa não estava acabada, ficou furiosa, e agarrou-a por uma orelha.
Ah! malandra!
Nhanhã, nhanhã! pelo amor de Deus! por Nossa Senhora que está no céu.
Malandra! Nossa Senhora não protege vadias!
Lucrécia fez um esforço, soltou-se das mãos da senhora, e fugiu para dentro; a senhora foi atrás e agarrou-a.
Anda cá!
Minha senhora, me perdoe! — tossia a negrinha.
Não perdoo, não. Onde está a vara?
E tornaram ambas à sala, uma presa pela orelha, debatendo-se, chorando e pedindo; a outra dizendo que não, que a havia de castigar.
Onde está a vara?
A vara estava à cabeceira da marquesa, do outro lado da sala. Sinhá Rita, não querendo soltar a pequena, bradou ao seminarista:
Sr. Damião, dê-me aquela vara, faz favor?
Damião ficou frio... Cruel instante! Uma nuvem passou-lhe pelos olhos. Sim, tinha jurado apadrinhar a pequena, que por causa dele atrasara o trabalho...
Dê-me a vara, sr. Damião!
Damião chegou a caminhar na direção da marquesa. A negrinha pediu-lhe então por tudo o que houvesse mais sagrado, pela mãe, pelo pai, por Nosso Senhor...
Me acuda, meu sinhô moço!
Sinhá Rita, com a cara em fogo e os olhos esbugalhados, instava pela vara, sem largar a negrinha, agora presa de um acesso de tosse. Damião sentiu-se compungido; mas ele precisava tanto sair do seminário! Chegou à marquesa, pegou na vara e entregou-a a Sinhá Rita.

Machado de Assis, em Gazeta de Notícias, 1º de fevereiro de 1891