sexta-feira, 31 de maio de 2024

Pont du gard


Nos quatro ou cinco dias seguintes, pai e filho estabeleceram uma rotina. Era uma parceria cuidadosa, equilibrada, talvez como dois boxeadores nos primeiros rounds. Nenhum dos dois estava disposto a correr muito risco, por medo de sofrer um nocaute. Michael era o que se expunha menos. Não queria viver outro daqueles momentos “não foi por sua causa que eu vim”. Aquilo seria ruim para todos — ou talvez só para ele.
No sábado, dia em que Clay sentia mais saudade de casa, eles desciam o leito do rio, em vez de subir, e às vezes o garoto se sentia tentado a puxar assunto.
No início, foram apenas coisas bobas.
O Assassino tinha emprego?
Quanto tempo fazia, mais ou menos, que morava ali?
Contudo, logo foi ficando mais inquisitivo, provocador:
Que droga ele estava esperando?
Quando começariam a construção?
Aquela ponte era só uma forma elaborada de procrastinar?
Lembrou-se de Carey e do velho McAndrew — de como fazer perguntas poderia acabar atrapalhando. No entanto, no caso dele, já havia um histórico.
Considerando que era um menino que amava histórias, já tinha sido melhor em fazer perguntas.

***

Quase toda manhã, o Assassino ia para o leito do rio.
Passava horas ali.
Então, entrava para ler, ou escrever em suas folhas soltas de papel.
Clay saía sozinho.
Às vezes subia o rio; até os imensos blocos de pedra.
Sentava-se ali e ficava, sentindo saudade de todos.

***

Na segunda-feira, foram à cidade comprar mantimentos.
Atravessaram o leito em toda a sua secura.
Entraram na caixa vermelha que chamavam de carro.
Clay mandou uma carta para Carey e um bilhete coletivo para casa, aos cuidados de Henry. Enquanto a primeira tecia um relatório detalhado de basicamente tudo que acontecera até então, o segundo era comunicação típica de irmãos.

Oi, Henry.
Aqui tá tudo bem.
E aí?
Avisa aos outros.
Clay

Lembrou que Henry havia sugerido que ele comprasse um celular e pensou que, de certa forma, fazia sentido; seu bilhete parecia mais uma mensagem de texto.
Foi um drama decidir se deveria preencher o endereço do remetente, e acabou colocando só no envelope para Henry. Já no de Carey… Ele não sabia. Não queria que ela se sentisse obrigada a responder. Ou talvez estivesse com medo de que ela não respondesse.

***

Na quinta, tudo mudou, ou pelo menos só um pouquinho; à noite, quando Clay foi ficar com ele por livre e espontânea vontade.
Foi na sala de estar, e Michael não disse nada, só lançou ao filho um olhar cauteloso, e Clay se sentou no chão, perto da janela. Começou lendo o último dos livros dela — da generosa Cláudia Kirkby —, mas logo passou para um almanaque de pontes; aquele que lia com mais frequência. O título não era muito promissor, mas o que ele amava era o conteúdo ali dentro. As pontes mais incríveis do mundo.
Durante um tempo, teve dificuldade para se concentrar, mas depois de uma boa meia hora, o primeiro sorriso estampou seu rosto quando ele viu sua ponte preferida.
A Pont du Gard.
Incrível não era uma palavra incrível o bastante para descrever aquela ponte, que também servia de aqueduto.
Foi construída pelos romanos.
Ou pelo diabo, dependendo da versão em que você acreditasse.
Admirando as estruturas da ponte — meia dúzia de imensos arcos na base, onze na seção do meio e trinta e cinco no topo —, Clay abriu um sorriso que foi crescendo.
Quando percebeu, se recompôs.
Foi por pouco.
O Assassino quase notou.

***

Domingo à noite, o homem encontrou Clay no leito do rio, no ponto em que cortava as duas vias da estrada. De longe mesmo, avisou:
Preciso passar dez dias fora.
Ele tinha um trabalho, afinal.
Na mina.
Ficava a seis horas de carro dali, depois de sua antiga cidade, Featherton.
Enquanto falava, o sol poente parecia cheio de preguiça, ao longe. A sombra das árvores se alongava.
Você pode voltar para casa durante esses dez dias ou pode ficar aqui.
Clay se levantou e fitou o horizonte.
O céu lutava com unhas e dentes, mas já começava a sangrar.
Clay?
Então o menino se virou e deu ao pai a primeira prova de sua camaradagem, ou um pedacinho de si mesmo; contou uma verdade.
Não posso ir para casa. — Ainda era cedo demais para tentar isso. — Não posso voltar. Ainda não.
A resposta de Michael foi tirar algo do bolso.
Era um panfleto de imobiliária, com fotos do terreno, da casa e de uma ponte.
Toma — disse ele —, dá uma olhada.
A ponte era bonita. Uma construção de cavalete simples, com dormentes e vigas de madeira, que no passado unira as duas margens bem no ponto em que eles estavam.
Ficava aqui?
Ele assentiu.
O que achou?
Clay não viu motivo para mentir.
Gostei.
O Assassino correu os dedos pelo cabelo ondulado. Esfregou um dos olhos.
O rio a destruiu, pouco depois que me mudei. Quase não chove desde então. Já faz um bom tempo que o leito está seco desse jeito.
Clay deu um passo na direção dele.
Sobrou alguma coisa?
Michael apontou para as poucas ripas cravadas.
Só isso?
Só isso.
Do lado de fora, o trovão de escarlate seguia tomando o céu, uma hemorragia silenciosa.
Andaram de volta para casa.
Nos degraus da frente, o Assassino perguntou:
É o Matthew? — Mais do que falar, ele entregou a pergunta. — Você fala muito o nome dele enquanto dorme. — Então hesitou. — Na verdade, você fala o nome de todos eles, e alguns outros. Tem uns de que eu nunca nem ouvi falar.
Carey, pensou Clay, mas então Michael disse El Matador. Perguntou:
El Matador no quinto?
Mas chega.
Melhor não abusar da sorte.
Quando Clay olhou para ele daquele jeito, o Assassino compreendeu. Voltou à pergunta original.
Matthew proibiu você de voltar para casa?
Não, não é bem assim.
Não precisava dizer mais nada.
Michael Dunbar conhecia bem a alternativa.
Você deve sentir saudade deles.
A raiva que sentia do pai se acendeu no peito de Clay.
Pensou em meninos, quintais e pregadores no varal.
Olhou bem nos olhos dele e disse:
E você não?
Cedo, bem cedo, por volta das três da manhã, discerniu a sombra do Assassino de pé ao lado da cama dele. Ficou se perguntando se aquilo trazia ao Assassino a mesma recordação que trazia a ele próprio, da última vez em que fizera exatamente aquilo, na horrível noite em que nos abandonara.
Primeiro, pensou que era um invasor, mas logo conseguiu enxergar. Reconheceria aquelas mãos de algoz em qualquer lugar. Ouviu a voz moribunda:
Pont du Gard?
Silêncio, tanto silêncio.
Então ele o vira, no fim das contas.
Essa é a sua preferida?
Clay engoliu em seco e assentiu na escuridão.
É.
Alguma outra?
A de Regensburg. A Ponte do Peregrino.
Essa tem três arcos.
Sim.
Os pensamentos não davam trela.
Mas e a Coathanger, você gosta?
Coathanger.
A grande ponte da cidade.
A grande ponte de casa:
Um tipo diferente de arco, de metal, que se erguia por cima da estrada.
Eu amo.
Por quê?
Clay semicerrou os olhos e os abriu em seguida.
Penny, pensou.
Penélope.
Porque sim.
Por que ainda precisava de explicação?

***

Lentamente, o Assassino recuou para o resto da casa e disse a ele:
Até logo. — Mas então acrescentou, em um momento de esperança e impulsividade: — Conhece a lenda da Pont du Gard?
Preciso dormir.
Porra, é claro que ele conhecia.

***

Pela manhã, contudo, na casa vazia, ele se deteve no meio da cozinha assim que viu — escrito com carvão grosso.
Abaixou o dedo até tocar o papel:
Pensou em Carey e pensou nos arcos, e mais uma vez foi surpreendido pela própria voz:

Planta final da ponte: Primeiro esboço


Essa ponte vai ser feita de você.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

Saúde para Dar e Vender

Acho que estou me tornando um exemplo para a terceira idade, que, aliás, não sei bem o que é, pois uns me dizem que começa aos 60, outros aos 65. Mas já me chamaram de ancião mais de uma vez e venho me adaptando esplendidamente à situação, depois de alguns percalços normais para um principiante. Claro, não sou perfeito e admito que prossigo adiando para a segunda-feira (não esta que vem aí, que está muito em cima; a outra) minha volta ao calçadão. Receio fazer uma imediata legião de desafetos, mas a verdade é que já tentei, já até fixei um sorriso hipócrita na cara ao chegar ao calçadão, mas abomino andar nele, a dolorosa realidade é esta, não dá mais para esconder. Nunca me senti bem nem antes nem depois, mesmo insistindo durante meses. Devo padecer de endorfinopenia incurável, expressão que acho que acabo de inventar agora, para descrever a conclusão de que as famosas endorfinas não gostam, ou desistiram, de aparecer no meu organismo. Será talvez uma das incontáveis deficiências que a Natureza me dadivou, mas o único efeito que andar no calçadão exerce em mim é encher o saco — sem pretender deslustrar nenhum andador extremado, respeito a opção sexual de todos, sou muito politicamente correto.
No resto, faço-lhes saber que cumpro minha parte, notadamente quanto à luta antitabagista. Vai fazer, se já não fez, um mês e meio que não fumo. Tenho conseguido tourear o hediondo vício e, para castigar a matéria, como se diz na minha terra, tomo café pela manhã e depois do almoço, mas devo admitir que não vem sendo fácil. De vez em quando dou uns ataques e já me flagrei vagueando pelo bairro para me arejar e fazer alguma coisa que me tirasse a lembrança do cigarro. Outro dia, entrei numas quatro papelarias, dois bazares e uma loja de material elétrico e de construção. Comprei um alicate (uma beleza de alicate, amarelão nos cabos, parrudão, maravilha de alicate), um martelo (indispensável para quem usa computador), diversos benjamins ininteligíveis, uma coleção sortida de esferográficas de plástico, um saquinho de parafusos, dois cadernos, um bloco de notas, uma caixinha de etiquetas, uma colher de pedreiro, uma cesta de vime e um saco de húmus para o jardim. Foi uma tarde movimentada e certamente deixei diversos balconistas pouco propensos a vir a encarar textos meus ou mesmo apenas me ver outra vez.
Mas não fumei. Voltei aqui para a frente do teclado e recomecei a escrever. A mão ainda tateia o ar, na busca do maço de cigarros que ficava sempre aqui ao lado esquerdo, vem a sensação canalha de que respirar mesmo seria dar uma boa tragada, mas consigo segurar. Pode ser lugar-comum, mas é verdade, como, aliás, a maior parte dos lugares-comuns: vontade é uma coisa que dá e passa. A qualquer hesitação no texto, qualquer idéia menos clara, vinha um cigarro, a ponto de por vezes haver três ou quatro acesos no cinzeiro. Mas dá e passa, passa cada vez mais. E continuo firme na resolução de não me tornar um cigarrelho, um desses caras que começam a ter uma crise de tosse convulsiva, no momento em que vêem alguém acendendo um cigarro a 20 metros de distância. Ou um nicotinelho, que passa a maior parte do escasso tempo que lhe concedem falando em como o cigarro enfraquece, o cigarro enruga, o cigarro é broxante, o cigarro incendeia colchões, o cigarro só não faz é enfiar-se onde todo mundo que o ouve gostaria que se enfiasse.
Não me envolvo com o cigarro alheio e apenas — coisa estranha, que não aconteceu das outras vezes em que tentei — comecei a achar meio besta o sujeito ficar acendendo um tubinho de papel com palha dentro, chupando, inspirando e soprando fumaça, mas não chego a me incomodar. De resto, devo repelir a falsa modéstia e afirmar que, apesar de me encontrar entre os decanos da minha mesa de boteco (embora seja todo mundo mais ou menos do meu tope, uns dois aninhos a menos aqui e acolá) e considerar qualquer exercício físico uma forma de mortificação execrada pelo Criador como invenção do Inimigo, figuro entre os de melhor forma. Barriga, claro, não vale, e levar em conta pelanca no pescoço é considerado golpe baixo. Estou em primeirão ou entre os primeiros nas melhores posições de colesterol, glicemia, ácido úrico, PSA, transaminase — podem vir de lá, que eu encaro. Outro dia cotejei laudos de exames com Carlinhos Judeu, que se autointitula o pole position, e não teve nem graça, foi um banho. Só ganhou de mim na dedada, porque a deste ano ele tomou antes de mim, foi um descuido de minha parte.
Mas eis que, assim vendendo saúde, sou surpreendido com a notícia de que os americanos descobriram que a taxa de colesterol ruim atualmente definida como aceitável ou desejável é muito alta. Devia ser 70, ou coisa assim. Foi um golpe, como já fora um golpe minha pressão de 12 por 8 ser agora também alta demais. Me consolei um pouco com meu cardiologista, que não parece ter botado muita fé na descoberta. “Deve ser para vender remédio”, disse ele. “Só pode ser, 70 já é sacanagem.” Bem, de qualquer maneira, é chato. Quando a gente pensa que está numa boa, tendo uma grande qualidade de vida, sem fumar, sem beber, sem perder noite, comendo basicamente capim com carnes esdrúxulas e os resultados dos exames representam o prêmio pelo tremendo esforço de reportagem, vêm os caras e estragam tudo. Deprime um pouco. E não que eu vá mudar de ideia quanto ao cigarro, porque continuo apegado à opção de respirar, mas não deixa de me provocar uma atitude, digamos, filosófica pensar no que me disse outro companheiro de boteco, que é até um pouquinho mais velho que eu e continua fumando o tempo todo.
É — disse ele. — Você fez bem. Sua cova vai ser na ala dos não-fumantes do cemitério.

João Ubaldo Ribeiro, in O rei da noite

Capítulo 141 | Os Cães

Mas, enfim, que pretendes fazer agora? perguntou-me o Quincas Borba, indo pôr a xícara vazia no parapeito de uma das janelas.
Não sei; vou meter-me na Tijuca; fugir aos homens.
Estou envergonhado, aborrecido. Tantos sonhos, meu caro Borba, tantos sonhos, e não sou nada.
Nada! interrompeu-me o Quincas Borba com um gesto de indignação.
Para distrair-me, convidou-me a sair; saímos para os lados do Engenho Velho. Íamos a pé, filosofando as coisas.
Nunca me há de esquecer o benefício desse passeio, que me restituiu o sossego e a força. A palavra daquele grande homem era o cordial da sabedoria. Disse-me ele que eu não podia fugir ao combate; se me fechavam a tribuna, cumpria-me abrir um jornal. Chegou a usar uma expressão menos elevada, mostrando assim que a língua filosófica podia, uma ou outra vez, retemperar-se no calão do povo. Funda um jornal, disse-me ele, e “desmancha toda esta igrejinha”.
Magnífica ideia! Vou fundar um jornal, vou escachá-los, vou...
Lutar. Podes escachá-los ou não; o essencial é que lutes. Vida é luta. Vida sem luta é um mar morto no centro do organismo universal.
Daí a pouco demos com uma briga de cães; fato que aos olhos de um homem vulgar não teria valor. Quincas Borba fez-me parar e observar os cães. Eram dois. Notou que ao pé deles estava um osso, motivo da guerra, e não deixou de chamar a minha atenção para a circunstância de que o osso não tinha carne. Um simples osso nu. Os cães mordiam-se, rosnavam, com furor nos olhos... Quincas Borba meteu a bengala debaixo do braço, encostou o queixo no costão e parecia em êxtase.
Que belo que isto é! dizia ele de quando em quando.
Quis arrancar-me dali, mas não pude; ele estava arraigado ao chão, e só continuou a andar, quando a briga cessou inteiramente, e um dos cães, mordido e vencido, foi levar a sua fome a outra parte. Notei que ficara sinceramente alegre, posto contivesse a alegria, segundo convinha a um grande filósofo. Fez-me observar a beleza do espetáculo, relembrou o objeto da luta, concluiu que os cães tinham fome; mas a privação do alimento era nada para os efeitos gerais da filosofia.
Nem deixou de recordar que em algumas partes do globo o espetáculo é mais grandioso; as criaturas humanas é que disputam aos cães os ossos e outros manjares menos apetecíveis; luta que se complica muito, porque entra em ação a inteligência do homem, com todo o acúmulo de sagacidade que lhe deram os séculos, etc.

Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas

a tragédia das folhas

despertei para a aridez e as samambaias estavam mortas,
as plantas nos vasos, amarelas como milho;
minha mulher partira
e as garrafas vazias como cadáveres exangues
cercavam-me com sua inutilidade;
o sol seguia bem, no entanto,
e o bilhete da minha senhoria se quebrava num belo e
resignado tom de amarelo; o que se precisava agora
era de um bom comediante, ao velho estilo, um bobo da corte
com piadas sobre a dor absurda; a dor é absurda
porque ela existe, quando nada mais;
cuidadosamente faço a barba com uma velha navalha
o homem que uma vez tinha sido jovem e
dizia ter gênio; mas
essa é a tragédia das folhas,
as samambaias mortas, as plantas mortas;
e eu caminho por um corredor negro
onde a senhoria se mantém
execrável e decisiva,
mandando-me para o inferno,
balançando seus braços gordos e sudorentos
e gritando
gritando pelo aluguel
porque o mundo falhou conosco
duplamente.

Charles Bukowski, in Queimando na água, afogando-se na chama

Da virtude que apequena

1.

Quando Zaratustra novamente se achou em terra firme, não foi diretamente para sua montanha e sua caverna, e sim percorreu muitos caminhos e fez muitas perguntas e se informou sobre isso e aquilo, de tal modo que disse de si mesmo, gracejando: “Eis um rio que faz numerosas curvas e retorna à fonte!”. Pois ele queria saber o que havia sucedido com o ser humano naquele meio-tempo: se este se tornara maior ou menor. E certa vez enxergou uma fileira de casas novas; admirou-se, e disse:
Que significam essas casas? Em verdade, nenhuma grande alma as pôs ali como símbolos de si própria!
Uma criança idiota as tirou de sua caixa de brinquedos? Então, que outra criança as pusesse de volta na caixa!
E esses aposentos e câmaras: será que homens podem entrar e sair deles? Parecem-me feitos para bonecas de seda; ou para gatos gulosos que também se deixam degustar.

E Zaratustra permaneceu parado e refletiu. Por fim disse, com tristeza: “Tudo ficou menor!
Em toda parte vejo portões mais baixos: quem é de minha espécie ainda passa por eles, mas — tem de se abaixar!
Oh, quando estarei de volta a minha terra, onde não mais terei de me abaixar — de me abaixar diante dos pequenos!” — E Zaratustra suspirou e olhou na distância. —
Nesse mesmo dia, porém, ele proferiu seu discurso sobre a virtude que apequena.

Friedrich Nietzsche, in Assim Falou Zaratustra

A raposa e o avião



Um homem da cidade, perambulando no campo é suspeito. Se levar uma espingarda, explica-se perfeitamente a sua presença. Há sempre compreensão para um argumento belicoso. Troca-se um olhar de cumplicidade e a arma sugere reminiscências de velhas caçadas infrutíferas, que são lembradas como sucessos felizes.
Inútil espingarda! Encosto-a à primeira árvore de sombra e estiro-me na areia fofa e fulva, esperando a intimidade casual dos insetos e das aves. O tufo das manjeriobas bronzeadas esconde-me como um biombo. As formigas negras desfilam em cadência impecável, um a fundo. Duas aranhas tecem armadilhas baixas e sedutoras. Uma cobra verde suja deslizou e desapareceu. Invisível cigarra espalha sua cantilena atritante e teimosa. Vou adormecendo, embriagado de silêncio, quietação, serenidade.
Bruscamente, surgida do capão de pau-de-ferro que os cipós entrelaçam harmoniosamente, sai uma raposa ouro-cinza, viva, inquieta, ágil, farejadora. Num momento se detém perto de mim. O vento sopra-lhe no focinho escuro e fino, ocultando-lhe meu rastro pela inevitável emanação do cheiro de homem, índice de perigo mortal. Posso vê-la em liberdade, senhora de seus movimentos instintivos, na plenitude da força graciosa, da astúcia milenar, da feiticeira desenvoltura juvenil. O pelo igual e liso, acamado sem a ondulação de um arrepio, indica ausência de qualquer suspeita. A cauda na espessura normal roça o solo, sinal de tranquilidade. Camarada raposa não malda a proximidade de um espectador com uma linda carabina de repetição ao alcance do gesto.
Suas orelhas recortam-se, hirtas, sensíveis à captação da mais longínqua denúncia inimiga. Fica imóvel como uma pedra. O focinho desloca-se, vagaroso, num amplo raio verificante, perscrutador, irradiando suspicalidade. As orelhas funcionam como detentores dos ruídos distantes. Ninguém! Se o vento mudar de quadrante serei localizado, pelo meu aroma inconfundível, às suas narinas delicadas. Dará um arranco sacudido, princípio de carreira olímpica, quase sem barulho audível, e desaparecerá como uma sombra, diluída na orla mosqueada da mataria rala. Avança, leve e fácil, fincando as patas na areia tépida, numa indizível elegância vulpina. No céu escampo de nuvens, de incomparável azul, perpassa um surdo, persistente e rouco zumbido que faz vibrar a paisagem silenciosa na tarde lenta de verão. O rítmico ronronar enche de sonoridade estranha o descampado solitário. Durante segundos, a raposa procurou fixar o som nas vizinhanças, virando o focinho para todas as direções, orelhas erguidas e paralelas, a cauda alteada, os olhos faiscantes de curiosidade e medo inicial. Estacou: patas dianteiras retesadas e firmes, vibrantes como alavancas de aceleração, e as traseiras curvas, trêmulas, ansiosas para o salto salvador na solução da escapula.
Na linha do horizonte passava o pássaro de prata, de asas estendidas, haloado pela luz do sol que o incendiava de branco, deixando a trauta inusitada daquele ruído atordoador. Era um avião de carreira, rumando para o aeroporto.
Vejo a raposa imóvel, focinho apontado para cima, olhando o avião sonoro. A bocarra úmida entreabre-se num espanto inconcebível, mandíbula decaída, mostrando a ponta escalarte da língua, a cauda baixa e grossa, os quadris curvados, as orelhas atentas, duras como se armados em latão, seguindo a ave reboante; dois olhos escancarados, luzentes, crescidos de assombro, fitam o mistério presente, ruidoso e alto, acompanhado pelas patrulhas do rumor. Sinto que a curiosidade chumbou-a ao solo quando o corpo palpitante anseia pela libertação veloz. Filha do mato, primitiva, arrebatada, fiel a todos os seus velhos instintos de fome e de sexo, ladra, fugitiva, predadora, covarde, rebelde aos amavios humilhantes da domesticação, incapaz de figurar num circo, aprender um bailado, obedecer a um gesto, livre, faminta e rústica, a raposa olha o avião sereno, semeador de ecos.
Durante dois minutos o animal está estático, inteiramente possuído por aquele centro de interesse de inaudita novidade. A cabeça afunilada acompanha automaticamente a trajetória do avião cintilante. As patas dianteiras mergulham na areia, duras, esticadas como de madeira rija; as traseiras têm um leve e visível frêmito de impaciência e pavor. Como o mirmecólio tinha a frente de leão e o final de formiga, a raposa ostenta a coragem da atenção obstinada por diante e o medo incontido por detrás. Está tremendo mas parada, quieta, subjugada pela visão inesperada da grande ave prateada e canora.
Se a raposa “pensa” por uma sucessão de imagens, não haverá nenhuma anterior para determinar-lhe o processo da comparação assimiladora. É uma imagem nova, virgem e de impossível cotejo no fichário mental das reminiscências raposinas. Qual será a reação íntima e maravilhosa dessa contemplação? Quais as soluções mais ou menos duradouras, subsequentes ao conhecimento visual da aeronave? Com que a raposa comparará o avião atravessando nuvens com seus motores sonorizantes? Tê-lo-á como uma ave gigantesca, jamais anteriormente vista, feita, como todas as aves deste mundo, de carne, penas e sangue, susceptível de mastigação e deglutição saboreadas? O focinho, seguindo obedientemente o voo, não seria uma muda perseguição ideal, prevendo e observando o local do pouso da imensa caça voadora?
Creio que a raposa, a dar-se crédito ao seu “romance” onde é personagem clássica, terá muito pouco de sentimentalismo e de visão abstrata das coisas inidôneas para um bom almoço. Admite-se que o sapo cante às estrelas e o veado duele por amor, valentemente, como um canário, uma lagartixa ou um escorpião. Ninguém, sob a cúpula do céu, evoca uma raposa lírica e sim perpetuamente ligada ao programa rendoso de utilitarismo imediato e prático, cientemente cumprido como num master plan da United States Information Agency.
Águias já têm morrido enfrentando aviões, atraídas pelo seu estridor e, quem sabe, batendo-se pelo monopólio do domínio aéreo. A raposa, a deduzir-se pelo que dela sabemos, lemos e vemos, terá no avião uma possibilidade mental de refeição inacabável e de sabor nunca degustado.
Talvez deduza que o ronco do motores é um resfolegar de agonia, de próximo declínio fatal. E quando o aparelho desapareceu pensaria na felicidade das outras raposas porventura vigilantes nas proximidades do pouso. A imensa presa iria para outras gargantas, outros estômagos mais afortunados.
Aqui onde estou dista dois quilômetros das casas que rodeiam a vila vizinha. A raposa será familiar frequentadora dos galinheiros providos para a festa do Natal. Já viu automóvel, certamente. Ouviu os clamores dos rádios domésticos e deve ter encontrado semelhança entre a sua e a voz de certas glórias cantantes nos microfones submissos.
Está a poucos metros de mim, olhando o avião que se tornou pequenino. O focinho continua no mesmo nível anterior, patas dianteiras firmes, as traseiras trêmulas, recurvadas, os olhos ansiosos, tontos, abismados na sedução irresistível que se desfaz na altura da tarde.
Guardará o segredo deste conhecimento de imagem nova ou comunicá-la-á às companheiras no fortuito convívio dos comandos predatórios da madrugada?
Minha impressão é bem diversa, meus senhores. Parece-me que a raposa hipnotizada está fazendo um esforço milagroso para compreender. Toda ela é tensão, nervos polarizados na direção única de encontrar um processo dedutivo de assimilação, uma assimilação que leve a imagem para o fichário das imagens anteriores, vulpinas e úteis. Que íntimas reações permanecerão na memória deste Canis vulpis depois de haver contemplado a retumbante ave platinada? No meio de toda numerosa fauna, onde conta vítimas e perseguidores implacáveis, como deverá incluir a existência do possante pássaro roncador voando sem bater asas brilhantes?
Agora o avião não é mais avistado. O rumor morreu no ar. A raposa volta à última forma. O focinho vira para o chão, areia, gravetos, rastros de animais, folhas secas, banais. Apruma-se e trota, airosa, para frente, sem mais olhar o céu pálido do entardecer onde passara a grande ave de prata.
Com as pernas formigando de cãibras ergo-me, apanho a espingarda incólume e caminho, trôpego. Na vereda, fundos, estão os quatro orifícios do rastro da raposa, denúncia de sua atenção inquieta, de sua curiosidade sôfrega, de sua expectativa despremiada.
Pode ser que, na meia-noite, ao esgueirar-se para o assalto às galinhas dorminhocas, passe, rápida e sonora, a visão fulgurante daquele pássaro estranho e branco, tão grande, bem maior que dois carros de bois, rugindo dez vezes mais, fazendo-a deter-se e olhar para o alto, para onde raramente as raposas olham.

Luís da Câmara Cascudo, in Canto de Muro

A ágora carioca

Vivemos tempos de uniformização dos costumes, fruto do tal de mundo globalizado. Em cada canto desse mundaréu, ligado por redes transnacionais de telecomunicações, as pessoas assistem aos mesmos filmes, vestem as mesmas roupas, ouvem as mesmas músicas, falam o mesmo idioma, cultuam os mesmos ídolos e se comunicam em, no máximo, cento e quarenta toques virtuais. Nessa espécie de culto profano, em que a vida cotidiana é regida pelos rituais em louvor ao mercado que não é o de Madureira, o bicho pega e as ideias morrem, como outro dia morreu de morte matada o acento em ideia, sem choro nem vela e sem a dignidade de um samba do Noel.
Ao trabalhar com adolescentes e adultos jovens, percebo que as crenças e projeções de futuro da moçada foram substituídas pelo pânico cotidiano – do assalto e das doenças, no âmbito pessoal, às catástrofes ambientais, na esfera coletiva. Cria-se uma lógica perversa: como posso morrer de bala perdida, pegar gripe suína ou sucumbir ao aquecimento global, preciso viver intensamente o dia de hoje.
Ocorre que essa valorização extremada do tempo presente é acompanhada pela morte das utopias coletivas de projeção do futuro. Não há mais futuro a ser planejado. Somos guiados pelos ritos do mercado e abandonamos o mundo do pensamento, onde se projetam perspectivas e são moldadas as diferenças. Restam hoje, nesse desalento, duas tristes utopias individuais, em meio ao fracasso dos sonhos coletivos – a de que seremos capazes de consumir o produto tal, cheio de salamaleques, e a de que poderemos ter o corpo perfeito.
Transformam-se, nesses tempos depressivos, os shoppings e as academias de ginástica nos espaços de exercício dessas utopias tortas, onde podemos comprar produtos e moldar o corpo aos padrões da cultura contemporânea – o corpo-máquina dos atletas ou o corpo esquálido das modelos. É a procura da felicidade que não tem, como na esquecida e sábia canção natalina. E tome caixinhas de Prozac no sapatinho na janela.
É aí que localizo, na minha cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, o espaço de resistência a esses padrões uniformes do mundo global: o botequim. Ele, o velho boteco, o pé sujo, é a ágora carioca. O botequim é o país onde não há grifes, não há o corpo-máquina, o corpo em si mesmo, a vitrine, o mercado pairando como um deus a exigir que se cumpram seus rituais.
O boteco é a casa do mau gosto, do disforme, do arroto, da barriga indecente, da grosseria, do afeto, da gentileza, da proximidade, do debate, da exposição das fraquezas, da dor de corno, da festa do novo amor, da comemoração do gol, do exercício, enfim, de uma forma de cidadania muito peculiar. É a República de fato dos homens comuns.
É nessa perspectiva que vejo a luta pela preservação da cultura do boteco como algo com uma dimensão muito mais ampla que o simples exercício de combate aos bares de grife que, como praga, pululam pela cidade e se espalham como metástase urbana.
A luta pelo boteco é a possibilidade de manter viva a crença na praça popular, espaço de geração de ideias e utopias – fundadas na sabedoria dos que têm pouco e precisam inventar a vida – que possam nos regenerar da falência de uma (des)humanidade que se limita a sonhar com o tênis novo e o corpo moldado, não como conquista da saúde, mas como simples egolatria incrementada com bombas e anabolizantes cavalares. O botequim é, portanto, o anti-shopping center, a recusa mais veemente ao corpo irreal dos atletas olímpicos ou ao corpo pau de virar tripa das anoréxicas, sintomas da doença comum desse mundo desencantado: metáforas da morte.
Ali, no velho boteco, entre garrafas vazias, chinelos de dedo, copos americanos, pratos feitos e petiscos gordurosos, no mar de barrigas indecentes, onde São Jorge é o protetor e mercado é só a feira da esquina, a vida resiste aos desmandos da uniformização e o Homem é restituído ao que há de mais valente e humano na sua trajetória – a capacidade de sonhar seus delírios, festejar e afogar suas dores nas ampolas geladas feito cu de foca. É onde a alma da cidade grita a resistência.
Esse combate, amigos, é muito mais significativo do que imaginam os arautos modernosos e seus programadores visuais. Botequim, afinal de contas, tem alma, é entidade, terreiro carioca, feito os trapiches e sobrados do cais do porto em noite de lua cheia.

Luiz Antonio Simas, in Pedrinhas miudinhas  Ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros

Lucidez do absurdo


Não vou apresentar Millôr Fernandes: quem o conhece sabe que eu teria que escrever várias páginas para apresentar uma figura tão variada em atividades e talentos. Somos amigos de longa data.
Nossa conversa mais recente, já há algum tempo, decorreu fácil, sem incidentes de incompreensão: havia confiança mútua. Foi mais ou menos assim:
Como vai você, Millôr, profundamente falando?
Vou profundamente, como sempre. Não sei viver de outro modo. Pago o preço.
Às vezes o preço é alto demais. Como é que lhe veio a ideia de arquitetar há anos O homem do princípio ao fim, que era um grande e comovente espetáculo? Eu, por exemplo, o veria de novo e certamente com a mesma emoção. Aliás, poderia e deveria ser encenado de novo.
Foi a pedido dessa extraordinária amiga que é Fernanda Montenegro. Fixei-me num ponto de vista humanístico que é a qualidade essencial desse meu trabalho.
Que é que você me diz de sua experiência como ator?
Sensacional e inútil. Sensacional por causa da segurança que se ganha ao perceber uma possibilidade total de comunicação, e isso é emocionante. Inútil porque não tenho nada a fazer com o resultado dessa experiência. A comunicação que busco é toda outra, íntima e definitiva.
Millôr, você já sentiu com toda a humildade a centelha de uma coisa que alguns chamam de graça, mas não é graça, é até bastante comum: é a visão instantânea das coisas do mundo como na realidade são?
Se é assim que alguns chamam, então está pra mim. Só vejo isso. Tenho mesmo a impressão de que nada do que vejo é comum. A mim me faltam todas as noções das coisas do mundo tal como ele é. Mas essa espécie de lucidez de que você fala, a lucidez do absurdo, essa eu tenho mesmo no meio da maior paixão. Creio mesmo que um dia vou estourar de lucidez, isto é, ficar louco.
Como foi sua infância?
Dura! Dura! Linda! Linda! O Méier, naquela época, era praticamente rural. Aprendi a nadar em um pântano cheio de rãs. Aprendi a amar num quintal fazendo bonecos de tabatinga junto com as meninas. Essa infância durou até os dez anos. Aí, um dia, na morte de minha mãe, chorando horas embaixo de uma cama, consegui a paz da descrença. Aos dez anos, pois é.
De que modo lhe vem a inspiração?
Creio que exatamente de todos os modos. Mas não penso que seja precisamente inconsciente. Mesmo quando parece inconsciente acho que o núcleo da inspiração é uma vivência qualquer – imagem, som, dor, angústia – antes arquivada e de repente, por qualquer motivo, também exterior, ressuscitada. Mas meu caso é muito especial: não sou um escritor, sou um profissional de escrever.
Falamos sobre várias personalidades; em seguida perguntei-lhe:
Quem você admira e por quê?
Vou limitar a pergunta, no tempo e no espaço. E prefiro ter a coragem de escolher um homem de meu tempo e de meu espaço. Vinícius de Morais. Pelo muito que somos iguais, pelo imenso que nos separa, eu elejo o poetinha como o dono de uma visão da vida essencial.
De conversa puxa conversa, passamos, não sei como, a falar da morte.
A morte é um problema constante para você?, indaguei.
Acho o problema da morte fascinante – talvez porque eu não a sinta perto de mim. Gostaria mesmo de morrer já para, sem trocadilho, viver essa experiência. Desde que me fosse dado, depois, voltar apenas para contar como foi.
Voltamos a falar da vida e sobre o que mais nos importava.
A relação humana – disse Millôr. – O amor. A paixão, nisso incluída. Também as paixões condenadas, de homem com homem e mulher com mulher. Como sou aquilo que a sociedade chama de saudável e normal, as paixões anormais merecem o meu maior respeito.
Se você não fosse escritor, o que seria?
Um atleta. Sou fundamentalmente um atleta frustrado. Aliás essa é a única frustração que me ficou de uma pré-juventude, de dez a 17 anos, excessivamente dura.
Em matéria de escrever, você sente na sua trajetória um progresso?
Acho que sim. Sobretudo se comparar o início com a fase atual, o que não é vantagem porque comecei a escrever em jornal aos 13 anos de idade. Só um debiloide não teria progredido. Continuo tentando me renovar, num gosto por buscar formas e visões novas, que ainda não perdi.
E em matéria de vida, de maneira de viver, você sente um progresso que vem da experiência?
Acho que sim. Mas será que os outros acham? Nada me surpreende mais, por exemplo, do que ouvir dizer que sou agressivo. Porque eu me sinto a flor da ternura humana. Mas será que sou? De qualquer forma, há dentro de minha mais profunda consciência a certeza de que o gênio do ser humano está na bondade. Isso eu procuro.
Concordei com ele sobre a bondade.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

Descoberta da literatura

No dia a dia do engenho,
toda a semana, durante,
cochichavam-me em segredo:
saiu um novo romance.
E da feira do domingo
me traziam conspirantes
para que o lesse e explicasse
um romance de barbante.
Sentados na roda morta
de um carro de boi, sem jante,
ouviam o folheto guenzo,
a seu leitor semelhante,
com as peripécias de espanto
preditas pelos feirantes.
Embora as coisas contada
se todo o mirabolante
em nada ou pouco variassem
nos crimes, no amor, nos lances,
e soassem como sabidas
de outros folhetos migrantes,
a tensão era tão densa,
subia tão alarmante,
que o leitor que lia aquilo
como puro alto-falante,
e, sem querer, imantara
todos ali, circunstantes,
receava que confundissem
o de perto com o distante,
o ali com o espaço mágico,
seu franzino com o gigante,
e que o acabassem tomando
pelo autor imaginante
ou tivesse que afrontar
as brabezas do brigante.
(E acabariam, não fossem
contar tudo à casa-grande:
na moita morta do engenho,
um filho-engenho, perante
cassacos do eito e de tudo,
se estava dando ao desplante
de ler letra analfabeta
de curumba, no caçanje
próprio dos cegos de feira,
muitas vezes meliantes.)

João Cabral de Melo Neto, in Antologia Poética

Maldade

É ridículo não se livrar da própria maldade, algo praticável, enquanto tenta escapar da maldade alheia, algo impraticável.

Marco Aurélio, in Meditações

O julgamento de Zé Bebelo (excerto)


[...]
Artes o advôgo ― aí é que vi. Alguém quisesse? Duvidei, foi o que foi. Digo ao senhor! estando por ali para mais de uns quinhentos homens, se não minto. Surgiu o silêncio deles todos. Aquele silêncio, que pior que uma alarida. Mas, por que não davam brados, não falavam todos total, de torna vez, para Zé Bebelo ser botado solto?... me enfezei. Sus, pensei, com um empurrão de força em mim. Ali naquelhorinha ― meu senhor ― foi que eu lambi ideia de como às vezes devia de ser bom ter grande poder de mandar em todos, fazer a massa do mundo rodar e cumprir os desejos bons da gente. De sim, sim, pingo. Acho que eu tinha suor nas beiras da testa. Ou então ― eu quis ― ou, então, que se armasse ali mesmo rixa feia: metade do povo para lá, metade para cá, uns punindo pelo bem da justiça, os outros nas voltas da cauda do demo! Mas que faca e fogo houvesse, e braços de homens, até resultar em montes de mortos e pureza de paz... Sal que eu comi, só.
Abre que, ah, outra vez, Joca Ramiro reproduziu a pergunta:
Que se tiver algum... ― e isto e aquilo, tudo o mais.
Me armei dum repente. Me o meu? Eu agora ia falar ― por que era que não falava? Aprumei corpo. Ah, mas não acertei em primeiro: um outro começou. Um Gú, certo papa-abóbora, beiradeiro, tarraco mas da cara comprida; esse discorreu:
Com vossas licenças, chefe, cedo minha rasa opinião. Que é ― se vossas ordens forem de se soltar esse Zé Bebelo, isso produz bem... Oséquio feito, que se faz, vem a servir à gente, mais tarde, em alguma necessidade, que o caso for... Não ajunto por mim, observo é pelos chefes, mesmo, com esta vênia. A gente é braço d armas, para o risco de todo dia, para tudo o miúdo do que vem no ar. Mas, se alguma outra ocasião, depois, que Deus nem consinta, algum chefe nosso cair preso em mão de tenente de meganhas ― então também hão de ser tratados com maior compostura, sem sofrer vergonhas e maldades... A guerra fica sendo de bem-criação, bom estatuto...
Aquilo era razoável. A ver, tinha saído tão fácil, até Joca Ramiro, em passagens, animou o Gú, com acenos. Tomei coragem mais comum. Abri a minha boca. Aí, mas, um outro campou ligeiro, tomou a mão para falar. Era um denominado Dósno, ou Dósmo, groteiro de terras do Cateriangongo ― entre o Ribeirão Formoso e a Serra Escura ― e ele tinha olhos muito incertos e vesgava. Que era que podia guardar para dizer um homem desses, capiau medido por todos os capiaus do meu Norte? Escutei.
Tomém pego licença, sôs chefes. Em que pior não veja, destorcendo meu desatino. E-que, é-que... Que eu acho que seja melhor, em antes de se remitir ou de se cumprir esse homem, pois bem! indagar de fazer ele dizer ond é que estão a fortuna dele, em cobre... A mò que se diz ― que ele possederá o bom dinheiro, em quantia, amoitado por aí... E só, por mim, é só, com vosso perdão... Com vosso perdão...
Riram, uns; por que é que riram? ― rissem. Dei como um passo adiante, levantei mão e estalei dedo, feito menino em escola. Comecei a falar. Diadorim ainda experimentou de me reter, decerto assustado! ― Espera, Riobaldo... ― tive o siso da voz dele no ouvido. Aí eu já tinha principiado. O que eu acho, disse, supri neste mais menos fraseado!
Dê licença, grande chefe nosso, Joca Ramiro, que licença eu peço! O que tenho é uma verdade forte para dizer, que calado não posso ficar...
Digo ao senhor! que eu mesmo notei que estava falando alto demais, mas de me abrandar não tinha prazo nem jeito ― eu já tinha começado. Coração bruto batente, por debaixo de tudo. Senti outro fogo no meu rosto, o salteio de que todos a finque me olhavam. Então, eu não aceitei ninguém, o que eu não queria era ver o Hermógenes. Não pôr as capas dos olhos nem a ideia no Hermógenes ― que Hermógenes nenhum neste mundo não tivesse, nenhum para mim, nenhum de si! Por isso, prendi minhas vistas só num homem, um que foi o qualquer, sem nem escôlha minha, e porque estava bem por minha frente, um pardo. Pobre, esse, notando que recebia tanto olhar, abaixou a cara, amassado de não poder outra coisa. No eu falando!
― … Eu conheço este homem bem, Zé Bebelo. Estive do lado dele, nunca menti que não estive, todos aqui sabem. Saí de lá, meio fugido. Saí, porque quis, e vim guerrear aqui, com as ordens destes famosos chefes, vós... Da banda de cá, foi que briguei, e dei mão leal, com meu cano e meu gatilho... Mas, agora, eu afirmo: Zé Bebelo é homem valente de bem, e inteiro, que honra o raio da palavra que dá! Aí. E é chefe jagunço, de primeira, sem ter ruindades em cabimento, nem matar os inimigos que prende, nem consentir de com eles se judiar... Isto, afirmo! Vi. Testemunhei. Por tanto, que digo, ele merece um absolvido escorreito, mesmo não merece de morrer matado à-tóa... E isto digo, porque de dizer eu tinha, como dever que sei, e cumprindo a licença dada por meu grande chefe nosso, Joca Ramiro, e por meu cabo-chefe Titão Passos!...
Tirei fólego de fólego, latejei. Sei que me desconheci. Suspendi do que estava:
― … A guerra foi grande, durou tempo que durou, encheu este sertão. Nela todo o mundo vai falar, pelo Norte dos Nortes, em Minas e na Bahia toda, constantes anos, até em outras partes... Vão fazer cantigas, relatando as tantas façanhas... Pois então, xente, hão de se dizer que aqui na Sempre-Verde vieram se reunir os chefes todos de bandos, com seu cabras valentes, montoeira completa, e com o sobregoverno de Joca Ramiro ― só para, no fim, fim, se acabar com um homenzinho sozinho ― se condenar de matar Zé Bebelo, o quanto fosse um boi de corte? Um fato assim é honra? Ou é vergonha?...
Para mim, é vergonha... ― o que em brilhos ouvi: e quem falou assim foi Titão Passos.
Vergonha! Raios diabos que vergonha é! Estrumes! A vergonha danada, raios danados que seja!... ― assim; e quem gritou, isto a mais, foi Só Candelário.
Tudo tão aos traques de-repente, não sei, eu nem acabei o relance que me arrepiou minha ideia! que eu tinha feito grande toleima, que decerto ia ser para piorar ― o que foi no eu dizer que Zé Bebelo não matava os presos; porque, se do nosso lado se matava, então não iam gostar de escutar aquilo de mim, que podia parecer forte reprovação. Aos brados bramados de Sô Candelário, temi perder a vez de tudo falar. Aí, nem olhei para Joca Ramiro ― eu achasse, ligeiro demais, que Joca Ramiro não estava aprovando meu saimento. Aí, porque nem não tive tempo ― porque imediato senti que tinha de completar o meu, assim!
― … A ver. Mas, se a gente der condena de absolvido! soltar este homem Zé Bebelo, a mãvazias, punido só pela derrota que levou ― então, eu acho, é fama grande. Fama de glória! que primeiro vencemos, e depois soltamos... ―; em tanto terminei de pensar! que meu receio era tolo! que, jagunço, pelo que é, quase que nunca pensa em reto! eles podiam achar normal que da banda de cá os inimigos presos a gente matasse, mas apreciavam também que Zé Bebelo, como contrário, tivesse deixado em vida os companheiros nossos presos. Gente airada...
― … Seja fama de glória! Só o que sei... Chagas de Cristo!... ― êta Sô Candelário tornou a atalhar. Desadorou-se! Senhor de bofe bruto, sapateou, de arrompe! os de perto se afastando, depressa, por a ele darem espaço. Agora o Hermógenes havia de alguma coisa dizer? O Hermógenes experimentava os dentes nos beiços. Ricardão fazia que cochilava. Sô Candelário era de se temer inteiro.
Somente que, em vez do trestampo, que a gente esperasse, e que ninguém bridava, ele Sô Candelário espiou para cima, às pasmas, consoante sossegado estúrdio recitou, assim em tom ― a bonita voz, de espírito!
― … Seja a fama de glória... Todo o mundo vai falar nisso, por muitos anos, louvando a honra da gente, por muitas partes e lugares. Hão de botar verso em feira, assunto de sair até divulgado em jornal de cidade... ― Ele estava mandarino, mesmo.
Aí eu pensei, eu achei? Não. Eu disse. Disse o verdadeiro, o ligeiro, o de não se esperar para dizer: ― ...E, que perigo que tem? Se ele der a palavra de nunca mais tornar a vir guerrear com a gente, decerto cumpre. Ele mesmo não há de querer tornar a vir. E o justo. Melhor é se ele der a palavra de que vais-s embora do Estado, para bem longe, em desde que não fique em terras daqui nem da Bahia... ― eu disse; disse mansinho mãe, mansice, caminhos de cobra.
Tenho uns parentes meus em Goiás... ― Zé Bebelo falou, avindado de repente. E falou quando não se aguardava, e também assim com tanta vontade de falar, que alguns muito se riram. Eu não ri. Tomei uma respiração, e aí vi que eu tinha terminado. Isto é, que comecei a temer. Num esfrio, num átimo, me vesti de pavor. O que olhei ― Joca Ramiro teria estado a gestos? ― Joca Ramiro fazendo um gesto, então queria que eu calasse absolutamente a boca; eu não possuía vênia para discorrer no que para mim não era de minha alta conta. Eu quis, de repentemente, tornar a ficar nenhum, ninguém, safado humildezinho...
Mas Titão Passos trucou, senhor-moço. Titão Passos levantava a testa. Ele, que no normal falava tão pouco, pudesse dar capacidade de tantas constâncias?
Titão Passos disse: ― … Então, ele indo para bem longe, está punido, desterrado. E o que eu voto por justo. Crime maior ele teve? Pelos companheiros nossos, que morreram ou estão ofendidos passando mal, tenho muito dó...
Sô Candelário disse! ― … Mas morrer em combate é coisa trivial nossa; para que é que a gente é jagunço?! Quem vai em caça, perde o que não acha...
Titão Passos disse! ― … E mortes tantas, isso não é culpa de chefe nenhum. Digo. E mais que esses grandes de nossa amizade! doutor Mirabô de Melo, coronel Caetano, e os outros ― hão de concordar com a resolução que a gente tome, em desde que seja boa e de bom proveito geral. E o que eu acho, Chefe. As ordens... ― Titão Passos terminou.
O silêncio todo era de Joca Ramiro.
Era de Zé Bebelo e de Joca Ramiro.
Ninguém não reparava mais em mim, não apontavam o eu ter falado o forte solene, o terrivelmente; e então, agora, para todos os de lá, eu não existisse mais existido? Só Diadorim, que quase me abraçava! ― Riobaldo, tu disse bem! Tu é homem de todas valentias... Mas, os outros, perto de mim, por que era que não me davam louvor, com as palavras! ― Gostei de ver! Tatarana! Assim é que é assim! ―? Só, que eu tinha pronunciado bem, Diadorim mais me disse! e que tinha sido menos por minhas tantas palavras, do que pelo rompante brabo com que falei, acendido, exportando uma espécie de autoridade que em mim veio. E para Zé Bebelo eu não tinha olhado. Que era que ele de mim devia de estar pensando? E Joca Ramiro? Esses se fronteavam! um ao outro, e o em meio, se mediam.
Rente que nesse resto de tempo decerto cruzaram palavras, que não deram para eu ouvir. Pois porque Zé Bebelo teve ordem de falar, devia de ter tido. A licença. Principiou. Foi discorrendo vagaroso, de entremeado, coisa sem coisa. Vi e vi! ele estava só apalpando o vau. Sujeito finório. Aí o qualquer zunzo que houvesse, ele colhia e entendia no ar ― estava com as orêlhas por isso, aquela cabeça sobrenadando. Já um pouco descabelado. Mas serenou sota, para diante.
― … Altas artes que agradeço, senhor chefe Joca Ramiro, este sincero julgamento, esta bizarria... Agradeço sem tremor de medo nenhum, nem agências de adulação! Eu. José, Zé Bebelo, é meu nome: José Rebêlo Adro Antunes! Tataravó meu Francisco Vizeu Antunes ― foi capitão-de-cavalos... Demarco idade de quarenta-e-um anos, sou filho legitimado de José Ribamar Pachêco Antunes e Maria Deolinda Rebêlo; e nasci na bondosa vila mateira do Carmo da Confusão...
Oragos. Para que a tanta sensaboria toda, essas filosofias? Mas porém ele pronunciava com brio, sem as papeatas de em antes, sem o remonstrar nem os reviretes:
― … Agradeço os que por mim bem falaram e puniram... Vou depor. Vim para o Norte, pois vim, com guerra e gastos, à frente de meus homens, minha guerra... Sou crescido valente, contra homens valentes quis dar o combate. Não está certo? Meu exemplo, em nomes, foram estes: Joca Ramiro, Joãozinho Bem-Bem, Só Candelário!... e tantos outros afamados chefes, uns aqui presentes, outros que não estão... Briguei muito mediano, não obrei injustiça nem ruindades nenhumas; nunca disso me reprovam. Desfaço de covardes e de biltragem! Tenho nada ou pouco com o Governo, não nasci gostando de soldados... Coisa que eu queria era proclamar outro governo, mas com a ajuda, depois, de vós, também. Estou vendo que a gente só brigou por um mal-entendido, maximé. Não obedeço ordens de chefes políticos. Se eu alcançasse, entrava para a política, mas pedia ao grande Joca Ramiro que encaminhasse seus brabos cabras para votarem em mim, para deputado... Ah, este Norte em remanência: progresso forte, fartura para todos, a alegria nacional! Mas, no em mesmo, o afã de política, eu tive e não tenho mais... A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro... Agora perdi. Estou preso. Mudei para adiante! Perdi ― isto é ― por culpa de má-hora de sorte; o que não creio. Altos descuidos alheios... De ter sido guardado prisioneiro vivo, e estar defronte de julgamento, isto é que eu louvo, e que me praz. Prova de que vós nossos jagunços do Norte são civilizados de calibre! que não matam com o distrair de mão um qualquer inimigo pegado. Isto aqui não são essas estrebarias... Estou a cobro de desordens malinas. Estimei. Dou viva Joca Ramiro, seus outros chefes, comandantes de seus terços. E viva sua valente jagunçada! Mas, homem sou. Sou de altas cortesias. Só que medo não tenho; nunca tive, no travável...
Anda que fez um gesto bonito. Assaz, aí, se espiritou. Ao que, de vez, foi grandeúdo!
...Uê, vim guerrear, de peito aberto, com estrondos. Não vim socolor de disfarces, com escondidos e logro. Perdi, por um desguardo. Não por má chefia minha! Não devia de ter querido contra Joca Ramiro dar combate, não devia-de. Não confesso culpa nem retrauta, porque minha regra é! tudo que fiz, valeu por bem feito. E meu consueto. Mas, hoje, sei! não devia-de. Isto é! depende da sentença que vou ter, neste nobre julgamento. Julgamento, digo, que com arma ainda na mão pedi; e que deste grande Joca Ramiro mereci, de sua alta fidalguia... Julgamento ― isto, é o que a gente tem de sempre pedir! Para que? Para não se ter medo! E o que comigo é. Careci deste julgamento, só por verem que não tenho medo... Se a condena for às ásperas, com a minha coragem me amparo. Agora, se eu receber sentença salva, com minha coragem vos agradeço. Perdão, pedir, não peço! que eu acho que quem pede, para escapar com vida, merece é meia-vida e dobro de morte. Mas agradeço, fortemente. Também não posso me oferecer de servir debaixo darmas de Joca Ramiro ― porque tanto era honra, mas não condizia bem. Mas minha palavra dando, minha palavra as mil vezes cumpro! Zé Bebelo nunca roeu nem torceu. E, sem mais por dizer, espero vossa distinta sentença. Chefe. Chefes.
Digo ao senhor, foi um momento movimentado.
Zé Bebelo, acabando nas palavras, ali sentadinho ficou, repequeno, pequenininho, encolhido ao mais. Já um pouco descabelado. Era uma bolinha de gente. Fechou-se um homem. Olhei, olhei. Só a gente mal ouvisse o sussurro de todos lá; que foi bom: conheci que era. ― O sujeito machacá! Assopres! ― Arre, maluco é ― mas frege... Capaz que castra garrote com as unhas dos dedos... Não o que Diadorim não disse ― mas ele estava assim por pálido. Vai, vi os chefes. Eles conversaram um circuitozinho, ligeiro. O Hermógenes e o Ricardão ― e Joca Ramiro para eles sorriu, seus compadres. O Ricardão e o Hermógenes ― eles dois eram chouriço e morcela. Só Candelário ― conforme seus conformes, avançante ― Joca Ramiro sorriu para Só Candelário. O jeito de João Goanhá ― richarte. Só Titão Passos espiava desolhadamente, ele tão aposto homem tão bom, tão sério: com as mãos ajuntadas baixo, em frente da barriga ― só esperava o nada virar coisas. Acontecesse o que. Joca Ramiro ia decidir! Sobre o simples, o Hermógenes ainda ia se debruçar, para um dizer em orêlha. Mas Joca Ramiro encurtou tudo num gesto. Era a hora. O poder dele veio distribuído endireito em Zé Bebelo. O quando falou:
O julgamento é meu, sentença que dou vale em todo este norte. Meu povo me honra. Sou amigo dos meus amigos políticos, mas não sou criado deles, nem cacundeiro. A sentença vale. A decisão. O senhor reconhece?
Reconheço ― Zé Bebelo aprovou, com firmeza de voz, ele já descabelado demais. Se fez que as três vezes, até: ― Reconheço. Reconheço! Reconheço... ― estréques estalos de gatilho e pinguelo ― o que se diz! essas detonações.
Bem. Se eu consentir o senhor ir-se embora para Goiás, o senhor põe a palavra, e vai?
Zé Bebelo demorou resposta. Mas foi só minutozinho. E, pois!
A palavra e vou, Chefe. Só solicito que o senhor determine minha ida em modo correto, como compertence.
A falando?
Que! se ainda tiver homens meus vivos, presos também por aí, que tenham ordem de soltura, ou licença de vir comigo, igualmente...
Ao que Joca Ramiro disse! ― Topo. Topo.
― … E que, tendo nenhum, eu viaje daqui sem vigia nenhuma, nem guarda, mas o senhor me fornecendo animal-de-sela arreado, e as minhas armas, ou boas outras, com alguma munição, mais o de-comer para os três dias, legal...
Ao que aí Joca Ramiro assim três vezes! ― Topo. Topo!
― … Então, honrado vou. Mas, agora, com sua licença, a pergunta faço! pelo quanto tempo eu tenho de estipular, sem voltar neste Estado, nem na Bahia? Por uns dois, três anos?
Até enquanto eu vivo for, ou não der contra-ordem...
Joca Ramiro aí disse, em final. E se levantou, num de repente. Ah, quando ele levantava, puxava as coisas consigo, parecia ― as pessoas, o chão, as árvores desencontradas. E todos também, ao em um tempo ― feito um boi só, ou um gado em círculos, ou um relincho de cavalo. Levantaram campo. Reinou zoeira de alegria! todo o mundo já estava com cansaço de dar julgamento, e se tinha alguma certa fome.
[…]

Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas