Dois estudos

1
Tu és a antecipação
do último filme que assistirei.
Fazes calar os astros,
os rádios e as multidões na praça pública.
Eu te assisto imóvel e indiferente.
A cada momento tu te voltas
e lanças no meu encalço
máquinas monstruosas que envenenam reservatórios
sobre os quais ganhaste um domínio de morte.
Trazes encerradas entre os dedos
reservas formidáveis de dinamite
e de fatos diversos.

2
Tu não representas as 24 horas de um dia,
os fatos diversos,
o livro e o jornal
que leio neste momento.
Tu os completas e os transcendes.
Tu és absolutamente revolucionária e criminosa,
porque sob teu manto
e sob os pássaros de teu chapéu
desconheço a minha rua,
o meu amigo e o meu cavalo de sela.

João Cabral de Melo Neto, em Antologia Poética

De pombos e de gatos

Um dos meus grandes encantos em Florença, onde, em 1952, passei cerca de um mês, era ver da janela do meu quinto andar, no Hotel Nazionale, a madrugada toscana romper sobre a piazza Santa Maria Novella. Habituei-me de tal modo a isso que, nos meus hábitos de noctâmbulo, esticava a noite até o amanhecer, só pelo prazer de ver a luz rósea do sol florentino descobrir e incendiar os mármores da fachada da igreja de Santa Maria Novella, bem como o claustro verde que fica à sua esquerda e as elegantes arcadas do fundo, onde existem as terracotas de Andrea e Giovanni della Robbia. Mas o prazer desse minuto de luz acabaria por resultar monótono, não se lhe seguisse um dos mais extraordinários divertissements a que já me foi dado assistir, misto de balé, cinema e circo romano, sem falar que cheio de ensinamentos sobre a vida e arte de viver perigosamente.
O caso é que, aos primeiros vestígios de luz, começava-se a ouvir por ali em torno um brando ruflar de asas que, com o despontar do Sol, crescia num espesso burburinho ao qual vinham se unir doces arrulhos. E o ambiente, em suas cores rosa, verde, laranja e terracota, adquiria uma maciez de plumas; e logo asas brancas e trigueiras começavam a tatalar em largos voos e algumas desciam em voos rasantes; e toda uma população de pombos, habitantes daqueles mil escaninhos, como só pode proporcionar a arquitetura antiga, vinha pousar na praça.
A coisa ficava assim por uns poucos minutos; e em breve apareciam, infalivelmente, no belo logradouro, três padres e cinco gatos. Cabe dizer, em nome da verdade, que os padres chegavam bem menos sorrateiramente que os gatos e, estou certo, com intenções muito menos maléficas; pois se vinham os padres para se aquecer um pouco ao sol e ler seus breviários, os gatos surgiam, esgueirando-se das ruas laterais, para cumprir uma fatalidade do seu destino, que é de comer pombos. E com a malícia que lhes é peculiar, colocavam-se pacientemente em posições estratégicas, sob automóveis encostados ao meio-fio, à espera do momento azado para o bote.
Deus sabe que, entre gatos e pombos, eu sou francamente pela primeira espécie. Acho os pombos um povo horrivelmente burguês, com o seu ar bem-disposto e contente da vida, sem falar na baixeza de certas características de sua condição, qual seja a de, eventualmente, se entredevorarem quando engaiolados. Mas no caso especial da piazza de Santa Maria Novella, devo confessar que era torcida incondicional dos pombos; e só passei a torcer pelos gatos no final, quando, defrontado com a realidade de sua terrível humilhação, e provável neurose subsequente, achei que não faria nenhuma falta à comunidade a desaparição de uma meia dúzia de columbinos, em beneficio do sistema nervoso dos pobres gatos. Pois era quase doloroso ver o fracasso constante de suas desesperadas tentativas de caçar um pombinho que fosse. E garanto que eles empregavam todas as técnicas tradicionais dos gatos, desde a paciente emboscada, até a carreira às cegas, com saltos desordenados para todos os lados.
Tudo em vão. Porque, a cada arremetida, os pombos limitavam-se a dar pequenos voos que criavam verdadeiros túneis para os gatos, que os percorriam em furiosas e inúteis investidas. E o pior é que cada pombo, passado o rojão, pousava como se nada tivesse havido, e continuava na sua estúpida ciscação do chão da praça, na mais total indiferença diante de seu velho inimigo. Coisa que, positivamente, devia deixar os gatos loucos. Haja visto um que um dia eu vi, depois de numerosos ataques frustrados, a morder como um possesso o pneu de um Chevrolet, e por cuja sanidade mental não poria da maneira alguma a mão na Bíblia.

Vinicius de Moraes, em Para viver um grande amor

Ode a Jaiminho Alça de Caixão

Jaiminho Alça de Caixão (de paletó, no enterro do arquiteto Oscar Niemeyer)

Um personagem da cidade do Rio de Janeiro que merece virar nome de rua e enredo de escola de samba é Jaime Sabino, o Jaiminho Alça de Caixão, homem que foi a mais de mil enterros e praticamente inventou a profissão de papagaio de pirata. É mister esclarecer: “papagaio de pirata” é a expressão popular que designa cidadãos estrategicamente localizados atrás dos jornalistas que fazem entradas ao vivo nas redes de televisão.
Além de frequentar enterros, Jaiminho apareceu ao longo da carreira em mais de cem entradas ao vivo de repórteres televisivos, sobre variados temas. Sempre estava de terno, mesmo no calor inclemente (tinha mais de duzentos, das tradicionais lojas Bemoreira Ducal, São João Batista Modas e Imperatriz das Sedas). Impecavelmente cortados, os cabelos do Alça de Caixão eram pintados de preto com os tabletes Santo Antônio; tintura popular das mais famosas e encontrada nos melhores estabelecimentos da cidade, como bancas de camelô e vagões de trens da Central do Brasil.
Jaiminho gostava de dizer que fugiu de casa aos sete anos de idade, em Feira de Santana, Bahia, porque era muito castigado no colégio. A família tinha condição de vida razoável, mas ele queria mais e veio para o Rio de Janeiro com o sonho de ser artista. Contracenou com Cauby Peixoto (fez o papel do irmão de Cauby em uma trama) e com a cantora Marlene em fotonovelas das revistas Amiga e Sétimo Céu. Tentou ainda a carreira cinematográfica. Seu maior momento como ator foi, na condição de figurante, ter tomado um soco de Jece Valadão em um filme da Atlântida. Costumava dizer, orgulhoso, que também teve grande desempenho no papel de um defunto anônimo no clássico O assalto ao trem pagador.
Jaiminho encontrou a vocação fúnebre quando Getúlio Vargas morreu e ele foi ao velório. Teve uma epifania e encontrou um sentido para a vida: frequentar enterros segurando a alça do caixão para, como dizia, “sentir o peso do defunto”.
Jaiminho nunca revelou como conseguia se infiltrar em enterros diversos, burlar esquemas de segurança, ficar ao lado de autoridades e eventualmente levar o defunto até, como gostava de dizer, a última morada. Chegou mesmo a dar autógrafos em diversos velórios, virou celebridade e conseguiu patrocínio para ir a enterros fora do Rio de Janeiro (como o de santa Dulce dos Pobres, na Bahia).
Profissionalmente, Jaiminho era lotado como “assessor de assuntos externos” da prefeitura de Nilópolis e torcedor da escola de samba Beija-Flor. Fundou um museu dos papagaios de pirata no bairro do Rocha, subúrbio carioca.
Jaiminho admitiu ter ficado apavorado em um único enterro na vida: o do Rei Momo Bola, que pesava trezentos quilos. Ele segurou a alça do esquife e preparou-se para o cortejo. Na hora do esforço para levantar o caixão, deu migué, teve um pico de pressão e abdicou do direito de conduzir Bola ao derradeiro destino.
Jaiminho também viveu um momento tenso quando, para não cair na tumba em que estava sendo depositado o caixão do governador Leonel Brizola, o prefeito Marcelo Alencar se escorou nele. Os dois quase foram parar na sepultura, fazendo companhia ao falecido maragato.
A rua que sugiro que homenageie Jaiminho é a Monsenhor Manuel Gomes, em frente ao cemitério do Caju, onde ele foi enterrado duas vezes, já que os coveiros erraram a sepultura em seu enterro e tiveram que desenterrar e sepultar novamente o falecido. A homenagem seria justa.

Luiz Antonio Simas, em Crônicas exusíacas e estilhaços pelintras

Ragnarök

Nos sonhos (escreve Coleridge) as imagens figuram as impressões que pensamos que causam; não sentimos horror porque uma esfinge nos oprime — sonhamos uma esfinge para explicar o horror que sentimos. Se isto é assim, como poderia uma simples crônica de suas formas transmitir o estupor, a exaltação, os alarmes, a ameaça e o júbilo que teceram o sonho dessa noite? Não obstante, tentarei essa crônica; talvez o fato de que uma única cena integrou aquele sonho apague ou mitigue a dificuldade essencial.
O lugar era a Faculdade de Filosofia e Letras; a hora, o entardecer. Tudo (como costuma ocorrer nos sonhos) era pouco nítido; uma ligeira magnificação alterava as coisas. Elegíamos autoridades; eu falava com Pedro Henriques Urefia, que na vigília morreu há muitos anos. Bruscamente aturdiu-nos um clamor de manifestação ou de charanga. Alaridos humanos e animais chegavam de Abaixo. Uma voz gritou: Aí vêm! e depois Os Deuses! Os Deuses! Quatro ou cinco sujeitos saíram da turba e ocuparam o estrado da Aula Magna. Todos nós aplaudimos, chorando; eram os Deuses que voltavam depois de um desterro de séculos. Alteados pelo estrado, a cabeça lançada para trás e o peito projetado para a frente, receberam com soberba nossa homenagem. Um sustinha um ramo, que se conformava, sem dúvida, à botânica simples dos sonhos; outro, com um largo gesto, estendia uma de suas mãos, que era uma garra; uma das caras de Jano olhava com receio o recurvado bico de Toth. Excitado talvez por nossos aplausos, um, já não sei qual, prorrompeu em um cacarejo vitorioso, incrivelmente áspero, com algo de gargarejo e de assovio. A partir daquele momento, as coisas mudaram.
Tudo começou pela suspeita (talvez exagerada) de que os Deuses não sabiam falar. Séculos de vida fugitiva e selvagem haviam atrofiado neles o lado humano: a lua do Islã e a cruz de Roma tinham sido implacáveis com estes prófugos. Rostos muito baixos, dentaduras amarelas, bigodes ralos de mulatos ou de chineses e beiçolas bestiais tornavam pública a degeneração da estirpe olímpica. Seus adereços não correspondiam a uma pobreza decorosa e decente, mas sim ao luxo malévolo das casas de jogo e dos lupanares de Abaixo. A uma botoeira sangrava um cravo; em um casaco ajustado se adivinhava o vulto de uma adaga. Bruscamente sentimos que eles jogavam sua última cartada, que eram matreiros, ignorantes e cruéis como velhos roedores e que, se nos deixássemos possuir pelo medo ou pela piedade, acabariam por destruir-nos.
Sacamos os pesados revólveres (na hora surgiram revólveres no sonho), e alegremente demos morte aos Deuses.

Jorge Luis Borges, em Livro de Sonhos

Os Nascimentos | 1536 – Culiacán

Cabeza de Vaca

Oito anos passaram desde que naufragou Cabeza de Vaca na ilha do Mau Fado. Dos seiscentos homens que partiram da Andaluzia, uns quantos desertaram pelo caminho e muitos foram tragados pelo mar; outros morreram de fome, frio ou por causa dos índios, e quatro, apenas quatro, chegam agora a Culiacán.
Álvar Núñes Cabeza de Vaca, Alonso del Castillo, Andrés Dorantes y Estebanico, negro árabe, atravessaram, caminhando, toda a América, da Flórida até a costa do Pacífico. Nus, mudando de pele como as serpentes, comeram ervas pedreiras e raízes, minhocas e lagartixas e tudo que era vivo e que puderam encontrar, até que os índios lhes deram mantas e figos-da-índia e milho a troco de milagres e curas. A mais de um morto ressuscitou Cabeza de Vaca, rezando Pai-nossos e Aves-marias, e curou muitos debentes fazendo o sinal da cruz e soprando o lugar onde doía. De légua em légua, ia crescendo a fama dos milagreiros; multidões saíam para recebê-los nos caminhos e as aldeias se despediam deles com bailes e alegrias.
Em terras de Sinaloa, indo para o sul, apareceram as primeiras pegadas de cristãos. Cabeza de Vaca e seus companheiros encontraram fivelas, cravos de ferradura, estacas de atar cavalos. Também encontraram medo: cultivos abandonados, índios que fugiam para os montes.
Estamos perto – disse Cabeza de Vaca. – Depois de tanto caminhar, estamos perto de nossa gente.
Eles não são como vocês – disseram os índios. – Vocês vêm donde sai o sol, e eles, de onde o sol se põe. Vocês curam os doentes e eles matam os sadios. Vocês andam nus e descalços. Vocês não tem cobiça de coisa alguma.

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

O recado do morro (excerto)


[...]

Ao em seguimento disso, só na sexta-feira de tardinha foi que chegaram no arraial, terminada a viajação. Aquela hora mesma, Pedro Orósio e o Ivo tocaram suas pagas e agrados — o gratisdado, em bôas cédulas. “Gastar atôa, não gasto. É baixo! Nem entro em frojoca...” — Pedro se constou. — “Ainda, olha, amanhã de noite é a festa, oé? Melhor a gente ir junto, em az. Viro, venho te buscar...” — o Ivo dispôs. — “Uai, ara...” Aí, Pedro Orósio passou para a casa de seô Tolendal, que tinha venda. A ele satisfez o resto de umas dívidas, o restante lhe pediu que guardasse. Cobre seu, não-vê, era para bembaratar no justo e certo. E seô Tolendal — homem entendido em confiança e inteligência — mandou arrumar uma cama para o Pedro repousar aquela noite. Dormiu em bom colchão com lençol e colcha, em cima do balcão.
E faz e acontece que, sábado, de manhã, cedinho até demais, o povo todo morador naquela rua principal teve de se acordar debaixo duma continuação de gritos grados, que não achavam suspensão. Pedro Orósio se levantou, abriu em fresta a porta da venda. Que viu? Era o homem dôido — aquele Nominedômine! Em bem que ele agora estava vestido, de algum jeito. E tinha enrolado uma ruma de panos em cada pé, em guisa de servir de calçado: aquilo parecia o sujeito pisando poeira enfiado em dois travesseirões, frouxoso. Estafermo mesmo assim, arava o passo, pernas tantas, até cada fim da rua, e retornava, estroso, ardente, cachorro caçado, sete fôlegos. Abria o peito: — “...É a Voz e o Verbo... É a Voz e o Verbo... Arreúnam, todos, e me escutem, que o fim-do-mundo está pendurando! Siso, que minha prédica é curta, tenho que muito ir e converter...”
Da casa-de-venda do Flôr, do outro lado da esquina, um moço cometa se chegava à janela e perguntava: — “Você é Cristo, mesmo, ou é só João Batista?...”
E o vira-mundo malucal, que já ia se afastado, se revirou, rente, por sobre o descompasso de suas altas pernas, que nem umas andas, e levantou os braços, bem escancarados — feito precisasse de escorar a queda do céu. E deu exclama:
Bendito o que vem in nômine Dômine!
Se via que ele estava no último ponto de escarnado, escaveirado, o sol queimara aquela cara, de descascar pele. Mas perdera a gaforina — devia de ter pedido a alguém para lhe rapar a cabeça. E os olhos frechavam, resumo de brasas. Dava pena. De seguro, teria terminado o traquejo de jejum e rezas no malhador de gado do raso do Modestim, e nem esperara por mais nada, para executar o danado avanço, de déu em déu, em nome de Deus. Só podia ser que tivesse navegado a madrugada inteira, para vir chegar agora a esta hora. Em algum sítio podia ser que tivessem dado a ele um café?
— … Sua pergunta é do rogo da fé, e não da carne, não, moço. O senhor é homem gentil, tem galardão! Tem galardão... Mas eu sou o zerinho zero, malemal uma humilde criatura do Senhor: eu nem sou a Voz... Vinde, povo: senvergonhas, pecadores, homens e mulheres, todos. Todos eu amo, vim por vosso serviço, Deus enviou por mim, ele requer o vosso remimento. Dele tenho o praz-me. Olha o aviso: evém o fim do mundo, em fôgo, fôgo e fôgo! O mundo já começou a se acabar, e vós semprando na safadeza, na goiosa! Contraforma! Contraforma! Olha o enquanto-é-tempo... Vamos, vamos: p’r’ a igreja! Todos me acompanhem. Aqui-del-papa! Aqui-del-presidente!
Desabalou de vez, olho da rua a longe, quase correndo, feito pulando rego, tinha de alargar também as pernas — aqueles rôlos de pano nos pés dele foiçavam porção de poeira. Por um vago, a gente estremecia, salteado do aflêcho comandante daquela voz, que instava calafrios: quase que se ia acreditando. As mulheres se benziam. Aí já havia pessoas em praça — pois era véspera de festa, o arraial se apostava com limpezas e arcos embandeirinhados, estando cheio de forasteiros; por maior, pretos. Outros, que acordaram com a latomia do Nominedômine em seu ir e desvir, durado em mais de quarto-de-hora, já tinham vestido roupa, e saíam como público. Que era que deviam de fazer? Ir chamar os frades? O dôido, direto para a igreja do Rosário, era capaz de obrar muitos desatinos. Devia-se de ir para lá. Pedro Orósio também já estava pronto, fora de portas. Aquele dia-de-sábado principiava bem.
E de repente o sino do Rosário se tangeu — col a col, cantarol. Ah, quem batia, sabia: tantoava em repique e repinico, muito claro no bimbalho. Mas, foi logo a forte, dez mãos pelo badalo, pegou a bedelengar a tôrto, dlá e dlém, parecia querer romper de vez a forma de seu carôço dele. Virgem! — o Nominedômine tinha alcançado de chegar à torre, a igreja estava entregue aos máscaras, carecia de o pessoal todo do arraial correr para lá. O homem dava rebate, rebimbo, dobra que redobrava, a tal. Depois, perdia qualquer estilo. Era só aquela fúria: dladlava, dlandoava, o sino também fervia do juízo! Ora, o sinão do Rosário é reinol, de bôa marca, bem santificado: é sino de uma légua. A portanto, aquilo bronze zoava fora de rol, transtornava a gente. Agora, sim, o Nominedômine, Nomendome, Santos-Óleos ou Jubileu — ele cujo tinha encontrado seu poder de rachar os ouvidos do povo todo, em prol, com sua gritação do fim do mundo. Corriam para lá. Manejar errado com sino é negócio tenebroso. E Pedro Orósio corria mais na frente — ele era por longe o trucúlo de homem mais possante do lugar, capaz de capaz. Para agarrar, seguro, braços e pernas do desgraçado, e arretirá-lo do santo assoalho da igreja, e socar paz e sossego, a bem dos usos da razão. Todos iam ficando por detrás do Pedro. — “Dá nele, Pê! Senta a mão nesse desordeiro... Isso é puro herege!” — uns gritavam, já alegres, assanhados. E o sino feria, estalava facas no ar, feito raios. Mas no plém dele se sentia uma alegria maluca e santa, rompendo salvação, pelas altas glórias. A voz do Nominedômine, em seu despropósito de urgente felicidade. Aí, quando iam acabando de subir a ladeirinha, e chegando lá — ele parou. Esbarrou de tocar, de um pronto curto, no coração da gente, que se tonteou. Como quando uma cigarra graúda de dezembro está tinindo muito perto, e acaba.
Na igreja, lá estava ele, o Santos-Óleos, junto do altar-mor e virado para os fiéis — pois mesmo àquela hora já havia gente ajoelhada em posto — as velhas igrejeiras, umas velhas ou mesmo moças, cada qual com seu terço nos dedos, quase todas com mantos na cabeça, seus fichús.
E pois, ele pregava. Alargava braços altos, gloriava os olhos, santamente, para cima, cruzes que a mão sinalava no ar, administrava. Mas muito sacudia as pernas, ligeiroso, o pior era que a gente via aqueles travesseirões que ele calçava, parecia coisa que estava maldansando.
A igreja agora estava cheia, de mulheres e homens, que escutavam aquietados. E ninguém, nem Pedro Orósio, não tinha coragem de ir sojigar o homem dali, e o expulsar pra fora, só pelo tanto que ele invocava o nome da Virgem e de Deus, e porque tinham medo de produzir algum sacrilégio, no consagrado daquele recinto, estando o Senhor no Tabernáculo. Mas nada ou quase nada do que o Nominedômine dava de sermão, se aproveitava. Que o que ele dizia:
Às almas, meus irmãos! O fim do mundo, mesmo, já começou, por longes terras. E vem vindo... Olha os prazos! Vamos rezar, vamos esquentar, vamos ser! Bons jejuns... Alerta — às almas!... Daqui vou, beijar o pé esquerdo e a mão direita de Santa Manoelina dos Coqueiros. A data exata do fim, Deus vai me dizer é lá na capelinha largada nos campos, nos Fêchos-do-Funil... Lá não me ouvem: terra de um maltrata seu mensageiro. Cambada! Quer sono, não tem sonho... Orate fratres... Vocês mesmo não notam: mas a alma de cada um já começou a ficar adormecida... Olha os prazos! Olhem para os bichos, por comparação…
Mas, nesse justo momento, vinham chegando os frades — frei Sinfrão e frei Florduardo — evinham enérgicos. O Nominedômine, de lá do altar, curvou mesura profunda, e garrou a acabar de sermoar, depressa ainda mais, sabendo que agora lhe sobrava pouquinho tempo. Refalava: — “...No ermo onde fortifiquei meus dias de jejum maior, num recampo de gados, veio um anjo mandado, um anjo papudo e idiota — mais do que assim eu não mereci... Ele mesmo me confirmou e me disse do aspecto do fim grave. Me escutem!”
E nisso Pedro Orósio, correndo pelo meio da igreja, a fito de ajudar a defender os frades, caso o Nominedômine reagisse contra eles, deu uma esbarrada no Coletor. O qual Coletor era outro que não regulava bem. Estava com sua pilha de papéis e jornais, e com as algibeiras cheias de tocos de lápis, com eles constantemente fazia contas de números nas beiradas brancas dos jornais. E o Coletor era um que gostava de frequentar sempre perto ou dentro de igreja, e se ajoelhara rente na primeira fileira, junto com as mulheres mais beatas, ao pé do gradil da banca de comunhão. E com o esbarrão do Pedro Orósio ele se despertou e alevantou a prumo a cabeça.
— … Escutem minha voz, que é a do Anjo dito, o papudo: o que foi revelado. Foi o Rei, o Rei-Menino, com a espada na mão! Tremam, todos! Traço o sino de Salomão... Tremia as peles — este é o destino de todos: o fim de morte vem à traição, em hora incerta, é de noite... Ninguém queira ser favoroso! Chegou a Morte — aconforme um que cá traz, um dessa banda do norte, eu ouvi — batendo tambor de guerra! Santo, santo, Deus dos Exércitos... A Morte: a caveira, de dia e de noite, festa na floresta, assombrando. A sorte do destino, Deus tinha marcado, ele com seus Dôze! E o Rei, com os sete homens-guerreiros da História Sagrada, pelos caminhos, pelos ermos, morro a fora... Todos tremeram em si, viam o poder da caveira: era o fim do mundo. Ninguém tem tempo de se salvar, de chegar até na Lapinha de Belém, pé da manjedoura... Aceitem meu conselho, venham em minha companhia... Deus baixou as ordens, temos só de obedecer. É o rico, é o pobre, o fidalgo, o vaqueiro e o soldado... Seja Caifaz, seja Malaquias! E o fim é à traição. Olhem os prazos!…
Mas, por aí, o frei Florduardo já se chegava, bastou só levantar a mão, para atenção: e o Nominedômine se ajoelhou de vez, aos pés dele, prostrou a cara. — “Pode ir, meu filho. Deus te abençôe...” — o frade falou. E o Nominedômine se levantou e foi puxando, vagaroso, pela beira da igreja, de olhos postos, rezando cantado em latim o Credo e o Padre-Nosso, com voz tão enfadonha. À porta, se voltou e declarou assim inesperado: — “Olha o responsório! Olha o falimento do fim, cambada!” Daí, se foi. Dava dó. Quem sabe ele não estava pressentindo um fiapo dos tempos? Pedro Orósio ainda veio cá fora, perseguí-lo com a vista. Embora, ô cujo para comer estrada: rumou, rumou, era aquela terrível velocidade, dum lado e doutro não queria saber de nada. Tirou dali, desceu, cortou a várzea, subiu como quem ia para a Lagôa, pelo Bento-Velho. Já estava alongado demais. Por fim, foi para o morro, adversamente, abriu um furozinho preto no horizonte, por ele se passou, e se sumiu do mundo.
[…]

Guimarães Rosa, em No Urubuquaquá, No Pinhém

Tudo muda

A natureza universal tem este trabalho: levar algo daqui para ali, transformá-lo e levá-lo de lá para longe. Tudo muda. Não precisamos temer nada novo. Tudo é familiar. A distribuição de tudo permanece semelhante.

Marco Aurélio, em Meditações

Leitura

Era um quintal ensombrado, murado alto de pedras,
As macieiras tinham maçãs temporãs, a casca vermelha
de escuríssimo vinho, o gosto caprichado das coisas
fora do seu tempo desejadas.
Ao longo do muro eram talhas de barro.
Eu comia maçãs, bebia a melhor água, sabendo
que lá fora o mundo havia parado de calor.
Depois encontrei meu pai, que me fez festa
e não estava doente e nem tinha morrido, por isso ria,
os lábios de novo e a cara circulados de sangue,
caçava o que fazer pra gastar sua alegria:
onde está meu formão, minha vara de pescar,
cadê minha binga, meu vidro de café?
Eu sempre sonho que uma coisa gera,
nunca nada está morto.
O que não parece vivo, aduba.
O que parece estático, espera.

Adélia Prado, em Bagagem

Poema

Oh! aquele menininho que dizia
Fessora, eu posso ir lá fora?”
Mas apenas ficava um momento
Bebendo o vento azul…
Agora não preciso pedir licença a ninguém.
Mesmo porque não existe paisagem lá fora:
Somente cimento.
O vento não mais me fareja a face como um cão amigo…
Mas o azul irreversível persiste em meus olhos.

Mário Quintana, em Antologia Poética

Capítulo 149 | Teoria do Benefício

Tão insolúvel que o Quincas Borba não pôde dar com ele, apesar de estudá-lo longamente e com boa vontade. – Ora adeus! concluiu; nem todos os problemas valem cinco minutos de atenção.
Quanto à censura de ingratidão, Quincas Borba rejeitou-a inteiramente, não como improvável, mas como absurda, por não obedecer às conclusões de uma boa filosofia humanística.
Não me podes negar um fato, disse ele; é que o prazer do beneficiador é sempre maior que o do beneficiado. Que é o benefício? é um ato que faz cessar certa privação do beneficiado. Uma vez produzido o efeito essencial, isto é, uma vez cessada a privação, toma o organismo ao estado anterior, ao estado indiferente. Supõe que tens apertado em demasia o cós das calças; para fazer cessar o incômodo, desabotoas o cós, respiras, saboreias um instante de gozo, o organismo torna à indiferença, e não te lembras dos teus dedos que praticaram o ato. Não havendo nada que perdure, é natural que a memória se esvaeça, porque ela não é uma planta aérea, precisa de chão. A esperança de outros favores, é certo, conserva sempre no beneficiado a lembrança do primeiro; mas este fato, aliás um dos mais sublimes que a filosofia pode achar em seu caminho, explica-se pela memória da privação, ou, usando de outra fórmula, pela privação continuada na memória, que repercute a dor passada e aconselha a precaução do remédio oportuno. Não digo que, ainda sem esta circunstância, não aconteça, algumas vezes, persistir a memória do obséquio, acompanhada de certa afeição mais ou menos intensa; mas são verdadeiras aberrações, sem nenhum valor aos olhos de um filósofo.
Mas, repliquei eu, se nenhuma razão há para que perdure a memória do obséquio no obsequiado, menos há de haver em relação ao obsequiador. Quisera que me explicasse este ponto.
Não se explica o que é de natureza evidente, retorquiu o Quincas Borba; mas eu direi alguma coisa mais. A persistência do benefício e seus efeitos. Primeiramente, há o sentimento de uma boa ação, e dedutivamente a consciência de que somos capazes de boas ações; em segundo lugar, recebe-se uma convicção de superioridade sobre outra criatura, superioridade no estado e nos meios; e esta é uma das coisas mais legitimamente agradáveis, segundo as melhores opiniões, ao organismo humano. Erasmo, que no seu Elogio da Sandice escreveu algumas coisas boas, chamou a atenção para a complacência com que dois burros se coçam um ao outro. Estou longe de rejeitar essa observação de Erasmo; mas direi o que ele não disse, a saber, que se um dos burros coçar melhor o outro, esse há de ter nos olhos algum indício especial de satisfação. Por que é que uma mulher bonita olha muitas vezes para o espelho, senão porque se acha bonita, e porque isso lhe dá certa superioridade sobre uma multidão de outras mulheres menos bonitas ou absolutamente feias? A consciência é a mesma coisa; remira-se a miúdo, quando se acha bela. Nem o remorso é outra coisa mais do que o trejeito de uma consciência que se vê hedionda. Não esqueças que, sendo tudo uma simples irradiação de Humanitas, o benefício e seus efeitos são fenômenos perfeitamente admiráveis.

Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas

Descobridor de novos mares

Ensinar a pesquisar: essa é uma das grandes alegrias do professor, somente comparável à do pai que vê o filho partindo sozinho, como pássaro jovem que, pela primeira vez, se lança sobre o vazio com suas próprias asas. O professor vê o discípulo partindo para o desconhecido, para voltar com os mapas que ele mesmo irá fazer, de um mar onde ninguém mais esteve. É isso que deve ser uma pesquisa e uma tese: uma aventura por um mar que ninguém mais conhece.

Rubem Alves, em Do universo à jabuticaba

Do passar além


Assim, lentamente passando por muitos povos e muitas cidades, Zaratustra retornava, fazendo rodeios, a sua montanha e sua caverna. E eis que inesperadamente chegou também ao portão da grande cidade: mas ali saltou-lhe ao encontro um louco que babava, com as mãos estendidas, e barrou-lhe o caminho. Esse era o mesmo louco que o povo chamava “o macaco de Zaratustra”: pois ele tirava alguma coisa do fraseado e da cadência de suas falas e também gostava de tomar empréstimos ao tesouro de sua sabedoria. E o louco falou assim a Zaratustra:
Ó Zaratustra, aqui é a grande cidade: aqui nada tens a procurar e tens tudo a perder.
Por que pretendes vadear esse lamaçal? Tem compaixão por teus pés! É melhor cuspires na porta da cidade e — dares meia-volta!
Aqui é o inferno para os pensamentos de eremitas: aqui os grandes pensamentos são refogados vivos e ficam pequenos depois de cozidos.
Aqui apodrecem os grandes sentimentos: apenas sentimentozinhos secos podem aqui matraquear!
Não sentes o cheiro dos matadouros e tabernas do espírito? Esta cidade não exala o miasma do espírito abatido?
Não vês as almas penduradas como trapos moles e sujos? — E ainda são feitos jornais desses trapos!
Não ouves como aqui o espírito se tornou jogo de palavras? Uma repugnante lavadura de palavras ele vomita! — E ainda são feitos jornais com essa lavadura de palavras.
Provocam uns aos outros, e não sabem a quê? Agitam uns aos outros, e não sabem por quê? Fazem retinir seu latão, fazem tilintar seu ouro.
São frios e procuram calor em aguardentes; são acalorados e buscam frescor em espíritos gelados; são todos enfermos e viciados em opiniões públicas.
Todos os vícios e apetites aqui estão em casa; mas há também virtuosos, há muita virtude empregável e empregada. —
Muita virtude empregável, com dedos de escrever e dura carne de sentar e esperar, abençoada com pequenas estrelas no peito e filhas estofadas e sem traseiro.
Também há muita devoção aqui, e muito capachismo crédulo, puxa-saquismo sédulo ante o deus dos exércitos.
Lá do alto’ gotejam, de fato, a estrela e a benigna saliva;110 para o alto se dirige a aspiração de todo peito sem estrela.
A lua tem sua corte, e a corte tem seus patetas: mas diante de tudo que vem da corte reza o povo de pedintes e toda aproveitável virtude de pedintes.
Eu sirvo, tu serves, nós servimos’ — é a oração que toda virtude aproveitável ergue até o príncipe: para que a merecida estrela finalmente se aplique ao estreito peito!
Mas a lua continua a girar em torno de tudo que é terreno: assim também o príncipe gira em torno do que é mais terreno de tudo —: isso, porém, é o ouro dos merceeiros.
O deus dos exércitos não é o deus das barras de ouro; o príncipe propõe, mas o merceeiro — dispõe!
Por tudo o que é luminoso, bom e forte em ti, ó Zaratustra! Cospe sobre esta cidade de merceeiros e dá meia-volta!
Aqui, todo o sangue corre pútrido, morno e espumoso por todas as veias: cospe sobre a grande cidade, que é o grande esgoto onde toda a escória se junta e espumeja!
Cospe sobre a cidade das almas esmagadas e peitos estreitos, dos olhos afiados, dos dedos viscosos —
sobre a cidade dos importunos, dos desavergonhados, dos berradores e escrevinhadores, dos ambiciosos superexcitados: —
onde supura tudo que é quebradiço, desacreditado, lascivo, sombrio, cediço, ulceroso, conspirativo: —
cospe sobre a grande cidade e dá meia-volta!” — —
Mas nesse ponto Zaratustra interrompeu o louco que babava e tapou-lhe a boca com a mão.
Cala-te!”, gritou Zaratustra; “há muito que me enojam tuas palavras e teu jeito!
Por que viveste por tanto tempo no pântano, tornando-te tu mesmo rã e sapo?
Em tuas próprias veias não corre sangue pútrido e espumoso de pântano, de modo que assim aprendeste a coaxar e praguejar?
Por que não foste para o bosque? Ou araste a terra? O mar não está cheio de ilhas verdes?
Eu desprezo o teu desprezo; e, se me advertiste — por que não advertiste a ti mesmo?
Apenas do amor devem partir meu desprezo e meu pássaro admoestador: não do pântano!
Chamam-te meu macaco, ó louco que baba: mas eu te chamo meu porco grunhidor — com teus
O que foi, então, que te fez grunhir? Que ninguém te lisonjeasse o bastante: — por isso te puseste nessa imundície, para teres motivo para bastante grunhir, —
para teres motivo de muita vingança! Pois vingança, ó louco vaidoso, é todo o teu espumar, eu bem te adivinhei!
Mas tuas palavras de louco prejudicam a mim, mesmo quando estás certo! E, ainda que as palavras de Zaratustra fossem mil vezes certas: tu, com minhas palavras, sempre — farias errado!”
Assim falou Zaratustra; e ele olhou para a grande cidade, suspirou e longamente ficou em silêncio. Por fim, falou assim:

Também me enoja essa grande cidade, não apenas esse louco. Num e noutro não há o que melhorar, não há o que piorar.
Ai dessa grande cidade! — E eu gostaria de já enxergar a coluna de fogo em que ela arderá!
Pois tais colunas de fogo devem preceder o grande meio-dia. Mas esse tem seu tempo e seu destino. —
E este ensinamento te dou, ó louco, como despedida: onde não se pode mais amar, deve-se — passar ao largo! —

Assim falou Zaratustra, passando ao largo do louco e da grande cidade.

Friedrich Nietzsche, em Assim Falou Zaratustra

os falastrões

o garoto caminha por minha alma com pé
sembarrados
falando de recitais, virtuosi, regentes,
os romances menos conhecidos de Dostoiévski;
falando de como corrigiu uma garçonete,
uma fuleira que não sabia que a vestimenta francesa
se compunha disso e daquilo;
ele tagarela sobre as Artes até que
eu odeie as Artes,
e não há nada mais limpo
do que voltar ao bar ou
às pistas para vê-los correr,
ver as coisas sem este
clamor e papagaiada,
conversa, conversa, conversa,
a boquinha que não para, os olhos piscando,
um garoto, uma criança, doente por causa das Artes
agarrado a elas como à saia de uma mãe,
e eu me pergunto quantas dezenas de milhares
existem como ele espalhados pela terra
em noites chuvosas
em manhãs de sol
em fins de tarde feitos para a paz
em salas de concerto
em cafés
em saraus
falando, emporcalhando, argumentando.
é como um porco que vai para a cama
com uma boa mulher
e você já não quer
mais essa mulher.

Charles Bukowski, em Queimando na água, afogando-se na chama

O lar

São quatro cadeiras na sala de visitas. Quatro cadeiras escuras ao redor da mesa pequena. No centro da mesa o jarro. No terraço a toalha seca ao vento da noite. O relógio da praça bate Um. Dois. Quatro. Onze badaladas se alargam até a ponte abandonada. No canto da sala de visitas o móvel quadrado – é sombra? é móvel? – onde pousam diminutos os cigarros, o charuto apagado, o copo vazio, e em monumento o vidro de pílulas para os nervos. No corredor o linóleo gelado. O longo corredor. Na sala de jantar a mesa vazia. Os pratos luzentes em pilha. O vento pela janela aberta, que perigo. Embaixo a calçada seca, a curva do arvoredo. Na cristaleira as xícaras de chá. Duas fatias endurecidas de bolo. A mosca presa adormeceu contra o vidro. Ou está morta, que perigo. No alto a lâmpada exulta. A cozinha... O bule com café frio. O cheiro morno do lixo, o vento pelas persianas. A cabeça de uma galinha, que perigo. O fogão vazio – o que lembra? O pingo d’água na torneira da pia. A luz do poste aclara a panela, ah. O pingo d’água. A aspirina sobre a mesa da cozinha? que desordem, que desordem. No banheiro a escuridão e a pasta de dentes. E das trevas a banheira fantástica, que perigo. A calça na corda? a maçaneta brilha, dois copos grandes de metal e um pequeno, rolado? rolado... No corredor o urso e a boneca no quarto... na paz vertiginosa, a família dorme. O relógio da praça bate Um. Dois. Cinco. Nove. Doze badaladas. Afasto-me silenciosamente e atravesso a janela cuidadosamente fechada. A mulher suspira. O luar, que perigo. Ah.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

A Contadora de Filmes | [23]

Depois dessas sessões os aplausos ficavam ressoando em mim a noite toda, a ponto de eu não conseguir conciliar o sono. Em meus desvelos pensava em minha mãe, e chorava em silêncio debaixo das cobertas. Quando ela nos abandonou, do mesmo jeito que meu irmão começou a gaguejar eu me cobri de piolhos brancos. As vizinhas diziam que esse tipo de piolho aparecia quando a gente tinha alguma dor na alma. E como a dor era pela minha mãe, comecei a comer os piolhos de amor por ela.
Tanto assim eu amava minha mãe.
Tanto assim eu sentia falta dela.
Como ela se sentiria orgulhosa agora, eu dizia a mim mesma, se visse como as pessoas me ouvem e me aplaudem!
Será que a aplaudem tanto como a mim, depois de suas danças? Será que ela mudou seu nome por outro, mais artístico? Será que continua usando aqueles lenços de seda, tão bonitos? Sufocando-me debaixo das cobertas, eu a imaginava dançando seminua, num palco enfeitado com luzes coloridas que acendiam e apagavam. É que num daqueles dias eu tinha ficado sabendo, por algumas mulheres na fila do pão, que minha mãe havia ido embora para ser dançarina num teatro de revista.
Diziam que “a cabeça oca da Magnólia” tinha sido embromada pelo diretor de uma companhia picaresca que passou pela Mina, e levou-a para a capital com a promessa de transformá-la em vedete. O que não entendi direito foi o que uma delas disse, piscando para as outras: que vários viúvos tinham ficado chorando a sua fuga, e que o mais triste de todos era o senhor administrador.
Minha mãe tinha vinte e seis anos quando foi embora. E apesar de ter tido cinco filhos em cinco anos seguidos (o primeiro ela teve aos catorze) conservava um porte invejável. Disso eu me lembro perfeitamente porque várias vezes, quando estávamos as duas sozinhas em casa, eu a vi dançar com roupa íntima na frente do espelho.
No entanto, seu rosto ia se desvanecendo em mim, ia se apagando como o de uma atriz que tinha parado de fazer filmes há muito tempo. Outra coisa que me acontecia era que, de tanto ver e contar filmes, muitas vezes eu os embaralhava com a realidade. E me custava lembrar se determinada coisa eu tinha vivido ou visto projetada na tela. Ou se havia sonhado. Porque acontecia que até meus próprios sonhos eu confundia depois com cenas de filmes.
A mesma coisa acontecia com as lembranças mais lindas da minha mãe. As imagens dos poucos momentos felizes vividos com ela iam se desvanecendo na minha memória, inapelavelmente, como cenas de um filme velho.
Um filme em branco e preto.
E mudo.

Hernán Rivera Letelier, em A Contadora de Filmes

A estrutura do "Orlando"


Orlando Furioso é um poema que se recusa a começar e se recusa a acabar. Recusa-se a começar porque se apresenta como a continuação de um outro poema, Orlando innamorato, de Matteo Maria Boiardo, interrompido pela morte do autor. E se recusa a acabar porque Ariosto não para nunca de trabalhar dentro de nós. Após tê-lo publicado em sua primeira edição de 1516, em quarenta cantos, procura fazê-lo crescer, inicialmente tentando dar-lhe uma sequência, que foi truncada (os chamados Cinque canti, publicados postumamente), depois inserindo novos episódios nos cantos centrais, de modo que na terceira e definitiva edição, que é de 1532, os cantos passaram a ser 46. Nesse meio-tempo, houve uma edição de 1521, que testemunha outro modo de não se considerar o poema definitivo, isto é, a limpeza, o ajuste da língua e da versificação, que Ariosto continua a buscar. Por toda a vida, poderíamos dizer, pois para chegar à primeira edição de 1516, Ariosto havia trabalhado doze anos e outros dezesseis sofre para publicar a edição de 1532 e, no ano seguinte, morre. Essa dilatação a partir do interior, fazendo proliferar episódios de episódios, criando novas simetrias e novos contrastes, me parece que explica bem o método de construção de Ariosto; e permanece para ele o verdadeiro modo de alargar esse poema de estrutura policêntrica e sincrônica, cujas vicissitudes se difundem em todas as direções e se bifurcam continuamente.
Para acompanhar as aventuras de tantas personagens principais e secundárias o poema precisa de uma “montagem” que permita abandonar uma personagem ou um teatro de operações e passar para outro. Essas passagens às vezes ocorrem sem romper a continuidade da narrativa, quando duas personagens se encontram e a narrativa, que estava seguindo a primeira, se afasta para ir atrás da segunda; outras vezes, ao contrário, mediante cortes nítidos que interrompem a ação bem no meio de um canto. São em geral os dois últimos versos da oitava que informam sobre a suspensão e descontinuidade no relato, duplas de versos rimados como estes: “Segue Rinaldo, e d’ira si distrugge: ma seguitiamo Angelica che fugge” [Segue Rinaldo e com ira se desfaz: sigamos Angelica que sombra se faz]; ou então: “Lasciànlo andar, che farà buon camino, e torniamo a Rinaldo paladino” [Deixem-no ir, pois fará boa estrada, e voltemos a Rinaldo, alerta espada]; ou ainda: “Ma tempo è ormai di ritrovar Ruggiero che scorre il ciel su l’animal leggiero” [Mas já é tempo de encontrar Ruggiero que varre o céu no animal bem célere]. Enquanto essas cesuras da ação se situam no interior dos cantos, pelo contrário, o fecho de cada canto promete que o relato continuará no canto sucessivo; também aqui essa função didática é em geral atribuída ao par de versos rimados que concluem a oitava: “Come a Parigi appropinquosse, e quanto Carlo aiutò, vi dirà l’altro canto” [Como de Paris aprochegou-se, e quanto Carlo ajudou, dirá o outro canto].
Frequentemente, para fechar o canto, Ariosto finge de novo ser um aedo que recita seus versos numa noitada da corte: “Non più, Signor, non più di questo canto; ch’io son già rauco, e vo’ posarmi alquanto” [Não mais, Senhor, não mais deste canto; que já estou rouco, vou pousar um tanto]; ou então se nos mostra — testemunho mais raro — no ato material de escrever: “Poi che da tutti i lati ho pieno il foglio, finire il canto, e riposar mi voglio” [Pois de todos os lados cheia folha já vejo, terminar o canto e recuperar-me desejo].
Ao contrário, o início do canto subsequente comporta quase sempre um alargamento do horizonte, um distanciamento da urgência da narração, sob a forma de introdução gnômica ou de peroração amorosa ou ainda de metáfora elaborada, antes de retomar a narrativa do ponto em que foi interrompida. E justamente na abertura dos cantos se situam as digressões sobre a atualidade italiana que são muitas sobretudo na última parte do poema. É como se por meio dessas conexões o tempo em que o autor vive e escreve irrompesse no tempo fabuloso da narrativa.
Definir sinteticamente a forma do Orlando furioso é portanto impossível, pois não estamos perante uma geometria rígida: poderíamos recorrer à imagem de um campo de força, que gera continuamente em seu interior outros campos de força. O movimento é sempre centrífugo; no começo já nos encontramos em plena ação, e isso vale para o poema como para cada canto e episódio.
O defeito de todo preâmbulo ao Furioso é que se começa dizendo: “é um poema que serve de continuação a um outro, o qual continua um ciclo de inúmeros poemas”; o leitor logo se sente desencorajado: se antes de iniciar a leitura terá de conhecer todos os precedentes, e os precedentes dos precedentes, quando é que conseguirá de fato começar o poema de Ariosto? Na realidade, todo preâmbulo logo se revela supérfluo: o Furioso é um livro único em seu gênero e pode ser lido — quase diria: deve — sem fazer referência a nenhum outro livro precedente ou consecutivo; é um universo em si no qual se pode viajar em todos os quadrantes, entrar, sair, perder-se.
Que o autor faça passar a construção desse universo por uma continuação, um apêndice, um — como ele diz — “acréscimo” a uma obra alheia pode ser interpretado como um indício da extraordinária discrição de Ariosto, um exemplo daquilo que os ingleses chamam de understatement, isto é, o especial espírito de ironia contra si mesmo que leva a minimizar as coisas grandes e importantes; mas pode também ser visto como sinal de uma concepção do tempo e do espaço que renega a configuração fechada do cosmos ptolomaico e se abre ilimitada na direção do passado e do futuro, bem como no sentido de uma incalculável pluralidade de mundos.
Desde o início o Furioso se anuncia como o poema do movimento, ou melhor, anuncia o tipo particular de movimento que o percorrerá de um extremo a outro, movimento de linhas quebradas, em zigue-zague. Poderíamos traçar o desenho geral do poema seguindo o contínuo cruzamento e divergência dessas linhas sobre um mapa da Europa e da África, mas já bastaria para defini-lo o primeiro canto, em que três cavaleiros perseguem Angelica que foge pelo bosque, numa sarabanda cheia de extravios, encontros fortuitos, descaminhos, mudanças de programa.
É com esse zigue-zague traçado pelos cavalos a galope e pelas intermitências do coração humano que somos introduzidos no espírito do poema; o prazer da rapidez da ação se mistura logo a um sentido de amplitude na disponibilidade do espaço e do tempo. O procedimento distraído não é só dos perseguidores de Angelica mas também de Ariosto: dir-se-ia que o poeta, iniciando sua narrativa, não conhece ainda o esquema da trama que em seguida o guiará com pontual premeditação, mas uma coisa já tem perfeitamente clara: aquele impulso e ao mesmo tempo aquela facilidade em narrar, ou seja, aquilo que poderíamos definir — com um termo denso de significados — o movimento “errante” da poesia de Ariosto.
Tais características do “espaço” ariostesco, podemos identificá-las na escala do poema inteiro ou dos cantos singulares bem como numa escala menor, a da estrofe ou do verso. A oitava é a medida na qual melhor reconhecemos aquilo que Ariosto tem de inconfundível: na estrofe de oito versos Ariosto se vira como quer, está em casa, seu milagre é feito sobretudo de desenvoltura.
Principalmente por duas razões: uma intrínseca à oitava, isto é, uma estrofe que se presta a discursos também longos e a alternar tons sublimes e líricos com tons prosaicos e jocosos; e uma intrínseca ao modo de poetar de Ariosto, que não se tolhe com limites de nenhum gênero, que não se propôs como Dante uma repartição rígida da matéria, nem uma regra de simetria que o obrigasse a um número de cantos preestabelecido e a um número de estrofes em cada canto. No Furioso, o canto mais breve tem 72 oitavas; o mais longo, 199. O poeta pode mover-se comodamente, se quiser, empregar mais estrofes para dizer algo que outros diriam num verso ou então concentrar num verso aquilo que poderia ser matéria de um longo discurso.
O segredo da oitava ariostesca está em seguir o ritmo variado da linguagem falada, na abundância daqueles que De Sanctis definiu como os “acessórios não essenciais da linguagem”, assim como na desenvoltura da fala irônica; mas o registro coloquial é apenas um dos tantos que ele usa, que vão do lírico ao trágico e ao gnômico, e que podem coexistir na mesma estrofe. Ariosto pode ser de uma concisão memorável; muitos de seus versos se tornaram proverbiais: “Aí está o juízo humano que tanto erra!”, ou então: “Oh, grande bondade dos cavaleiros antigos!”. Mas não é só com esses parênteses que ele pratica suas mudanças de velocidade. Convém frisar que a própria estrutura da oitava se baseia numa descontinuidade de ritmo: aos seis versos unidos por uma dupla de rimas alternadas seguem-se dois versos com rimas emparelhadas, com um efeito que hoje definiríamos como anticlímax, de brusca mudança não só rítmica mas de clima psicológico e intelectual, do culto ao popular, do evocativo ao cômico.
Naturalmente, com tais volteios da estrofe, Ariosto joga do modo que lhe é próprio, mas o jogo poderia tornar-se monótono, sem a agilidade do poeta ao movimentar a oitava, introduzindo as pausas, os pontos fixos em posições diversas, adaptando diversos andamentos sintáticos ao esquema métrico, alternando períodos longos com breves, quebrando a estrofe e, em certos casos, encadeando-a numa outra, mudando continuamente os tempos da narrativa, saltando do pretérito perfeito para o imperfeito, para o presente e para o futuro, criando enfim uma sucessão de planos, de perspectivas da narração.
Essa liberdade, essa amplitude de movimentos que encontramos na versificação dominam ainda mais no nível das estruturas narrativas, da composição do enredo. As tramas principais, vale relembrar, são duas: a primeira conta como Orlando se torna, de apaixonado infeliz por Angelica, doido furioso, e como os exércitos cristãos, pela ausência de seu campeão, arriscam-se a perder a França, e como a razão perdida do louco foi reencontrada por Astolfo na Lua e devolvida ao legítimo proprietário, permitindo-lhe retomar seu lugar na tropa. Paralela a esta se desenvolve a segunda trama, a dos predestinados mas sempre adiados amores de Ruggiero, campeão do campo sarraceno, e da guerreira cristã Bradamante, e de todos os obstáculos que se interpõem ao destino nupcial deles, até que o guerreiro consegue mudar de lado, receber o batismo e arrebatar a robusta apaixonada. A trama Ruggiero-Bradamante não é menos importante que a de Orlando-Angelica, pois Ariosto (como antes Boiardo) quer transformar aquele casal em matriz da genealogia da família D’Este, isto é, não só justificar o poema aos olhos de seus comitentes, mas sobretudo ligar o tempo mítico da cavalaria às vivências contemporâneas, ao presente de Ferrara e da Itália. As duas tramas principais e suas numerosas ramificações vão adiante entrelaçadas, mas se prendem por seu lado ao redor do tronco mais propriamente épico do poema, ou seja, o desenrolar da guerra entre o imperador Carlos Magno e o rei da África, Agramante. Essa epopeia se concentra sobretudo num bloco de cantos que tratam o assédio de Paris visto pelos mouros, a contraofensiva cristã, as discórdias do lado de Agramante. O assédio de Paris é como o centro de gravidade do poema, assim como a cidade de Paris se apresenta como seu umbigo geográfico:

Siede Parigi in uma gran pianura
ne l’ombilico a Francia, anzi nel core;
gli passa la riviera entro le mura
e corre et esce in altra parte fuore:
ma fa un’isola prima, e v’assicura
de la città una parte, e la migliore;
l’altre due (ch’in tre parti è la gran terra)
di fuor la fossa, e dentro il fiume serra.
Alla città che molte miglia gira
da molte parti si può dar battaglia;
ma perché sol da un canto assalir mira,
né volentier l’esercito sbarraglia,
oltre il fiume Agramante si ritira
verso ponente, acciò che quindi assaglia;
però che né cittade né campagna
ha dietro (se non sua) fino alla Spagna*

(XIV, 104 ss.)

De tudo o que foi dito, poderíamos acreditar que no assédio de Paris acabem por convergir os itinerários de todas as personagens principais. Mas isso não acontece: dessa epopeia coletiva está ausente a maior parte dos campeões mais famosos; só a gigantesca massa de Rodomonte sobressai na peleja. Onde se meteram todos os outros?
É preciso dizer que o espaço do poema tem também um outro centro de gravidade, um centro em negativo, uma arapuca, uma espécie de turbilhão que engole uma a uma as principais personagens: o palácio encantado do mago Atlas. A magia de Atlas se deleita com arquiteturas ilusionistas: já no canto IV faz surgir, entre as alturas dos Pireneus, um castelo inteiramente de aço e depois o dissolve no nada; entre o canto XII e o XXII vemos elevar-se, não distante das costas da Mancha, um palácio que é um redemoinho de vazio, no qual se refratam todas as imagens do poema.
A Orlando em pessoa, enquanto está buscando Angelica, acontece ser vítima do encanto, conforme um procedimento que se repete quase idêntico para cada um desses audazes cavaleiros: vê sua bela ser raptada, persegue o raptor, entra num misterioso palácio, roda e rodeia por vestíbulos e corredores desertos. Ou seja: o palácio acha-se deserto daquilo que se busca e é frequentado apenas por quem procura algo.
Estes que vagueiam pelos pórticos e pelos vãos sob as escadas, que remexem debaixo das tapeçarias e baldaquinos são os mais famosos cavaleiros cristãos e mouros: todos foram atraídos para o palácio pela visão de uma mulher amada, de um inimigo inalcançável, de um cavalo roubado, de um objeto perdido. E agora não podem mais afastar-se daquelas paredes: se alguém tenta afastar-se, escuta um chamado, vira-se e a aparição inutilmente perseguida está ali, a dama a ser salva encontra-se numa janela, implorando socorro. Atlas deu forma ao reino da ilusão; se a vida é sempre variada, imprevista e cambiante, a ilusão é monótona, passa e repassa sempre no mesmo ponto. O desejo é uma corrida rumo ao nada, o encantamento de Atlas concentra todas as paixões insatisfeitas no interior de um labirinto, mas não muda as regras que governam os movimentos dos homens no espaço aberto do poema e do mundo.
Também Astolfo chega ao palácio, perseguindo — ou seja, imaginando perseguir — um pobre camponês que lhe roubou o cavalo Rabicano. Mas com Astolfo não há encanto que prevaleça. Ele possui um livro mágico onde se explica tudo sobre os palácios daquele tipo. Astolfo vai direto até a laje de mármore do umbral: basta levantá-la para que todo o palácio se transforme em fumaça. Naquele momento é alcançado por um bando de cavaleiros: quase todos são seus amigos, mas, em vez de dar-lhe boas-vindas, colocam-se contra ele como se quisessem enfiar-lhe a espada. Que acontecera? O mago Atlas, vendo-se em maus lençóis, recorrera a um último encanto: fazer com que Astolfo aparecesse aos vários prisioneiros do palácio como o adversário em cuja perseguição todos eles ali haviam entrado. Porém, Astolfo só precisa soprar em seu berrante para dispersar mago, magia e vítimas da magia. O palácio, teia de sonhos, desejos e invejas, se desfaz: ou seja, deixa de ser um espaço exterior a nós, com paredes, escadas e portas, para voltar a encerrar-se em nossas mentes, no labirinto dos pensamentos. Atlas devolve o livre curso pelas vias do poema às personagens que sequestrara. Atlas ou Ariosto? O palácio encantado se revela um astuto estratagema estrutural do narrador que, pela impossibilidade material de desenvolver simultaneamente um grande número de histórias paralelas, sente falta de retirar, durante alguns cantos, certas personagens da ação, pôr de lado determinadas cartas para continuar seu jogo e usá-las no momento oportuno. O encantador que pretende retardar o cumprimento do destino e o poeta-estratego que ora aumenta ora reduz as fileiras das personagens em campo, reúne-as para depois dispersá-las, sobrepõem-se até identificar-se.
A palavra jogo reapareceu várias vezes em nosso discurso. Mas não devemos esquecer que os jogos, dos infantis aos dos adultos, têm sempre um fundamento sério: são sobretudo técnicas para treinamento de faculdades e atitudes que serão necessárias na vida. O de Ariosto é o jogo de uma sociedade que se sente produtora e depositária de uma visão do mundo, mas sente também o vazio que se cria sob seus pés, entre ruídos de terremoto.
O último canto, XLVI, se abre com a enumeração de uma galeria de personas que constituem o público em que Ariosto pensava ao escrever seu poema. Esta é a verdadeira dedicatória do Furioso, mais do que a reverência obrigatória ao cardeal Ippolito d’Este, a “generosa hercúlea prole” ao qual o poema é dedicado, na abertura do primeiro canto.
A nave do poema está chegando ao porto e, para recebê-la, encontra perfiladas no píer as damas mais belas e gentis das cidades italianas, cavaleiros, poetas e doutos. Trata-se de uma panorâmica de nomes e rápidos perfis de seus contemporâneos e amigos, o que Ariosto desenha: é uma definição de seu público perfeito e ao mesmo tempo uma imagem de sociedade ideal. Para uma espécie de reviravolta estrutural, o poema sai de si mesmo e se observa através dos olhos de seus leitores, se define através do censo de seus destinatários. E por sua vez é o poema que serve de definição ou de emblema para a sociedade dos leitores presentes e futuros, para o conjunto de pessoas que participará de seu jogo, que nele se reconhecerá.

*“Centra-se Paris num grande descampado/ no umbigo da França, mais no coração;/ passa-lhe o rio dentro do amuralhado/ e corre e sai em distante dispersão:/ mas faz uma ilha antes, e resguardado/ da cidade um trecho, em boa condição;/ os outros dois (em três se parte a terra)/ lá fora da fossa, e dentro o rio encerra./ À cidade que muitas milhas gira/ de muitos lados se pode dar batalha;/ mas porque só de um canto assaltar mira,/ bem a contragosto o exército esfrangalha,/ além do rio o exército se retira/ rumo poente, negando combate à canalha;/ contudo nem cidade nem área de campanha/ tem por trás (senão sua) até a Espanha.”

Italo Calvino, em Por que ler os clássicos