O sonhado

Careço de realidade, temo não interessar a ninguém. Sou um farrapo, um dependente, um fantasma. Vivo entre temores e desejos; temores e desejos que me dão vida e que me matam. Já disse que sou um farrapo.
Jazo nas sombras, em grandes e incompreensíveis esquecimentos. De repente me obrigam a sair à luz, uma luz cega que quase me assegura a realidade. Porém logo se ocupam deles mesmos e me esquecem. Novamente perco-me na sombra, gesticulando com ademanes cada vez mais imprecisos, reduzido ao nada, à esterilidade.
A noite é o meu próprio império. Em vão trata de afastar-me o esposo, crucificado em seu pesadelo. As vezes satisfaço vagamente, com agitação e torpeza, o desejo da mulher que se defende sonhando, encolhida, e que finalmente se entrega, grande e macia como um travesseiro.
Vivo uma vida precária, dividida entre estes dois seres que se odeiam e se amam, que me fazem nascer como um filho deformado. Não obstante, sou belo e terrível. Destruo a tranquilidade do casal, ou a inflamo com o mais cálido amor. As vezes me coloco entre os dois, e o abraço íntimo me faz recobrar, maravilhoso. Ele percebe a minha presença e se esforça para aniquilar-me, para tomar o meu lugar. Mas finalmente, derrotado, exausto, vira as costas para a mulher, devorado pelo rancor. Permaneço junto a ela, palpitante, e a cinjo com meus braços ausentes que pouco a pouco se dissolvem no sonho.
Deveria ter começado dizendo que ainda não acabei de nascer, que sou gerado lentamente, com angústia, em um processo longo e submerso. Eles maltratam com seu amor, inconscientes, minha existência de nonato.
Trabalham longamente a minha vida entre seus pensamentos, mãos torpes que se empenham em modelar-me, fazendo-me e desfazendo-me, sempre insatisfeitos.
Porém um dia, quando por acaso derem com minha forma definitiva, escaparei e poderei sonhar-me eu mesmo, vibrante de realidade. Afastar-se-ão eles, um do outro. E eu abandonarei a mulher e perseguirei o homem. E montarei guarda a porta da alcova brandindo uma espada flamejante.

Juan José Arreola, in Confabulário total

Gorjeios

Gorjeio é mais bonito do que canto porque nele se inclui a sedução.
É quando a pássara está enamorada que ela gorjeia.
Ela se enfeita e bota novos meneios na voz.
Seria como perfumar-se a moça para ver o namorado.
É por isso que as árvores ficam loucas se estão gorjeadas.
É por isso que as árvores deliram.
Sob o efeito da sedução da pássara as árvores deliram.
E se orgulham de terem sido escolhidas para o concerto.
As flores dessas árvores depois nascerão mais perfumadas.

Manoel de Barros, in Ensaios fotográficos

Os Nascimentos | 1533 – Cuzco

Entram os conquistadores na cidade sagrada

No radiante meio-dia, através da fumaça abrem caminho os soldados. Um cheiro de couro molhado se levanta e se mistura com o cheiro de coisa queimada, enquanto ressoa um estrépito de cascos de cavalo e rodas de canhões.
Nasce um altar na praça. Os pendões de seda, bordados de águias, escoltam o novo deus, que tem os braços abertos e usa barbas como seus filhos. Não está vendo o deus novo que seus filhos se lançam, machado na mão, sobre o ouro dos templos e das tumbas?
Entre as pedras de Cuzco, enegrecidas pelo incêndio, os velhos e os paralíticos aguardam, mudos, os dias que estão por chegar.

Eduardo Galeano, in Os Nascimentos

Pensamento para o teu aniversário

Nem todos podem estar na flor da idade, é claro! Mas cada um está na flor da sua idade.

Mário Quintana, in Caderno H

Só um tiquinho


Dona Carmen, a senhora faz sopa maggi, a de pacotinho?, perguntou Isora para a velha. Não, minha filha, por quê? Diz a minha avó que a sopa maggi é sopa de putas. Ah, minha filha, sei lá eu. A sopa que faço eu faço com as galinhas que tenho. Dona Carmen estava meio tantã, mas era boa. Quase todo mundo a menosprezava, porque, como dizia a minha avó, ela fazia coisas que eram o fim da picada. Dona Carmen se esquecia de quase tudo, passava longas horas caminhando e repetindo rezas que ninguém conhecia, tinha um cachorro com os dentes de baixo saltados pra fora, saltados pra fora como os de um camelo. Vira-lata, vira-lata, chispa daqui e que o diabo te carregue, ela dizia. Às vezes pousava a mão na cabeça dele com carinho; outras, gritava fora daqui, cachorro, fora daqui, cão dos infernos. Dona Carmen se esquecia de quase tudo, mas era uma mulher generosa. Gostava que Isora a visitasse. Morava pra baixo da igreja, numa casinha de pedras pintadas de branco com a porta pintada de verde e as telhas velhas e cheias de limo e de lagartos e de lona de sapatos trazidos de Caracas, Venezuela, e de verodes grandes como arvorezinhas. Dona Carmen se esquecia de tudo, menos de descascar as batatas, isso sim ela sabia, descascava em círculos, punha as batatas num canto e com uma faca de cabo de madeira tirava a casca delas como se fosse um enorme colar. Dona Carmen fazia batatas fritas com ovos para lanchar. Isora levava as batatas e os ovos da venda da sua avó e dona Carmen guardava um pouquinho pro lanche de Isora e se eu ia junto, ela também me dava. Ela me dava, mas de mim dona Carmen não gostava tanto quanto gostava da Isora, isso eu já sabia. Isora sabia falar com as pessoas velhas. Eu me limitava a ouvir o que diziam. Vocês querem um tiquinho de café, minhas filhas? Não me deixam beber café, respondi. Eu, sim, um tiquinho, disse Isora. Só um tiquinho. Ela, sempre só um tiquinho. Experimentava tudo. Uma vez comeu comida de cachorro da que havia na venda para saber como era. Ela experimentava tudo e depois, se fosse necessário, vomitava. Eu tinha medo de que os meus pais sentissem na minha boca o cheiro de café e me pusessem de castigo, mas Isora nunca tinha medo. Não tinha medo, embora a avó lhe ameaçasse dar uma surra. Ela pensava que a vida era uma só e que era preciso experimentar um tiquinho sempre que tivesse a chance. E um tiquinho de licor de anis, minha filha? Só um tiquinho. Só um tiquinho. Só um tiquinho, dizia.
Isora bebeu a gotinha de café que restava na xícara da qual dona Carmen estava bebendo e, sem rodeios, esticou o braço para pegar o copinho que a velha tinha servido com Anís del Mono. Isora arrotou, arrotou umas cinco vezes seguidas. E depois bocejou. E nesse momento dona Carmen a segurou pelo queixo e olhou nos olhos dela, aqueles olhos verdes feito uvas verdes. Escavava os seus olhos lacrimosos como quem tira água de uma galeria. A velha ficou assustada: minha filha, você sabe se alguém tem inveja de você? Isora permaneceu imóvel. Por quê, dona Carmen? O que aconteceu? Minha filha, você tem mau-olhado. Vá, pelo amor de Deus, à casa da Eufracia, pra ela te benzer. Conte isso pra sua avó, que ela sabe dessas coisas e que ela te leve pra benzer.
Ao sair pela porta, estava passando a novela das cinco. A essa hora do dia, uma camada enorme de nuvens pousava sobre os telhados das casas do bairro. Não exibiam mais Pasión de Gavilanes, agora exibiam La mujer en el espejo. A protagonista era a mesma mulher que fez Gimena na Pasión, mas Isora e eu não gostávamos muito dela. Era junho, no bairro ainda não tinham posto as bandeirinhas coloridas das festas e ainda demoraria muito para que pusessem. Da janela da entradinha de dona Carmen dava pra ver o mar e o céu. O mar e o céu pareciam a mesma coisa, a mesma massa acinzentada e espessa de sempre. Era junho, mas podia ter sido qualquer outro mês do ano, em qualquer outra parte do mundo. Podia ter sido numa cidadezinha montanhosa do Norte da Inglaterra, um lugar em que quase nunca se visse o céu aberto e azul, azul, um lugar em que o sol fosse na verdade uma recordação distante. Era junho e fazia apenas um dia que as aulas tinham terminado, mas eu já estava sentindo essa exaustão imensa, essa tristeza de nuvens baixas sobre a cabeça. Não parecia verão. O meu pai trabalhava na construção e a minha mãe limpando hotéis. Eles trabalhavam no Sul e às vezes a minha mãe também ia limpar as casas de veraneio dos arredores, a minha casa ficava bem pertinho, em El Paso del Burro. Os meus pais saíam cedo pro Sul e voltavam tarde. Isora e eu ficávamos trancadas num conjunto de casas, pinheiros e ruas íngremes no alto do bairro. Era junho e eu estava sentindo tristeza. E agora, agora também medo.
Quando saímos pela porta da dona Carmen, um verme percorreu a minha garganta. Esse verme preto me dizia que eu já tinha, alguma vez, invejado Isora. Eu gostava da cor dos seus cabelos e dos seus braços. Gostava da sua letra. Ela fazia um g com um rabo gigante, que não permitia que se entendesse o que dizia a linha de baixo. Eu gostava dos seus olhos e de muitas outras coisas. Invejava o seu jeito de falar com as pessoas mais velhas. Ela era capaz de interromper as conversas e dizer não, a Moreiva é filha da Gloria, a da esquina, não da outra Gloria. Invejava os seus peitinhos redondos e macios feito uma jujuba com açucarzinho branco, embora ela mesma não gostasse deles. E porque ela tinha ficado mocinha e porque tinha pelos na perereca. Isora tinha bastante pelo preto, duro e pontudo como o gramado falso das casas de veraneio. Eu invejava ela por causa do seu cartucho de jogos para o gameboi, pirateado por um primo seu de segundo grau que mexia com informática e morava em Santa Cruz. Invejava ela porque o cartucho tinha o jogo do Hamtaro e eu adorava o jogo do Hamtaro.
Isora não tinha mãe. Vivia com a sua tia Chuchi e com a sua avó Chela, a dona da venda do bairro. De ela não ter mãe, disso eu não tinha inveja, pra falar a verdade. De ela não ter mãe e de ser cuidada pela tia e pela avó eu não tinha inveja, pra falar a verdade. Do que eu então tinha medo, na verdade, era de que dissessem a ela que eu lhe joguei mau-olhado. Chela, a avó da Isora, era uma mulher que acreditava muito nessas coisas. Se ficasse sabendo que eu tinha feito isso à neta, ia esmagar a minha cabeça. A avó da Isora era uma mulher gorda e bigoduda. Gorda e bigoduda e briguenta. Seu verdadeiro nome era Graciela, mas todo mundo a chamava de Chela, a da venda. Era muito religiosa, mas muito boca suja. E por ser tão religiosa também a chamavam de Chela, a santa. Chela, a santa, porque todo o tempo livre que tinha, que era bem pouco, ela dedicava a rezar e a falar com o padre e a decorar a igreja com orelhas-de-burro e samambaias que ela cortava do lado de fora da casa, além de véu-de-noiva, véu como penugens brancas caindo do céu. Mas, por outro lado, a avó de Isora adorava explicar a todas as meninas coisas sobre gordura. Ou, antes, sobre magreza. Para ficar magra é preciso comer de um prato pequeno, ela dizia, e para ficar magra é preciso comer menos batata frita, e uma batata frita é como comer duas batatas cozidas, e o que essas cretinas têm que fazer é parar de comer tanta guloseima, e o que vou dar a essa menina é uma surra de cinta pra ela deixar de comer merda, e eu mantenho a menina na dieta porque ela já está ficando enorme, e se eu deixar ela vira uma bola, e dá-lhe comer jujubas e engordar feito um animal, e come-come e depois lá vem a caganeira e ela passa três dias no banheiro feito um tabobo, e come-come e depois ouço ela botando pra fora, a safada põe tudo pra fora e com caganeira, e come e caga e põe pra fora e depois se enche de fortasec como se fossem cápsulas de jujubas, e come e caga e caga e caga e põe pra fora que nem um bicho e quando se espreme que parece que não cabe mais nem mais um fiapo pelo cu ela põe os supositórios pra cagar outra vez. E vai me ficar doente e vai me adoecer de tanto comer, essa menina, essa garota dos infernos.
Isora odiava a avó com todas as forças. No colégio uma vez ela aprendeu que bitch significava puta, e desde então sempre que a avó lhe dizia leva pra dona Carmen os ovos e as batatas, é pra cobrar da mulher, traz duas caixas de músculo pra moça aqui, quatro pães, duzentos gramas de queijo amarelo, duzentocinquenta gramas de queijo de cabra, põe um pedaço de goiabada pra moça aqui, um saco de batatas, sobe uns camarões, cobra do estrangeiro, que você sabe falar inglês, eu só sei falar em bom castelhano, Isora respondia certo, bitch, estou indo, bitch, está bem, bitch, o que quiser, bitch, obrigada, bitch, alguma coisinha mais, bitch? E a avó olhava meio desconfiada, mas Isora dizia que bitch significava avó em inglês.
Na venda também trabalhava Chuchi. Chuchi, a tia da Isora, a segunda filha da Chela. Todo mundo chamava Chuchi de Chuchi, mas ninguém sabia qual era o seu nome de verdade. Chuchi tinha os olhos verdes como Isora, mas com manchas como de café derramadas na parte branca. Como manchas de café no fundo da xícara. Chuchi era alta, magra, pernas compridas, chupada, seca. Não se parecia com Isora, a não ser pelos olhos. Nunca ninguém a tinha visto com namorado e ela não tinha filhos. Chuchi também era muito de estar na igreja, mas o seu sonho não era ser santa, como a mãe, e sim vendedora. Durante um tempo ela vendeu maquiagem para a cara e cremes e sabão para o cabelo e sabão para o corpo para as vizinhas do bairro. Andava com sua roupa de secretária, com um bleiser verde, como os seus olhos verdes, e uma saia verde, como os olhos verdes da Isora, e umas botas marrons com salto quadrado e uma pasta com as revistas da Avon nas quais mostrava os produtos, casa por casa. A mãe dizia às pessoas que a filha estava se estragando, pois estava toda oferecida, o dia todo pelas veredas.
Subimos pela rodovia até passar na frente da venda. Isora não parou para falar com a avó. Aonde vocês estão indo? Não conseguem parar em casa?, gritou Chela no balcão cheio de gente. A única coisa que fazem é ficar bisbilhotando poraí? Isora continuou subindo a ladeira como se nada. Eu a segui e olhei para Chela e Chuchi. Chuchi cortava embutidos com a cabeça baixa, escutando as rezas da Chela, como se tivesse um peso pendurado no pescoço, a presença pesada da mãe feito um falcão pousado nos ossos das costas. Vamos pra casa da Eufracia, pra ela me benzer, essa bitch não vai ficar sabendo, me disse Isora. E de novo o verme preto. Eu sabia bem pouco sobre o mau-olhado. Sabia que nos bebês de colo, que são avermelhados e carecas e feios e sem dentes e com a cabeça cheia de crostas, punham um lacinho vermelho no carrinho porque as mães e as avós tinham medos. Medos, dizia vovó, do mau-olhado. Se as gentes olhavam os bebês de colo por muito tempo nos olhos ou lhes diziam muitas coisas bonitas, que bebê tão bonito, deus o guarde, deus o guarde, quanto tempo tem, que bonito, as mães e as avós ficavam mais duras que a perna de um morto. Quando a vovó via um bebê recém-nascido, a primeira coisa que fazia era fazer-lhe o sinal da cruz e repetir Deus o guarde e o abençoe dos pés à barriga. Dos pés à barriga e daí pra cima nada, pensava eu. Por isso eu achava que o mau-olhado era jogado nessa parte do corpo, na região da perereca e da bunda e dos pelos das pernas, eu queria que a minha mãe me depilasse e ela não me depilava. Isora e eu fazíamos muitas coisas nessa região do corpo, dos pés até a barriga. Sobretudo na região da perereca. Então talvez o mau-olhado tivesse a ver com isso. Mas fiquei quieta e não disse nada, fiquei quieta e continuamos a andar.

Andrea Abreu, in Pança de burro

Curso superior


O meu medo é entrar na faculdade e tirar zero eu que nunca fui bom de matemática fraco no inglês eu que nunca gostei de química geografia e português o que é que eu faço agora hein mãe não sei.
O meu medo é o preconceito e o professor ficar me perguntando o tempo inteiro por que eu não passei por que eu não passei por que eu não passei por que fiquei olhando aquela loira gostosa o que é que eu faço se ela me der bola hein mãe não sei.
O meu medo é a loira gostosa ficar grávida e eu não sei como a senhora vai receber a loira gostosa lá em casa se a senhora disse um dia que eu devia olhar bem para a minha cara antes de chegar aqui com uma namorada hein mãe não sei.
O meu medo também é do pai da loira gostosa e do irmão da loira gostosa e do irmão da loira gostosa no dia em que a Loira gostosa me apresentar para a família como o homem da sua vida será que é verdade será que isso é felicidade hein mãe não sei.
O meu medo é a situação piorar e eu não conseguir arranjar emprego nem de faxineiro nem de porteiro nem de ajudante de pedreiro e o pessoal dizer que o governo já fez o que pôde já pôde o que fez já deu a sua cota de participação hein mãe não sei.
O meu medo é que mesmo com diploma debaixo do braço andando por aí desiludido e desempregado o policial me olhe de cara feia e eu acabe fazendo uma burrice sei lá uma besteira será que vou ter direito a uma cela especial hein mãe não sei.

Marcelino Freire, in Contos Negreiros

A bailarina

A bailarina feita
de borracha e pássaro
dança no pavimento
anterior do sonho.

A três horas de sono,
mais além dos sonhos,
nas secretas câmaras
que a morte revela.

Entre monstros feitos
a tinta de escrever,
a bailarina feita
de borracha e pássaro.

Da diária e lenta
borracha que mastigo.
Do inseto ou pássaro
que não sei caçar.

João Cabral de Melo Neto, in Antologia Poética

As Olimpíadas

... são um evento assombroso. Começa com aquela festa linda, comovente, festa de fraternidade e paz. Norte-americanos e iraquianos desfilaram no mesmo desfile sem que o Bush tentasse matar os atletas do Iraque como terroristas disfarçados. Ele estava jogando golfe. O grande símbolo: uma oliveira cheia de folhas! Dizem os poemas sagrados que a pomba que Noé soltou ao final do dilúvio voltou com um ramo de oliveira no bico. Que bom seria se aquela oliveira anunciasse o fim do dilúvio de loucuras bélicas que está destruindo o mundo! Algumas dessas festas ficam inesquecíveis. Lembro-me do ursinho que marcou as Olimpíadas de Moscou. No encerramento, o ursinho chorou: lágrimas escorriam pelo seu rosto. Sei muito bem que urso não tem rosto, urso tem é focinho, mas seria feio dizer “lágrimas escorriam pelo seu focinho”. Do jeito como as coisas vão, em breve se dirá que os bichos têm rosto e os homens têm focinho. Aí chega o primeiro dia. Vai-se a fraternidade. Agora é briga. Briga pelo pódio. O pódio é motivo de briga. Todo pódio é motivo de briga. Nas Olimpíadas não há lugar para fraternidade porque fraternidade significa todo mundo junto brincando de roda e nas Olimpíadas não há cantigas de roda. No pódio só cabem três. Cada atleta quer mesmo é que o outro se dane. Ah! A suprema felicidade do velocista dos 100 metros quando sabe que o recordista baixou no hospital acometido de uma súbita cólica renal, na véspera das finais. E as ginastas rezam, enquanto as adversárias executam os seus números: “Tomara que ela escorregue...”.

Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola

Capítulo 134 | Cinquenta anos

Não lhes disse ainda, – mas digo-o agora, – que quando Virgília descia a escada, e o oficial de marinha me tocava no ombro, tinha eu cinquenta anos. Era portanto a minha vida que descia pela escada abaixo, – ou a melhor parte, ao menos, uma parte cheia de prazeres, de agitações, de sustos, – capeada de dissimulação e duplicidade, – mas enfim a melhor, se devemos falar a linguagem usual. Se, porém, empregamos outra sublime, a melhor parte foi a restante, como eu terei honra de lhes dizer nas poucas páginas deste livro.
Cinquenta anos! Não era preciso confessá-lo. já se vai sentindo que o meu estilo não é tão lesto como os primeiros dias. Naquela ocasião, cessado o diálogo com o oficial de marinha, que enfiou a capa e saiu, confesso que fiquei um pouco triste. Voltei à sala, lembrou-me dançar uma polca, embriagar-me das luzes, das flores, dos cristais, dos olhos bonitos, e do burburinho surdo e ligeiro das conversas particulares. E não me arrependo; remocei. Mas, meia hora depois, quando me retirei do baile, às quatro da manhã, o que é que fui achar no fundo do carro? Os meus cinquenta anos. Lá estavam eles os teimosos, não tolhidos de frio, nem reumáticos, – mas cochilando a sua fadiga, um pouco cobiçosos de cama e de repouso. Então,  e vejam até que ponto pode ir a imaginação de um homem, com sono, – então pareceu-me ouvir de um morcego encarapitado no tejadilho: Senhor Brás Cubas, a rejuvenescência estava na sala, nos cristais, nas luzes, nas sedas, – enfim, nos outros.

Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas

Os sonhos de Astiages

Após quarenta anos de reinado, morreu o rei medo Ciaxares, e sucedeu-o no trono seu filho Astiages. Tinha Astiages uma filha chamada Mandane; sonhou que ela vertia tanta urina que esta cobria toda a Ecbátana e toda a Ásia. Tratou de não deixá-la casar-se com nenhum medo, e deu-a em matrimônio ao persa Cambises, homem de boa família, caráter pacífico e condições medianas. Voltou Astiages a sonhar, e viu que do centro do corpo de sua filha saía uma parreira que cobria toda a Ásia com sua sombra. O significado era claro: o filho dela o substituiria. Mandou sua filha retornar, e quando esta deu a luz, entregou a criança ao seu parente Hárpago para que ele o matasse.
Hárpago sentiu medo e piedade, e entregou o menino ao vaqueiro Mitradates, ordenando-lhe que o matasse. Mitradates tinha Perra por esposa e esta acabara de parir um filho morto. O menino que lhe haviam entregado estava luxuosamente vestido; decidiram fazer a troca, pois também sabiam que era filho de Mandane e assim preservavam seu futuro. O menino cresceu e seus companheiros pastores proclamaram-no rei de seus jogos, e o menino rei se revelou inflexível.
Astiages inteirou-se e obrigou a Mitradates confessar sua origem. Soube da desobediência de Hárpago, mas fingiu perdoá-lo e convidou-o a um banquete, e pediu que lhe entregasse o filho para ser companheiro de seu neto. Durante o banquete fez servir a Hárpago, assados, pedaços de seu filho. Quando soube disso, Hárpago dominou-se. Astiages consultou novamente seus adivinhos, e eles responderam: Se vive, há de reinar; porém como já reinou entre os pastores, não há perigo de que alcance uma nova coroa. Satisfeito, Astiages enviou-o suposto filho de Mitradates aos seus verdadeiros pais, que ficaram felizes em vê-lo com vida. O menino cresceu, fez-se rapaz e jovem guerreiro, e, com a ajuda de Hárpago, destronou Astiages, tratando-o com benevolência. Assim fundou Ciro, o antigo pastor, o império persa, e assim o conta Heródoto no quinto dos Nove Livros da História.

Jorge Luis Borges, in Livro de Sonhos

Exame

Como sabemos se Telauge tinha ou não um caráter superior ao de Sócrates?
Não basta considerar que Sócrates teve uma morte mais ilustre; que disputou mais habilmente com os sofistas; que resistiu mais ao frio durante as noites; que considerou mais nobre recusar quando foi convocado para prender o homem de Salamina; que andava de maneira arrogante pelas ruas — embora isso seja duvidável.
Devemos examinar qual alma Sócrates possuía; se conseguia se satisfazer apenas sendo justo com os homens e piedoso no tocante aos deuses; se não se aborrecia futilmente com a vilania dos demais; se não se tornava escravo da ignorância alheia; se não considerava sua porção universal estranha ou insuportável; se impedia sua inteligência de simpatizar com os sentimentos da miserável carne.

Marco Aurélio, in Meditações

O alistamento

Os passos estão se tornando mais nítidos. Um pouco mais próximos. Agora soam quase perto. Ainda mais. Agora mais perto do que poderiam estar de mim. No entanto continuam a se aproximar. Agora não estão mais perto, estão em mim. Vão me ultrapassar e prosseguir? Seria a minha esperança, a minha salvação. Não sei mais com que sentido percebo distância. É que os passos não estão próximos e pesados, já não estão apenas em mim: eu marcho com eles, eu me engajei.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

Verdades e mentiras do "Tango de Nancy"


Tango de Nancy
(Chico Buarque e Edu Lobo – 1985)

Quem sou eu para falar de amor
Se o amor me consumiu até a espinha
[...]

Quem sou eu para falar de amor
Se de tanto me entregar nunca fui minha
O amor jamais foi meu
O amor me conheceu
Se esfregou na minha vida
E me deixou assim

Homens, eu nem fiz a soma
De quantos rolaram no meu camarim
Bocas chegavam a Roma passando por mim
Ela de braços abertos
Fazendo promessas
Meus deuses, enfim!
Eles gozando depressa
[...]
Eles querendo na hora
Por dentro, por fora
Por cima e por trás
Juro por Deus, de pés juntos
Que nunca mais

Analisaremos aqui o “Tango de Nancy” à luz do contexto dramático-musical para o qual ele foi concebido. Julgamos essa perspectiva interessante não por estarmos à procura de um sentido original da canção, mas porque analisá-la na peça teatral nos proporciona descobrir diferentes efeitos de sentido que não aparecem na canção veiculada em seus meios convencionais de circulação (rádio, internet, MP3, CD etc.). Submeteremos a análise desses efeitos a um foco que será nosso principal recorte metodológico aqui: centraremos o exame na figura do enunciador feminino (quem fala na canção). De antemão, advertimos que esse eu, que em literatura tem sido chamado, a nosso ver inapropriadamente, de eu lírico, não será pensado como um núcleo fechado e concentrado, exibindo, por meio da canção, seu “ponto de vista feminino” ou a voz de alguém representante de uma categoria genérica (mulher) ou profissional (prostituta). Ao contrário, esse eu será pensado como manifestação material de uma dispersão subjetiva complexa. Dispersão que se dá em função mesma dessa materialização (na canção e no texto da peça(1)). Acreditamos que uma análise do “Tango de Nancy” a partir de seu contexto dramático-musical nos possibilita entender alguns aspectos dessa dispersão. O instrumental teórico da Análise do Discurso (Maingueneau(2), Foucault(3), Bakhtin(4), embora não explicitado, foi utilizado na análise que aqui apresentamos.
O “Tango de Nancy” foi composto por Chico Buarque e Edu Lobo para a peça dramático-musical O corsário do rei, de autoria de Augusto Boal(5). A peça foi encenada pela primeira vez em 18 de setembro de 1985, no Teatro João Caetano (Rio de Janeiro), com Marco Nanini, Lucinha Lins, Nelson Xavier, dentre outros, e sob direção do autor. O próprio Edu Lobo foi responsável pela direção musical da peça, que teve a orquestração de Eduardo Souto Neto e a regência de Maurício Maestro. No mesmo ano, a canção é lançada no LP homônimo da peça, de Chico Buarque e Edu Lobo, na voz de Lucinha Lins, ela que interpretou, na montagem de 1985, o papel de Nancy, personagem que canta o tango.
Um ligeiro resumo da peça faz-se necessário aqui. O corsário do rei é uma obra metadiscursiva, isto é, que remete ao seu próprio campo discursivo a cena dramatúrgica. A cenografia principal é a de um bar portuário no Rio de Janeiro do começo do século XIX. O bar, em situação de insolvência financeira, é posto à venda pela proprietária e esta tenta convencer um negociante a comprá-lo. A transação é presenciada por prostitutas e um professor de História que frequentam o estabelecimento e, por vezes, interferem na conversa. De repente, revela-se que a clientela de bêbados está revoltada com a suspensão do crédito da cachaça e ameaça invadir para roubar a bebida. Um grupo de bêbados de fato invade o bar, armados de paus e pedras. A polícia é chamada. Porém o policial que chega alerta, morrendo de medo, sobre a chegada de uma frota de navios com comerciantes estrangeiros. Nesse ínterim, os bêbados desistem do assalto ao bar e decidem unir-se à patroa e ao negociante para reagir contra a invasão. Os “invasores”, porém, estão em missão de paz e propõem uma festa na sua chegada. É a propósito dessa festa que o professor sugere aos presentes naquele momento no bar a encenação de uma peça de teatro sobre outra invasão ocorrida um século antes. Essa cenografia, que a partir de então vai se desenrolar, a que chamamos secundária, na verdade vai ser frequentemente entrecortada pela cenografia principal, de modo que os personagens desta não apenas atuam como personagens daquela, mas também dialogam e tentam interferir nela, mediados pelo professor. É apenas por ela ser derivada da primeira que chamamos secundária, porque, de fato, é ela que prevalece e inclusive dá nome à peça.
Nessa cenografia superposta, os personagens representam, começando pela morte, vários momentos da vida de René Duguay-Trouin, corsário francês que viveu entre os anos l673 e 1736:
No leito de morte (III)
A infância (IV)
Primeiro encontro com o Rei Luís XIV (V)
As primeiras aventuras no mar (VI)
A prisão em Plymouth (Inglaterra) (VII)
A morte de Étienne, seu irmão (VIII)
As guerras no mar (IX)
A conquista do apoio do Rei para a invasão do Brasil (X)
A invasão do Rio de Janeiro (XIII)

Um dado histórico aqui é importante para melhor compreender-se a história encenada: os corsários eram navegadores armados que, entre os séculos XVI e XIX, vendiam seus serviços de pilhagem e combate navais às diversas nações da época. Diferentemente dos piratas, que agiam por conta própria, os corsários portavam uma carta fornecida pelo rei e, por meio desse documento (frequentemente falsificado), eles eram reconhecidos como força militar auxiliar do país. Desse modo, se fossem capturados, exibiam sua carta real e eram considerados prisioneiros de guerra, recebendo tratamento diferenciado e, muitas vezes, escapando da condenação à morte reservada aos piratas. Um desses corsários, René Duguay-Trouin, conseguiu, em 1711, invadir a cidade do Rio de Janeiro, sendo dessa invasão que trata a encenação encaixada na peça O corsário do rei.
Voltando a esta última, à peça principal, é importante notar que Nancy não é diretamente sua personagem, e sim da peça encaixada, que é, a um só tempo, concebida e encenada pelos personagens da peça-mãe. Ela aparece unicamente na cena VII (“A prisão em Plymouth”), considerando a divisão cênica da peça maior, e na quinta cena da representação secundária. Nesta, conta-se que, tendo se tornado corsário muito jovem, Duguay-Trouin é derrotado pelos ingleses logo na primeira batalha naval. Preso, ele é enviado para Plymouth, cidade inglesa onde vive e trabalha Nancy. Aí ela é criada de um hotel utilizado como prisão, para onde eram enviados prisioneiros de guerra antes de serem conduzidos ao tribunal. Sua missão: cuidar dos prisioneiros “fazendo comida, lavando prato, fazendo cama, cuidando ferida...(6)”.
A protagonista da canção da peça, portanto, é inglesa, e não francesa, como poderíamos julgar à primeira vista, levados pelas várias referências feitas ao universo francês pela peça e pelo próprio gênero da canção (marcado em seu título), julgamento reforçado pela relativa reputação da cidade francesa de Nancy e pelo título do famoso longa-metragem “O último tango em Paris”. Assim, o que está em análise neste momento é o “Tango de Nancy” ([‘nænsi] ou, aportuguesadamente, “nénci”) e não o “Tango de Nancy” ([nã’si] ou “nansí”). Eis o primeiro elemento dessa identidade subjetiva que estamos aqui investigando. Elemento a não se desprezar, pois, no decorrer da cena VIII, sua aparição, seguida pela execução do tango e por seu diálogo com o “público” (personagens da cena principal), marca um deslocamento da cenografia da França para a Inglaterra e consequentemente a apresentação de um segundo ponto de vista sobre os acontecimentos relatados. Tendo sido apresentada nas cenas anteriores a guerra da França contra a Inglaterra do ponto de vista dos representantes das classes dominantes francesas (a nobreza, o clero, a burocracia), que, diante da iminência da derrota, decidem “privatizar a guerra”, Nancy apresenta, nessa cena, não o ponto de vista das classes dominantes inglesas, mas o seu ponto de vista enquanto vítima indireta dessa privatização. É uma mudança de cenografia, mas é também uma mudança de foco, que sai do macro para o micropolítico. Com efeito, a primeira fala de Nancy é o tango, que representa ele mesmo mais duas cenas: uma cena definida pelo gênero musical (cena genérica), em que Nancy aparece como cantora de tango, e uma cenografia que pode ser classificada como um “desabafo” de uma mulher que se sente sufocada pelo excesso. A primeira marca uma identidade fugaz (que dura os poucos minutos de execução do tango), mas que, de certa maneira, informa sobre o estado emocional e a condição social de Nancy. Dado que o tango enquanto gênero musical surgiu no final do século XIX e não existia portanto nem no período da cenografia da peça-mãe (início do século XIX) nem muito menos no período da cenografia da peça encaixada (início do século XIII), a escolha de tal gênero musical representa uma licença artística que certamente tem o propósito de captar o etos de gravidade, exasperação e dramaticidade que o tem caracterizado. De fato, a fala da personagem mantém esse etos nos momentos que sucedem a execução do tango, já que ela, dirigindo-se aos expectadores (personagens da cena primária), explica didaticamente, também como um desabafo, o motivo “macropolítico” do seu infortúnio. Por outro lado, também a cena genérica contribui para o clima de excitação masculina (e também feminina) com a presença da mulher e para a sua entrada “em grande estilo” na peça. Enfatizamos a palavra “presença” porque, embora haja personagens mulheres na peça principal, elas são mulheres sem presença, tanto que não têm nome, sendo identificadas no texto dramático por epítetos (“Patroa”, “Tísica”, “Gorda”, “Cabisbaixa”). Assim, um pouco antes da entrada de Nancy cantando o tango, os personagens-espectadores reclamam do personagem-dramaturgo justamente a presença de uma mulher:

BÊBADO VALENTÃO
É muito moralista essa peça, o senhor não acha?

BÊBADO MIÚDO
Tem gosto pra tudo...

TÍSICA
Não tinha mulher nesse barco?

CABISBAIXA
Umas profissionais... Podiam ter serventia…

GORDA
Com tantos homens tanto tempo em tanto mar... tão sozinhos...(7)

A outra cena evocada pelo tango funciona como uma pergunta retórica que sintetiza a história micropolítica de Nancy. Trata-se de uma cenografia que simula uma réplica conversacional (resposta a alguém que supostamente teria solicitado ao enunciador “falar de amor”) e que se constitui estruturalmente de duas cenas encaixadas: uma se põe no presente da enunciação e a outra se põe no pretérito, seja perfeito, seja imperfeito, funcionando como pano de fundo “argumentativo”, isto é, que justifica, explica ou contextualiza a cena do presente.
Assim, a canção se inicia a partir de uma frase no presente (“Quem sou eu para falar de amor”) que é articulada por meio da partícula argumentativa “se” à seguinte, que se situa em tempo anterior à enunciação (“Se o amor me consumiu até a espinha”), produzindo um esquema, recorrente em toda a canção, que poderíamos exprimir como: “como X (presente), se Y (passado)?”. De fato, se observamos as frases seguintes da primeira estrofe, vemos que mais uma vez o esquema prossegue, porém articulado de modo gramaticalmente diferente (articulação gramatical provavelmente exigida pela melodia):

Dos meus beijos que falar
Dos desejos de queimar
E dos beijos que apagaram os desejos que eu tinha

Ou seja, como falar em beijos e desejos (X) no presente, se, no passado, os beijos recebidos apagaram os desejos (Y)?
A segunda estrofe repete o esquema, ficando mais claro o processo simultâneo de metonimização e personificação do conteúdo “amor”, objeto polêmico da enunciação (“falar de amor”), como estratégia para dotar de força dramática o argumento Y. O amor, na verdade síntese das frustradas relações amorosas de Nancy (“O amor jamais foi meu”), é então relatado como tendo tido um poder anímico e destrutivo sobre ela (“me conheceu / Se esfregou na minha vida / E me deixou assim”), relato já iniciado na primeira estrofe (“Se o amor me consumiu até a espinha”).
Podemos dizer que esse esquema reproduz um discurso amoroso que apresenta o amor feminino como uma entidade que integraria sentimento (imaterial) e desejo sexual (material). Essa entidade harmônica, sintética, fonte de poder da mulher sobre o homem, mas que sobre a qual ela não tem absoluto controle, capta na língua uma forte legitimação (pois a palavra “amor” pode designar sexo e sentimento). No entanto, nesse discurso, o amor encontraria na “vida real” sua degradação, a destruição de sua inteireza, no que resultaria na dominação e desgaste da amante pelo aspecto material do amor. Podemos encontrar esse discurso em outras canções de Chico Buarque, como “Viver do amor” e “Ana de Amsterdam”, e, de uma forma ligeiramente diferente, em “Maria Rosa”, de Lupicínio Rodrigues.
A narrativa argumentativa prossegue na terceira estrofe, tomando contornos ainda mais fortes. Intensificadores jogam aí um papel fundamental: “Homens, eu nem fiz a soma...”, “Bocas chegavam a Roma passando por mim”. Essa intensificação culmina com uma “tomada cinematográfica” que se estende quase até o fim da canção. Tratando-se a si mesma como terceira pessoa (“ela”), Nancy exibe subitamente, na entonação nervosa da melodia, a dramática cena-síntese da imolação de sua sexualidade: “Ela de braços abertos / Fazendo promessas / Meus deuses, enfim!”. Em mais essa cenografia encaixada, Nancy se mostra e se vê como personagem que investe na dimensão imaterial do amor. A mulher oferece aos homens, em busca do amor integral (“Na esperança de casar / [...] outro mar”, como diria Ana de Amsterdam, sua colega de infortúnio), seu “alto-corporal” na relação amorosa: os braços, a boca (das promessas), a mente (dos deuses), enfim, o que o discurso amoroso alegoriza como o “coração”. Por sua vez, o outro, o homem (“eles”) é visto e apresentado como aquele que, ao contrário, ignora a sacralização do amor proposta por Nancy e investe exclusivamente no baixo-corporal – o ato carnal puro, imediato e intenso (em oposição ao extenso, que certamente ela preferiria): “gozando depressa”, “querendo na hora / Por dentro, por fora / Por cima e por trás”. Em suma, a tragédia de Nancy foi ter apostado que, oferecendo seu corpo e sua alma a tantos homens, algum realizaria seu sonho do amor integral. Aposta malograda, pois nenhum deles aceitou os dois, preenchendo o espaço amoroso que ela reservara ao “coração” com mais e mais sexo.
No final, na última frase da canção, e também súbita e energicamente, a reação: “Juro por Deus, de pés juntos / Que nunca mais”. Fecha-se a cortina da cenografia criada pela Nancy personagem da canção, fecha-se a cortina da cena genérica criada pela Nancy personagem da peça. Fecha-se o coração de Nancy para tentativas futuras. Nancy nega seu tango. Porque se o gênero tango nos fala geralmente do amor trágico, esse é o último tango de Nancy (“nunca mais”).

Depois de cantar, ela confirma e assume seu etos de mulher de presença. Presente integralmente no amor integral que oferece aos homens; presente na reação e indignação diante desses homens que não o aceitam. E agora ela está presente na peça criada pelo professor-personagem, dialogando com os espectadores-personagens que lhe admiram a presença, eles tão sem presença, tanto os homens quanto as mulheres, referidos por suas qualidades tão pouco dignas (“Bêbado Valentão”, “Bêbado Miúdo”, “Cabisbaixa” etc.).
Como dissemos, a personagem dá continuidade ao etos de “mulher de fibra”, indignada e decidida que seu tango tão bem manifesta. Suas palavras, que se seguem à interpretação da canção na peça, são, como também já dissemos, uma explicação dos motivos de sua angústia. Esses esclarecimentos, lidos à luz da letra da canção, acabam, no entanto, por revelar que Nancy, mais do que fazer comida, lavar prato, fazer cama e cuidar das feridas dos prisioneiros, oferecia-se sexualmente aos mesmos em busca, como vimos, do amor integral. É o seu erro trágico, mas é também sua paixão, pela qual será capaz de trair sua nação. Nesse momento, portanto, Nancy revela-se transgressora da ordem, pois, sendo ex-mulher de um capitão ainda apaixonado e administrador do hotel-cárcere onde trabalha, ela transa com piratas, corsários e marinheiros estrangeiros e, provavelmente, o homem condenado à morte que aceitasse seu amor ganharia em troca a vida e a liberdade. Nancy é, assim, uma mulher que, em nome do seu amor, “trai” sua pátria. Nesse sentido, ela se irmana a outra personagem dramático-musical de Chico Buarque: Bárbara, da peça também histórica Calabar: o elogio da traição, criada em parceria com Ruy Guerra(8).

Na sequência da peça, eis que chega ao hotel-cárcere de Plymouth para ser julgado o jovem Duguay-Trouin. Posto aos cuidados de Nancy, ela é seduzida e renega a jura feita no final do tango. Após cantar o “Chorinho da abordagem”(9) e travar um diálogo carnavalesco, em que as atrocidades (mentirosas) cometidas pelo corsário, descritas com riqueza de detalhes e orgulho, em vez de chocarem Nancy, deixam-na ainda mais fascinada por ele, o casal se entrega a intensas jornadas de amor carnal, exatamente aquilo de que ela se queixava no tango.
No final da cena, Duguay-Trouin trai Nancy. Ele arma um plano de fuga que envolve sua libertação simultânea do cárcere do Capitão e do amor de Nancy:

DUGUAY-TROUIN
É preciso que ela sinta o seu amor traído. Paixão sem recompensa. Vamos fazer assim, Capitão: essa moça pensa que esta noite eu vou fugir com ela. Lá embaixo no porto tem um navio sueco, “Estrela da Noite”. Eu disse que ia comprar esse navio pra ela, mas estou sem dinheiro.(10)

Numa nova cenografia, dessa vez criada pela fala do corsário (o que dá à peça contornos vertiginosos, dado o encaixamento sucessivo e vertical de cenografias), os dois imaginam o momento do encontro entre Duguay-Trouin e Nancy:

DUGUAY-TROUIN
(Os atores trocam o cenário do teatrinho: o porto) Nancy vai entrar por aquela porta, vestida com seu vestido mais rendado, pérolas, brilhantes, anéis e braceletes (entra Nancy como ele diz)... apaixonada…

[...]

CAPITÃO
E eu? O que é que eu faço?

DUGUAY-TROUIN
Espera atrás do muro, porque depois que eu for embora, ela fica sozinha, infeliz, triste e desolada, lágrima nos olhos e aí o senhor sai de trás do muro e ela cairá nos seus braços! Elementar, meu caro Capitão…

CAPITÃO
E você?

DUGUAY-TROUIN
Eu tomo o navio!

CAPITÃO
E vai fugir???!!!

DUGUAY-TROUIN
Pelas barbas do profeta, não! Claro que não. Só o tempo de fazer de conta. Dou uma voltinha no “Estrela da Noite” e vou me depositar na prisão que o senhor indicar...(11)

Essa cenografia imaginada se transforma em cenografia “real”, ou seja, passa para o mesmo plano daquela que a engendrou. O encontro, portanto, se dá “de fato”, tudo acontece como Duguay-Trouin previu, salvo a reação de Nancy, que, mais uma vez, desmente o seu tango com outra canção, “Marinheiros de muitos portos”:(12)

Quem me dera ficar, meu amor, de uma vez
Mas escuta o que dizem as ondas do mar
[...]
Minha vida, querida, não é nenhum mar de rosas
[…]

Quem me dera amarrar meu amor quase um mês
Mas escuta o que dizem as pedras do cais
[...]
Minha vida, querido, não é nenhum mar de rosas
[...]

Essa canção, cantada em dueto por Duguay-Trouin e Nancy, mostra então que o que esta última diz em seu tango, se não era uma mentira, não era toda a verdade. Nancy não está sufocada pelo excesso, como o tango dá a entender. Ao contrário, se identificando às avessas com Duguay-Trouin, marinheiro que diz amar eternamente uma mulher a cada porto, ela ama “todos os marinheiros no mesmo porto”. De amante frustrada por nunca encontrar homem que aceite seu amor integral, que queira trocar a prisão de Plymouth pela prisão de seu amor (ou, mais tragicamente, que preferem a morte), ela se revela o seu contrário: amante do excesso e da variedade, que ama os marinheiros exatamente porque eles não se fixam, e não querem outra coisa senão o seu sexo.
Poder-se-ia objetar: não estará Nancy, como forma de se proteger contra mais uma cruel decepção, fingindo diante de Duguay-Trouin, sendo o conteúdo de sua fala em “Marinheiros de muitos portos”, na verdade, a mentira? Não se trataria de um tipo de resignação amorosa como a que se ouve em “Olha Maria”? (Tom Jobim, Chico Buarque e Vinicius de Moraes):

Vai, alegria
Que a vida, Maria
Não passa de um dia
Não vou te prender

Parece que não, conforme mostra a didascália que segue a canção:

(Duguay-Trouin parte no naviozinho “Estrela da Noite” durante a canção. Nancy finge que chora, depois volta a trabalhar. O Capitão quer beijá-la e leva um tapa na cara).(13)

Bem entendido, tal didascália não é do dramaturgo-personagem, o professor de História, e sim do autor, Augusto Boal. Portanto, da consciência de quem, em princípio, tem a visão do todo da obra escrita (ainda que essa totalidade seja aberta, pois não se pode ter o controle absoluto dos sentidos do que se fala ou escreve). Ela revela que Nancy, mais do que vítima, administra suas relações com os marinheiros de modo a gerar neles um desejo de voltar, muito embora tenha dito “volta não” (dizer “volte”, por contrariar o regime da vida marinheira, poderia gerar o desejo de não mais voltar). Sua fala na canção, por meio de um etos leve, sereno e até bem-humorado, manifesta um discurso amoroso em certa medida oposto ao discurso de seu tango. Segundo tal discurso, o amor, mais do que vivido, deve ser usufruído. Esse usufruto deve ser regulado pelo critério da variedade (um de cada vez), sem que se descarte a possibilidade de uma mesma relação amorosa ser eventualmente usufruída mais de uma vez. O todo desse amor corresponde ao amor físico, usufruído com intensidade, porém com desprendimento e sem sentimentalismo(14).
Os fingimentos dentro e após essa canção, essa surpreendente contradição, transformam o discurso amoroso do “Tango de Nancy” numa farsa? Teria ela enganado os públicos (da peça principal e da peça encaixada), assim como enganou o corsário que pensava estar enganando-a? Sim e não. Do ponto de vista lógico e linear da sucessão das cenografias encaixadas, sim. Ou também se acreditarmos numa unicidade do sujeito e negarmos a possibilidade deste (mesmo fictício) conter em si clivagens, contradições. Mas, se pensarmos que tais discursos estão ancorados em regimes de verdade acerca do amor e que, como dissemos no início, o que se chama “personagem”, “narrador” ou “eu lírico” é antes uma unidade dispersa, isto é, um princípio de agrupamento de uma pluralidade de representações, posições e funções(15), podemos responder que não. As duas Nancys contêm em si cada uma um pouco de verdade e de mentira.
Aliás, a problemática da verdade e da mentira não é senão a questão de fundo da peça de Boal, sintetizada na canção de abertura, da qual destacamos os nove últimos versos:

Na verdade cresce a ira
A mentira é só desdém
A verdade faz a mira
A mentira diz amém
A verdade quando atira
O cartucho vai e vem
A verdade é que no bucho
De toda mentira
Verdade tem

(“Verdadeira embolada ou O incrível duelo da Mentira com a Verdade”).

Notas:
1. À representação da peça, infelizmente, não tivemos acesso.
2. MAINGUENEAU, Dominique. Cenas de enunciação. São Paulo: Parábola, 2008.
3. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2003.
4. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1993.
5. BOAL, Augusto; BUARQUE, Chico; LOBO, Edu. O corsário do rei. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985.
6. BOAL et al. Op. cit., p. 61.
7. BOAL et al. Op. cit., p. 58.
8. BUARQUE, Chico; GUERRA, Ruy. Calabar: o elogio da traição. 3a ed. São Paulo: Círculo do Livro, 1975.
9. Canção gravada, no álbum O corsário do rei, por Edu Lobo e Tom Jobim, sob o título “Choro bandido”.
10. BOAL et al. Op. cit., p. 70.
11. BOAL et al. Op. cit., p. 70-71.
12. BOAL et al. Op. cit., p. 59. Canção gravada, no álbum O corsário do rei, por Chico Buarque e Gal Costa, sob o título “A mulher de cada porto”.
13. BOAL et al. Op. cit., p. 72. O grifo é nosso.
14. Dir-se-ia um amor que seguiria a lógica do consumo da “modernidade leve ou líquida”, conforme Z. Bauman (A modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001). No entanto, não é senão a contrapartida feminina do amor de marinheiro cujo estilo de vida, conforme W. Benjamin (“O narrador”. In: Textos escolhidos. São Paulo: Câmara Brasileira do Livro, 1983), é um dos constituintes, por meio de suas narrativas, do mundo simbólico pré-capitalista. Por outro lado, se pensarmos que se trata de uma leitura desse estilo feita na contemporaneidade, a primeira hipótese não é absurda.
15. FOUCAULT. Op. cit., p. 58.

Nelson Barros da Costa, in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos

A implosão da mentira | 2

Evidente/mente a crer
nos que me mentem
uma flor nasceu em Hiroshima
e em Auschwitz havia um circo
permanente.

Mentem. Mentem caricaturalmente:

mentem como a careca
mente ao pente,
mentem como a dentadura
mente ao dente,
mentem como a carroça
à besta em frente,
mentem como a doença
ao doente,
mentem clara/mente
como o espelho transparente.

Mentem deslavada/mente,
como nenhuma lavadeira mente
ao ver a nódoa sobre o linho. Mentem
com a cara limpa e nas mãos
o sangue quente. Mentem
ardente/mente como um doente
nos seus instantes de febre. Mentem
fabulosa/mente como o caçador que quer passar
gato por lebre. E nessa trilha de mentira
a caça é que caça o caçador
com a armadilha.

E assim cada qual
mente industrial? Mente,
mente partidária? Mente,
mente incivil? Mente,
mente tropical? Mente,
mente incontinente? Mente,
mente hereditária? Mente,
mente, mente, mente.
E de tanto tão brava/mente
constroem um país
de mentira
diária/mente.

Affonso Romano de Sant’Anna, in A implosão da mentira e outros poemas

Considerações Iatrofilosóficas

Realmente, como vocês devem estar cansados de me ver repetir, não se pode querer tudo neste mundo. Há gente, contudo, como eu, que continua neuroticamente tentando. E não consegue, claro. Por exemplo, aqui com o juízo coçando, eu ia falar mal do governo outra vez. Como também já disse, não é que eu goste de falar mal do governo. Pelo contrário, queria falar bem, mas sabem como é, às vezes fica difícil (lá ia eu de novo, mil perdões). Pronto, não vou falar mal do governo. Mas aí outro problema que me aflige se apresentou, como é também freqüente: um dos meus acessozinhos de pernosticismo, no título acima, com o uso de uma palavra que nem mesmo está registrada nos dicionários que consultei, embora sua formação me pareça tão legítima quanto a de “imexível”. Procurei esquivar-me, mas não deu e me redimo parcialmente, explicando que “iatro” é um elemento de composição que vem do grego e quer dizer “médico”. Por exemplo, “iatrogênico”, palavra que existe mesmo, qualifica uma enfermidade ou anomalia provocada pelo tratamento, ou seja, pelo médico. Não sei nem por que ela existe, pois ninguém ignora que médico não comete esse tipo de erro, como, segundo me dizem, costuma ser a posição dos conselhos regionais de medicina diante de denúncias — sempre calúnias geradas por pacientes irresponsáveis e, notadamente, pela imprensa, como todas as desgraças e calamidades.
Preâmbulo concluído, apresso-me a apresentar-lhes meu grande amigo Toinho Sabacu, conceituado cidadão de Itaparica, de quem nunca lhes falei antes devido a injusto esquecimento, pois ele, por suas inúmeras boas qualidades, já de muito merecia ser mais conhecido. E também porque, apesar de sermos amigos, ai de nós, há mais de 60 anos, não prestara suficiente atenção a certas colocações suas (vejam como posso não ser craque, mas dá para manejar o linguajar contemporâneo), que considero educativas, relevantes e de acentuado interesse público. No exemplo que vou narrar-lhes, as utilidades práticas e filosóficas são evidentes e devem interessar bastante aos que se preocupam com a saúde dos brasileiros, na vanguarda dos quais está o governo (pronto, lá vou eu novamente; por favor, ignorem esta última ironia).
Toinho é, que eu saiba, o autor da metáfora da catraca, alusão ao inevitável transcurso de todos nós desta para melhor. Ele sabe que ninguém escapa de passar pela catraca e, da mesma forma que a maioria, deseja adiar esse momento, digamos, desagradável, o máximo possível. É, aliás, da ala radical, não quer nem ouvir falar na catraca. Cuida-se com seriedade, não fuma, só bebe um copinho de cerveja de caju em caju, não come o que faz mal e, enfim, obedece escrupulosamente às recomendações aplicáveis à preservação da boa saúde. E oferece conselhos e exemplos práticos sempre que surge uma ocasião oportuna. Como os que expôs há pouco tempo, em relação a adivinhe o quê. Claro, exame de próstata, ato execrado pelos varões em geral e especialmente os itaparicanos, eis que a machidão altiva por lá impera, em grau ainda maior que entre outras coletividades. Ele me contou por que, apesar de seus princípios, a lembrança da catraca o leva a fazer o exame com resignação e assiduidade, sem receio ou acanhamento.
O médico me disse — disse ele — uma coisa importante. Ele queria fazer o exame, mas mandava minha natureza perguntar se não dava para quebrar o galho sem precisar enfiar o dedo num orifício de grande privacidade, em que eu nunca aprovei enfiar nada, pelo menos no meu. Aí ele me explicou que o exame do PSA era uma indicação importante, mas insuficiente, por isso e por aquilo. E, no que se refere à ultrassonografia, ele me elucidou: “Seu Antônio, vamos comparar a ultrassonografia a uma fotografia. Ela me dá uma visão de sua próstata, do tamanho a outros aspectos, é mais ou menos como uma foto. Mas, se eu puser um grãozinho de areia da praia na sua mão e fizer a foto dela, o senhor não vai enxergar o grãozinho. No entanto, se o senhor passar o dedo na mão, vai sentir alguma coisa, por mais miudinha que seja. É por isso que, apesar de compreender e respeitar a sua posição, enfiar o dedo é indispensável para um exame correto.”
E o que foi que você respondeu?
Ah, então pode até enfiar os cinco, doutor. Eu sou um homem de decisão e não é assim que eu vou dar moleza para a catraca.
Impressionado com a destemida atitude, passo adiante para o distinto leitor que ainda reluta e para as pessoas a ele afeiçoadas. É de fato rematada frescura esse negócio de não permitir o exame da dedada, catraquismo explícito, para não dizer pior. E acrescento um complemento adicional à lição. Outro amigo nosso, viúvo e em seus galantes 66 anos, tem-se recusado a fazer uma operação na próstata, porque traz a possibilidade de torná-lo impotente.
Que é que você está me dizendo? — espantou-se Toinho. — Ele não vai fazer a operação com medo disso? E ainda mais com 66 anos?
Pois é.
Interessante essa, muito interessante. Agora eu lhe pergunto, ele quer morrer com uma ereção, é isso? — Indagou ele, sem propriamente usar a expressão “com uma ereção”, mas outra, essa mesma em que vocês estão pensando. — É, bonita morte. Caixão especial abaulado no meio, algumas pessoas querendo conferir, coisa fina mesmo, uma beleza. E de fato não se pode negar que tem uma vantagem nisso.
Vantagem, que vantagem?
Ele vai poder transar com todas as caveirinhas do cemitério, não deve ser isso que ele está querendo?

João Ubaldo Ribeiro, in O rei da noite