Seu maior poder


Quando Edward Bloom deixou Ashland, prometeu a si mesmo que ia ver o mundo, e, assim, parecia estar sempre em movimento, e nunca em um mesmo lugar por muito tempo. Não havia um continente que seu pé não houvesse tocado, um país que ele não tivesse visitado, uma grande cidade em que não tivesse um amigo. Ele era um verdadeiro cidadão do mundo. Fazia aparições rápidas mas heroicas em minha vida, salvando-a quando podia, incentivando-me na direção da vida adulta. Entretanto, era levado por forças mais poderosas do que ele; estava, como dizia, cavalgando o tigre.
Mas gostava de me fazer rir. Era como ele queria lembrar-se de mim e como queria ser lembrado. De todos os seus incríveis poderes, esse era talvez o mais extraordinário: a qualquer hora, com uma ninharia, ele conseguia realmente me desconcertar.

Havia um homem — vamos chamá-lo de Roger — que teve que sair da cidade a trabalho, e então deixou o gato aos cuidados de um vizinho. Ora, o homem amava seu gato, amava o gato acima de todas as coisas, de tal forma que na mesma noite do dia em que viajou ligou para o vizinho para perguntar sobre a saúde e o estado emocional de seu querido felino. Ele perguntou ao vizinho:
Como está o meu doce e precioso gatinho? Diga-me, vizinho, por favor.
E o vizinho disse:
Sinto muito ter que lhe dizer isto, Roger. Mas seu gato está morto. Foi atropelado por um carro. Morreu instantaneamente. Sinto muito.
Roger ficou chocado! Não só por saber da morte do gato — como se isso já não fosse o bastante! —, mas também pela forma como a notícia lhe fora dada.
Então ele disse, ele disse:
Não é assim que se dá uma notícia tão terrível como essa! Quando uma coisa dessas acontece, você dá a notícia devagar, aos poucos. Você prepara a pessoa! Por exemplo, quando liguei esta noite, você deveria ter dito: “O seu gato subiu no telhado.” Aí, da próxima vez que eu ligasse, você diria: “O gato ainda está no telhado, não quer descer e parece bem doente.” Então, da outra vez que eu ligasse, você poderia me dizer que o gato caiu do telhado e estava internado. Finalmente, quando eu ligasse de novo, você me diria, com uma voz abalada, que ele tinha morrido. Entendeu?
Entendi — disse o vizinho. — Desculpe-me.
Então, três dias depois Roger tornou a ligar para o vizinho, porque o vizinho ainda estava vigiando a casa, checando sua correspondência et cetera, e Roger queria saber se tinha acontecido algo importante.
E então? — perguntou Roger.
Bem, é a respeito do seu pai.
Meu pai! — exclamou. — Meu pai! O que houve com o meu pai?
Seu pai — disse o vizinho — subiu no telhado...
Meu pai subiu no telhado. É assim que gosto de me lembrar dele às vezes. Bem vestido num terno escuro e de sapatos pretos, escorregadios, ele está olhando para a esquerda, para a direita, olhando até onde sua vista alcança. Aí, olhando para baixo, ele me vê, e assim que começa a cair, ele sorri e pisca o olho para mim. Fica olhando para mim o tempo todo enquanto cai — sorrindo, misterioso, mítico, uma poção desconhecida: meu pai.

Daniel Wallace, in Peixe Grande

O Tempo

A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando se vê, já é sexta-feira!
Quando se vê, já é natal…
Quando se vê, já terminou o ano…
Quando se vê perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê passaram 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado…
Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas…
Seguraria o amor que está a minha frente e diria que eu o amo…
E tem mais: não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo.
Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz.
A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará.
Mário Quintana, in Esconderijos do Tempo

Um moço muito branco


Na noite de 11 de novembro de 1872, na comarca do Serro Frio, em Minas Gerais, deram-se fatos de pavoroso suceder, referidos nas folhas da época e exarados nas Efemérides. Dito que um fenômeno luminoso se projetou no espaço, seguido de estrondos, e a terra se abalou, num terremoto que sacudiu os altos, quebrou e entulhou casas, remexeu vales, matou gente sem conta; caiu outrossim medonho temporal, com assombrosa e jamais vista inundação, subindo as águas de rio e córregos a sessenta palmos da plana. Após os cataclismos, confirmou-se que o terreno, em raio de légua, mudara de feições: só escombros de morros, grotas escancaradas, riachos longe transportados, matos revirados pelas raízes, solevados novos montes e rochedos, fazendas sovertidas sem resto — rolamentos de pedra e lama tapando o estado do chão. Mesmo a distância do astroso arredor, a muita criatura e criação pereceu, soterradas ou afogadas. Outros vagavam ao deus-dar, nem sabendo mais, no avesso, os caminhos de outrora.
Donde, no termo de semana, dia de São Félix, confessor, o caso de vir ao pátio da Fazenda do Casco, de Hilário Cordeiro, com sede quase dentro da rua do Arraial do Oratório, um coitado fugitivo desses, decerto persuadido da fome: o moço, pasmo. O que foi quando subitamente, e era moço de distintas formas, mas em lástima de condições, sem o restante de trapos com que se compor, pelo que enrolado em pano, espécie de manta de cobrir cavalos, achada não se supõe onde; e, assim em acanho, foi ele avistado, de muito manhã, aparecendo e se escondendo por detrás do cercado das vacas. Tão branco; mas não branquicelo, senão que de um branco leve, semidourado de luz: figurando ter por dentro da pele uma segunda claridade. Sobremodo se assemelhava a esses estrangeiros que a gente não depara nem nunca viu; fazia para si outra raça. Seja que da maneira ainda hoje se conta, mas transtornado incerto, pelo decorrer do tempo, porquanto narrado por filhos ou netos dos que eram rapazes, quer ver que meninos, quando em boa hora o conheceram.
Hilário Cordeiro, sendo homem cordial para os pobres, temente e bom, e mais ainda nesse pós-tempo de calamidade, em que parentes dele mesmo tinham sofrido morte e arrasos totais, não duvidou em lhe deferir hospedamento, cuidando de adequar-lhe roupa e botinas, desde lhe dar o de comer. E o que era mister de benemerência, porquanto o moço, com os sustos e baques, passara por desgraça extraordinária: perdida a completa memória de si, sua pessoa, além do uso da fala. Esse moço, pois, para ele sendo igual matéria o futuro que o passado? Nada ouvindo, não respondia, nem que não, nem que sim; o que era coisa de compaixão e lamentosa. Nem fizesse por entender, isto é, entendia, às vezes ao contrário, os gestos. Dado que uma graça já devia de ter, não se lhe podia pôr outro nome, não adivinhado; nem se soubesse de que geração fosse — o filho de nenhum homem.
De tanto que chegou lá, e nos dias, compareceram os vários moradores, por sua causa, de há-de o que achassem. Tonto, não era. Só aquela intenção sonhosa, o certo cansaço do ar. Surpreendente, contudo, o que assaz observava, resguardado, até espreitasse por miúdo os vezos de coisas e pessoas; o que, porém, melhor se viu pelo depois. Gostou-se dele. Quiçá mais o preto José Kakende, escravo meio alforriado de um músico sem juízo, e ele próprio de ideia conturbada; por último, então, delirado varrido, pelo fato de padecidos os grandes pavores, no lugar do Condado: girava agora por aqui e ali, a pronunciar advertências e desorbitadas sandices — querendo pôr em pé de verdade portentosa aparição que teria enxergado, nas margens do Rio do Peixe, na véspera das catástrofes. Do moço, pois, só não se engraçou, antes já de abinício o malquerendo — e o reputando por vago e malfeitor a rebuço, digno, noutros tempos, de degredo em África e nos ferros de el-rei — um chamado Duarte Dias, pai da mais bela moça, por nome Viviana; e do qual se sabia ser homem de gênio forte, além de maligno e injusto, sobre prepotências: naquele coração não caía nunca uma chuvinha. Não se lhe deu exata atenção.
Mas levaram o moço à missa, e ele portou-se, não fez modos de crer nem increr. Cantoria e músicas do coro, escutasse, no sério sentimental. Triste, dito, não; mas: como se conseguisse, em si, mais saudade que as demais pessoas, saudade inteirada, a salvo do entendimento, e que por tanto se apurava numa maior alegria — coração de cão com dono. Seu sorriso às vezes parava, referido a outro lugar, outro tempo. Sorrindo mais com o rosto, senão com os olhos; suposto que nunca se lhe viram os dentes. Padre Bayão, antes de com ele bondosamente conferir, de improviso lhe representou diante o signo-da-cruz: e ele não mostrou o desagrado da matéria. Estava nas altas atmosferas, aumentava a sua presença. “Comparados com ele, nós todos, comuns, temos os semblantes duros e o aspecto de má fadiga constante.” Traços estes consignados pelo mesmo padre, em carta de punho e firma, para testemunho do esquisito, ao cônego Lessa Cadaval, da Sé de Mariana. Na qual igualmente dá menção do preto José Kakende, que na mesma ocasião se lhe acercou, com altas e despauteradas falas, por impor sua visão da beira do rio: ...“o rojo de vento e grandeza de nuvem, em resplandor, e nela, entre fogo, se movendo uma artimanha amarelo-escura, avoante trem, chato e redondo, com redoma de vidro sobreposta, azulosa, e que, pousando, de dentro, desceram os Arcanjos, mediante rodas, labaredas e rumores.” E, com o mesmo risonho José Kakende, veio Hilário Cordeiro trazendo de volta para casa o moço, num extrato de desvelo, como se o vero pai dele fosse.
Mas à porta da igreja se achava um cego, Nicolau, pedidor, o qual, o moço em o vendo, olhou-o sem medida e entregadamente — contam que seus olhos eram cor-de-rosa! — e foi em direitura a ele, dando-lhe rápida partícula, tirada da algibeira. Ora, estando o cego debaixo do sol, e corrido de suor, a almas cristãs devia de causar meditação o contraste de tanto padecer o calor do astro-rei aquele que nem as belezas da luz podia gozar. O cego, apalpando a dádiva na mão, em guisa de cogitar em que estúrdia casta de moeda ela consistisse, e se dissertando logo que nenhuma, a levou prestes à boca; ao que, seu menino guia o advertiu: que não seria artigo de se comer, mas espécie de caroço de árvore. Então o cego guardou, com irados ciúmes e por diversos meses, aquela semente, que só foi plantada após o remate dos fatos aqui ainda por narrar: e deu um azulado pé de flor, da mais rara e inesperada: com entreaspecto de serem várias flores numa única, entremeadas de maneira impossível, num primor confuso, e, as cores, ninguém a respeito delas concordou, por desconhecidas no século; definhada, com pouco, e secada, sem produzir outras sementes nem mudas, e nem os insetos a sabiam procurar.
No que, porém, acabada de se passar aquela cena, surgia no adro Duarte Dias, mais uns companheiros e serviçais, para opor a surpresa de uma exigência e fazer problema: queria carregar consigo o moço, sobre fundamento de que, pela brancura da tez e delicadezas mais, devia de ser um dos Rezendes, seus parentes, desaparecidos no Condado, no terremoto; e que, pois, até o reconhecimento de alguma notícia, competia-lhe o ter em custódia, pelo costume. Sendo que Hilário Cordeiro pronto contestou o postulado, e o argumento por um nada terminava em desavença séria, Duarte Dias porfiando e se excedendo, do que só tornou em si ante o parecer de Quincas Mendanha, do Serro, notável na política e provedor da Irmandade.
E, todavia, de seu zelo, mais para diante, Hilário Cordeiro iria ter melhor razão, eis que tudo lhe passou a dar sorte, quer na saúde e paz, em sua casa, seja no assaz prosperar dos negócios, cabedais e haveres. E não que o moço lhe facultasse ajuda, na sujeição de serviço ou no vagar a algum ofício, em que, de feito, nem pudesse dar descargo de si — com as mãos não calejadas, alvas e finas, de homem-de-palácio. Ele andava muito na lua, passeava por todo o lugar e alhonde, praticando aquela liberdade vaporosa e o espírito de solidão; parecesse alquebrado de um feitiço, segundo os dizeres do povo. Não embargando que grandes partes tivesse, para o que fosse de funções de engenhos, ferramentas e máquinas, ao que se prestava, fazendo muitas invenções e desembaraçando as ocasiões, ladino, cuidoso e acordado. De estranha memória, só, pois, a de olhar ele sempre para cima, o mesmo para o dia que para a noite — espiador de estrelas. Que vezes, porém, mais lhe prouvesse o divertimento de acender fogos, sendo de reparo o quanto se influiu, pelo São João, nas tantas e tamanhas fogueiras de festa.
Do que adveio, justo, o caso da moça Viviana, sempre mal contado. O que foi quando ele lá apareceu, acompanhado do preto José Kakende, e deu com a moça, mui bonita, mas que não se divertia ao igual das outras: e ele se chegou muito a ela, gentil e espantoso, lhe pôs a palma da mão no seio, delicadamente. Ora, sendo assim a moça Viviana a mais formosa, tinha-se para admirar que a beleza do feitio lhe não servisse para transformar, no interior, a própria e vagarosa tristeza. Mas, Duarte Dias, o pai, e que a isso assitia, prorrompeu em pleiteantes brados de: — “Tem que casar! Agora, tem de casar!” — com instância. Afirmava que o moço era homem, e um, e ainda mancebo, e lhe infamara a filha, devendo-lhe de a tomar por consorte e arcar com o estado de casado. O moço ouvia, de boa concórdia, e nem por isso. Mas a grita de Duarte Dias só teve termo, quando o padre Bayão, e outros dos mais velhos, lhe rejeitaram tão descabidas fúrias e insensatez. Também a moça Viviana, com radiosos sorrisos, o serenava. Ela, que, a partir dessa hora, despertou em si um enfim de alegria, para todo o restante de sua vida, donde um dom. Apenas que, Duarte Dias — o que não se entende — ia produzir ainda outros lances de estupefacção, eis-aqui.
De tal guisa que, para o alvoroço de todos, no dia da missa da Dedicação de Nossa Senhora das Neves e vigília da Transfiguração, 5 de agosto, ele veio à Fazenda do Casco, requerendo falar com Hilário Cordeiro. Também o moço lá estava. Outrovisto, e nunca desairoso — a gente espiava, e pensava num logo luar. Então, Duarte Dias declarou: suplicava deixassem-no levar o moço, para sua casa. Que queria assim, e necessitava, muito, não por ambicioneiro ou impostor, nem por interesses somenos, mas por a ele ter cobrado, com contrições de escrúpulo, a fortíssima estima de afeição! Dizia, e desgovernava as palavras, alterado, enquanto que dos olhos lhe corriam bastas lágrimas. Ora, não se compreendendo o descabelo de passo tão contrariado: o de um homem que, para manifestar o amor, ainda não dispunha mais que dos arrebatados meios e modos da violência. Mas, o moço, claro como o olho do sol, o pegou da mão, e, com o preto José Kakende, o foi conduzindo pelos campos — depois se soube que a terras dele mesmo, Duarte, aonde à tapera de uma olaria. E lá indicou que mandasse cavar: com o que se achou, ali, uma grupiara de diamantes; ou um panelão de dinheiro, segundo diversa tradição. Por arte de qual prodígio, Duarte Dias pensou que ia virar riquíssimo, e mudado de fato esteve, da data por diante, em homem sucinto, virtuoso e bondoso, suspendentemente, consoante o asseverar sobremaravilhado dos coevos.
Mas, por contra, no dia da venerada Santa Brígida, de voz comum de novo dele se soube: o moço, plácido. Disse-se, que saíra, na véspera, de paragem, pelos altos, num de seus desapareceres; era um tempo de trovoadas secas. José Kakende contava somente que o ajudara a acender, de secreto, com formato, nove fogueiras; e, mais, o Kakende soubesse apenas repetir aquelas suas velhas e divagadas visões — de nuvem, chamas, ruídos, redondos, rodas, geringonça e entes. Com a primeira luz do sol, o moço se fora, tidas asas.
Todos singularmente se deploraram, para nunca, mal em pensado. Duvidavam dos ares e montes; da solidez da terra. Duarte Dias, de dó, veio a falecer; mas a filha, a moça Viviana, conservou sua alegria. José Kakende conversou muito com o cego. Hilário Cordeiro, e outros, diziam experimentar uma saudade e meia-morte, só de imaginarem nele. Ele cintilava ausente, aconteceu. Pois. E mais nada.

Guimarães Rosa, in Primeiras estórias

Supondo o errado

Suponhamos que eu seja uma criatura forte, o que não é verdade. Suponhamos que ao tomar uma resolução eu a mantenha, o que não é verdade. Suponhamos que eu escreva um dia alguma coisa que desnude um pouco a alma humana, o que não é verdade. Suponhamos que eu tenha sempre o rosto sério que vislumbro de repente no espelho ao lavar as mãos, o que não é verdade. Suponhamos que as pessoas que eu amo sejam felizes, o que não é verdade. Suponhamos que eu tenha menos defeitos graves do que tenho, o que não é verdade. Suponhamos que baste uma flor bonita para me deixar iluminada, o que não é verdade. Suponhamos que eu finalmente esteja sorrindo logo hoje que não é dia de eu sorrir, o que não é verdade. Suponhamos que entre meus defeitos haja muitas qualidades, o que não é verdade. Suponhamos que eu nunca minta, o que não é verdade. Suponhamos que um dia eu possa ser outra pessoa e mude de modo de ser, o que não é verdade.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

As rãs | 9.




Minha tia entrou em nossa aldeia com uma grande força-tarefa de planejamento familiar. A chefe era ela, o vice-chefe era o vice-diretor do departamento de milícias da comuna. Também faziam parte Leoazinha e seis robustos milicianos. Vinham numa van com alto-falante, acompanhada de um possante trator de esteira.
Antes da chegada dessa força-tarefa, fui mais uma vez bater à porta do meu sogro. Dessa vez, ele fez a gentileza de me deixar entrar.
O senhor também serviu no Exército”, disse a ele, “sabe que uma ordem militar é como uma montanha vindo abaixo, não adianta resistir.”
O sogro fumava um cigarro, ficou quieto por um bom tempo e disse: “Já que você sabia que não iam deixá-la ter o bebê, por que engravidou minha filha? Já está com tantos meses de gravidez, como vai fazer o aborto? E se ela morrer? Essa é a única filha que eu tenho!”.
Mas não é culpa minha”, tentei explicar.
Se a culpa não é sua, então é de quem?”
Se alguém tem culpa nisso, é o filho da mãe do Yuan Bochecha, eu disse, “ele já foi levado pela polícia.”
Mas se acontecer qualquer coisa com a minha filha, vou te matar nem que isso me custe a vida.”
Minha tia diz que não tem problema”, expliquei, “diz que fez aborto até em mulher com sete meses de gravidez.”
Sua tia não é gente, é um demônio!”, disse minha sogra, surgida não sei de onde. “Quantas vidas ela já arruinou nesses anos todos? Está com as mãos sujas de sangue. Quando morrer, o rei do Inferno vai fazer picadinho dela!”
Por que se mete na nossa conversa?”, disse meu sogro. “Isto é assunto de homem.”
E como é que pode ser assunto de homem?”, ela gritou com voz estridente, “bem se vê que estão querendo empurrar minha filha para a porta do inferno, e ainda vem me dizer que isso é assunto de homem?”
Mãe, não vou discutir com a senhora. Pode chamar a Renmei? Quero conversar com ela”, eu disse
E por que acha que vai encontrar Renmei aqui? Ela é sua mulher e mora na sua casa. Ou será que você fez algum mal a ela? Eu é que devo te pedir para ir buscar minha filha!”
Renmei, sei que está me escutando”, gritei, “ontem fui conversar com minha tia, “disse a ela que estava pronto para deixar o Partido e o cargo, e voltar à lavoura, só para você ter esse filho. Mas minha tia disse que isso também não vai funcionar. O pessoal da província já sabe o que Yuan Bochecha fez, o distrito deu ordens expressas a minha tia para fazer o aborto de todas as mulheres que engravidaram ilegalmente.”
De jeito nenhum! Que sociedade é esta!” A sogra despejou sobre mim uma bacia de água suja, xingando. “Fale para aquela vadia da sua tia vir aqui, vou acabar com ela, nem que eu morra junto! Ela não consegue ter filho e fica com raiva, com inveja de quem tem.”
Encharcado de água suja, bati em retirada num estado de dar pena.

A van da força-tarefa estacionou na frente da casa do meu sogro. Praticamente qualquer um capaz de andar veio ver o que estava acontecendo. Nem a paralisia deteve Xiao Lábio Superior, que apareceu lá, de cara torta, apoiado numa bengala. Do alto-falante, saía uma voz cheia de entusiasmo e energia: “O planejamento familiar é uma grande prioridade, que diz respeito ao futuro do país e da nação… Para construir um país forte com as quatro modernizações, devemos fazer todo o possível para controlar o crescimento da população e melhorar sua qualidade… Quem engravidar de forma ilegal não deve confiar na sorte e tentar se safar… Nada escapa aos olhos das massas populares, mesmo que se esconda num buraco ou na mata fechada, não será capaz de escapar… Quem emboscar ou agredir um funcionário do planejamento familiar será punido como contrarrevolucionário em flagrante… Quem de alguma maneira sabotar os trabalhos de planejamento familiar, será rigorosamente punido conforme a disciplina do Partido ou a legislação nacional…”.
Minha tia ia na frente, o vice-diretor do departamento da milícia da comuna e Leoazinha vinham atrás dela, de escolta. O portão da casa do meu sogro estava firmemente fechado, nos dois lados da entrada se liam os versos: “Infinita é a beleza de nossa terra; eterna é a primavera da pátria”. Minha tia disse aos curiosos que a cercavam: “Sem o planejamento familiar, a beleza de nossa terra vai acabar e a pátria vai entrar em colapso! Onde vamos encontrar a beleza infinita? De onde virá a primavera eterna?”. Ela bateu a argola da porta e gritou com a voz rouca que lhe era peculiar: “Wang Renmei, você está escondida no silo de batata-doce ao lado do chiqueiro. Acha que não sei? Seu caso já chegou aos ouvidos do comitê distrital e até do Exército, você é um mau exemplo. Agora há apenas dois caminhos à sua frente, ou você sai daí obediente, vem comigo fazer o aborto no posto de saúde. Levando em conta a fase avançada da sua gravidez e sua própria segurança, podemos acompanhá-la até o hospital do distrito e procurar o melhor profissional para fazer a sua cirurgia. Ou você continua resistindo até o final. Aí vamos usar o trator para pôr abaixo primeiro a casa dos vizinhos e por último a dos seus pais. Seu pai deverá arcar com todo o prejuízo dos vizinhos. E mesmo assim você ainda vai precisar fazer o aborto. Com os outros, eu poderia ser mais educada, mas com você não farei cerimônia! Wang Renmei, escutou o que falei? Wang Jinshan e Wu Xiuzhi, entenderam o que eu disse?”, perguntou minha tia mencionando os nomes dos meus sogros.
Houve um longo silêncio dentro do portão, depois se escutou o cantar estridente de um galo jovem. Em seguida foi minha sogra que abriu o berreiro enquanto rogava pragas: “Wan Coração, sua peste, coisa-ruim, demônio sem alma… Você não há de ter uma boa morte… Depois de morrer, vai escalar uma montanha de lâminas cortantes, vão jogar você num caldeirão de óleo fervente, vão arrancar sua pele e cavar seus olhos, vai queimar inteira numa Lanterna Celestial…”.
Minha tia sorriu com desdém e falou para o vice-diretor: “Podem começar!”.
Sob o comando do vice-diretor, os milicianos amarraram um cabo de aço grosso e comprido na velha acácia no portão do vizinho do meu sogro para o lado do nascente. Apoiado na bengala, Xiao Lábio Superior pulou para fora da multidão e gritou numa pronúncia confusa: “Isto é… árvore da minha família…”. Tentou bater na minha tia com a bengala, mas mal a levantou, perdeu o equilíbrio — a minha tia disse friamente: “É a árvore da sua casa? Que pena… azar o seu ter escolhido mal seu vizinho!”.
Vocês são uns bandidos… agem como o Partido Nacionalista… fazendo todas as famílias pagarem pelo erro de uma…”
O Partido Nacionalista nos chamava de ‘bandidos comunistas’”, disse minha tia com um sorriso sarcástico. “Mas para você somos apenas bandidos, você não chega nem à altura do Kuomintang.”
Vou denunciá-los… Meu filho trabalha no Conselho de Estado…”
Então denuncie, quanto mais alto chegar sua denúncia, melhor!”
Xiao Lábio Superior jogou a bengala de lado, abraçou a acácia e disse, chorando: “Não podem arrancar a minha árvore… Yuan Bochecha havia dito… que a árvore está ligada à força vital da minha família… Enquanto a árvore medrar, a vida da minha família vai prosperar…”.
Minha tia disse, rindo: “Yuan Bochecha não soube nem prever quando seria levado pela polícia”.
Então me matem primeiro…”, gritou Xiao Lábio Superior.
Xiao Lábio Superior”, disse a tia com voz severa, “onde está aquela pessoa temida que batia e torturava durante a Revolução Cultural? Por que fica aí soluçando como uma mulher?”
Eu sabia… você está agindo em causa própria a pretexto do bem público… quer se vingar de mim… foi a esposa de seu sobrinho que engravidou ilegalmente… com base em que vai arrancar a minha árvore?”
Não vamos só arrancar sua árvore”, respondeu a tia, “ainda vamos derrubar seu portão e pôr sua casa abaixo. Não adianta nada você ficar chorando aqui, deve reclamar com Wang Jinshan!” Minha tia recebeu da Leoazinha o megafone e disse para a multidão: “Atenção vizinhos dos dois lados da casa de Wang Jinsha! Segundo as disposições especiais da Comissão de Planejamento Familiar da Comuna, como Wang Jinshan escondeu a filha que engravidou de forma ilegal, resistiu obstinadamente ao governo, agrediu com insultos os funcionários, está decidido que serão derrubadas as casas dos vizinhos, todos os prejuízos serão responsabilidade da família de Wang Jinshan. Quem não quiser ter a casa destruída, que venha logo convencer Wang a entregar a filha”.
Os vizinhos começaram a bater boca e a confusão se instalou.
Minha tia disse ao vice-diretor da milícia: “Mãos à obra!”.
O rugido do trator de esteira sacudiu o chão sob os pés.
O colosso de metal avançava ruidoso, o cabo de aço zunia à medida que tensionava. Os galhos e as folhas da árvore tremiam, farfalhavam.
Xiao Lábio Superior avançou trôpego até o portão da casa do meu sogro e bateu na porta, enlouquecido: “Wang Jinshan, malditos sejam seus antepassados! Você só traz prejuízos para seus vizinhos, jamais descansará em paz!”.
No desespero, até sua pronúncia indistinta ficou mais clara.
O portão da casa do meu sogro continuava firmemente fechado. Do lado de dentro vinha o choro incontido da minha sogra.
Minha tia acenou para o vice-diretor da milícia levantando o braço direito e abaixando-o abruptamente.
Aumente a potência!”, gritou o vice-diretor para o motorista do trator.
O trator produziu um ronco de estourar os tímpanos. Esticado em linha reta, o cabo de aço zumbia, apertava a acácia, e apertava ainda mais, entranhava-se na casca da árvore, a seiva brotava. O trator avançava lento, centímetro a centímetro, anéis azulados de fumaça saíam empilhados dos tubos metálicos sobre o capô. O condutor dirigia a máquina olhando para trás. Vestia um uniforme azul, bem lavado, de tecido grosso, levava uma toalha imaculadamente branca no pescoço e um boné enviesado na cabeça. Os dentes de cima mordiam o lábio de baixo e, sob o nariz, crescia um bigode preto. Parecia um rapaz bem competente… A árvore, inclinando-se, estralejava em ruídos secos, doídos. O cabo, que já ia fundo no tronco, arrancara um pedaço da casca e revelava a brancura das fibras internas…
Wang Jinshan, seu desgraçado, venha aqui fora…” Xiao Lábio Superior esmurrava, dava joelhadas, dava cabeçadas na porta. Mas na casa do meu sogro não se ouvia um pio, até o choro da minha sogra tinha cessado.
A árvore inclinou-se e inclinou-se ainda mais até que sua copa exuberante tocou o chão com estardalhaço.
Xiao Lábio Superior cambaleou até chegar à acácia: “Minha árvore… árvore do nosso destino…”
O movimento das raízes abriu rachaduras no solo.
Xiao Lábio Superior reuniu forças para voltar ao portão da casa do meu sogro: “Wang Jinshan, seu filho de uma puta! Somos vizinhos há décadas, por pouco não nos tornamos compadres, e você vem me arruinar a vida desse jeito…”.
Fora do solo, as raízes da árvore mostravam um amarelo-pálido, pareciam grandes jiboias… Estrepitavam à medida que eram arrancadas, algumas se partiam, quanto mais se puxavam, mais se estendiam, um punhado de grandes jiboias… A copa caída por terra parecia uma enorme vassoura arrastada ao contrário. Os galhos mais finos iam se quebrando, a poeira subia do chão. A multidão abria as narinas para sentir o cheiro de terra fresca e seiva…
Porra, Wang Jinshan, vou morrer de tanto bater na sua porta…” As cabeçadas de Xiao Lábio Superior no portão pareciam mudas, não porque não fizessem barulho, mas porque seu ruído era abafado pelo ronco do trator.
A grande acácia foi parar a dezenas de metros da casa de Xiao. No seu lugar, ficou um grande buraco cheio de raízes quebradas e crianças à procura de ninfas de cigarra.
Minha tia anunciou pelo alto-falante elétrico: “Agora vamos pôr abaixo o portão da casa de Xiao!”.
Umas pessoas carregaram Xiao para um lado, apertaram-lhe o meio do bigode para reanimá-lo, massagearam seu peito.
E vocês, vizinhos de Wang Jinshan”, disse a tia serenamente, “voltem para casa e peguem seus objetos de valor, depois de derrubar a casa de Xiao Lábio Superior, será a vez de vocês. Sei que isso não faz sentido, mas uma razão menor precisa obedecer a uma razão maior, e qual é a razão maior? É o planejamento familiar, o controle populacional. Não me importo de ser a malvada, alguém sempre terá de ser a malvada. Sei que vocês já me condenaram ao inferno! Uma comunista não acredita nessas coisas, uma materialista de verdade não tem medo de nada! Mesmo que o inferno existisse, eu iria sem medo! Se eu não for ao inferno, quem irá?* Soltem o cabo de aço e amarrem no portão da casa de Xiao!”
Os vizinhos se apinharam na porta do meu sogro como um enxame de abelhas, esmurravam o portão, chutavam, jogavam pedaços de tijolo e cacos de telha por cima do muro. Um deles até trouxe palha de milho, enfiou sob o beiral da casa e gritou: “Wang Jinshan, se você não sair, vamos tacar fogo na sua casa!”.
A porta finalmente se abriu, mas quem estava lá não era meu sogro nem minha sogra, era minha esposa. Tinha o cabelo desgrenhado, a roupa suja de terra e lama, um sapato no pé esquerdo, o pé direito descalço, aparentemente acabara de sair do silo.
Ela se aproximou da minha tia e disse: “Tia, vou fazer o aborto, o que mais você quer?”.
Eu sabia que a mulher do meu sobrinho era uma pessoa de princípios!”, disse minha tia com um sorriso.
Tia, eu realmente admiro você!”, disse minha esposa. “Se fosse homem, seria capaz de comandar um grande exército!”
Você também”, disse minha tia, “desde que desmanchou o noivado com o filho do Xiao, tão decidida, já sabia que era uma grande mulher.”
Renmei”, eu disse, “quanto sofrimento te causamos.”
Corre Corre, me deixe ver sua mão.”
Sem entender o que ela queria, mostrei-lhe minha mão.
Ela a agarrou e mordeu meu pulso com força.
Eu nem tentei resistir.
Os dentes deixaram no pulso duas fileiras bem marcadas, escorria um sangue escuro.
Ela cuspiu e disse brava: “Você me faz sangrar, eu também te faço”.
Estendi a ela o outro pulso.
Ela o empurrou para o lado e disse: “Não quero morder mais! Fede a cachorro!”.
Xiao Lábio Superior recuperou os sentidos e pôs-se a uivar enquanto batia no chão como uma mulher: “Wang Renmei, Wan Corre Corre, vocês vão me indenizar… vão me indenizar pela árvore…”.
Não vou indenizar bosta nenhuma!”, disse minha mulher. “Seu filho passou a mão no meu peito e ainda me deu um beijo na boca! Esta árvore vale como indenização pela minha juventude perdida!”
Ó! ó! ó!”, fez um grupo de adolescentes aplaudindo o brilhante discurso da minha esposa.
Renmei!”, gritei enfurecido.
Para que tanto alvoroço?” Ela subiu na van da minha tia e disse, pondo a cabeça para fora: “Foi por cima da roupa!”.

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* Referência a uma frase do bodisatva Dizang (Ksitigarbha em sânscrito), encarregado da instrução de todos os seres em todos os domínios da existência, incluindo o inferno. Na frase original, Dizang promete só se tornar um buda depois de esvaziar o inferno.

Mo Yan, in As rãs

Tudo neste mundo é maravilhoso, exceto...

[…]
Em Oreanda, sentaram-se num banco perto da igreja e ficaram calados, olhando o mar embaixo. Mal se avistava Ialta através da névoa matutina, e nos cumes das montanhas nuvens brancas pairavam imóveis. A folhagem das árvores estava quieta, cigarras cantavam e o ruído surdo e monótono do mar, vindo de baixo, falava de repouso, do sono eterno que nos espera. Esse barulho já se fazia ouvir ali quando não havia nem Ialta, nem Oreanda; ele se faz ouvir agora e será assim também no futuro, surdo e indiferente, quando nós não mais existirmos. E nessa constância, nessa completa indiferença em relação à vida e à morte de cada um de nós, esconde-se, talvez, a garantia de nossa salvação eterna, do incessante movimento da vida na terra, do seu contínuo aperfeiçoamento. Sentado ao lado de uma jovem mulher, que no amanhecer parecia tão bela, tranquilizado e enfeitiçado pela visão desse panorama fantástico – o mar, as montanhas, as nuvens, o amplo céu –, Gúrov pensava que, no fundo, se refletirmos bem, tudo neste mundo é maravilhoso; tudo, exceto aquilo que nós mesmos pensamos e fazemos quando esquecemos das finalidades supremas da existência e da nossa dignidade como homens.
[...]

Anton Tchekhov, in A Dama do Cachorrinho

Presépio


Dasdores (assim se chamavam as moças daquele tempo) sentia-se dividida entre a Missa do Galo e o presépio. Se fosse à igreja, o presépio não ficaria armado antes de meia-noite e, se se dedicasse ao segundo, não veria o namorado.
É difícil ver namorado na rua, pois moça não deve sair de casa, salvo para rezar ou visitar parentes. Festas são raras. O cinema ainda não foi inventado, ou, se o foi, não chegou a esta nossa cidade, que é antes uma fazenda crescida. Cabras passeiam nas ruas, um cincerro tilinta: é a tropa. E viúvas espiam de janelas, que se diriam jaulas.
Dasdores e suas numerosas obrigações: cuidar dos irmãos, velar pelos doces de calda, pelas conservas, manejar agulha e bilro, escrever as cartas de todos. Os pais exigem-lhe o máximo, não porque a casa seja pobre, mas porque o primeiro mandamento da educação feminina é: trabalharás dia e noite. Se não trabalhar sempre, se não ocupar todos os minutos, quem sabe de que será capaz a mulher? Quem pode vigiar sonhos de moça? Eles são confusos e perigosos. Portanto, é impedir que se formem. A total ocupação varre o espírito. Dasdores nunca tem tempo para nada. Seu nome, alegre à força de repetido, ressoa pela casa toda. “Dasdores, as dálias já foram regadas hoje?” “Você viu, Dasdores, quem deixou o diabo desse gato furtar a carne?” “Ah, Dasdores, meu bem, prega esse botão para sua mãezinha.” Dasdores multiplica-se, corre, delibera e providencia mil coisas. Mas é um engano supor que se deixou aprisionar por obrigações enfadonhas. Em seu coração ela voa para o sobrado da outra rua, em que, fumando ou alisando o cabelo com brilhantina, está Abelardo.
Das mil maneiras de amar, ó pais, a secreta é a mais ardilosa, e eis a que ocorre na espécie. Dasdores sente-se livre em meio às tarefas, e até mesmo extrai delas algum prazer. (Dir-se-ia que as mulheres foram feitas para o trabalho... Alguma coisa mais do que resignação sustenta as donas-de-casa.) Dasdores sabe combinar o movimento dos braços com a atividade interior — É uma conspiradora — e sempre acha folga para pensar em Abelardo. Esta véspera de Natal, porém, veio encontrá-la completamente desprevenida. O presépio está por armar, a noite caminha, lenta como costuma fazê-lo no interior, mas Dasdores é íntima do relógio grande da sala de jantar, que não perdoa, e mesmo no mais calmo povoado o tempo dá um salto repentino, desafia o incauto: “Agarra-me!” Sucede que ninguém mais, salvo esta moça, pode dispor o presépio, arte comunicada por uma tia já morta. E só Dasdores conhece o lugar de cada peça, determinado há quase dois mil anos, porque cada bicho, cada musgo tem seu papel no nascimento do Menino, e ai do presépio que cede a novidades.
As caixas estão depositadas no chão ou sobre a mesa, e desembrulhá-las é a primeira satisfação entre as que estão infusas na prática ritual da armação do presépio. Todos os irmãos querem colaborar, mas antes atrapalham, e Dasdores prefere ver-se morta a ceder-lhes a responsabilidade plena da direção. Jamais lhes será dado tocar, por exemplo, no Menino Jesus, na Virgem e em São José. Nos pastores, sim, e nas grutas subsidiárias. O melhor seria que não amolassem, e Dasdores passaria o dia inteiro compondo sozinha a paisagem de água e pedras, relva, cães e pinheiros, que há de circundar a manjedoura. Nem todos os animais estão perfeitos; este carneirinho tem uma perna quebrada, que se poderia consertar, mas parece a Dasdores que, assim mutilado e dolorido, o Menino deve querer-lhe mais. Os camelos, bastante miúdos, não guardam proporção com os cameleiros que os tangem; mas são presente da tia morta, e participam da natureza dos animais domésticos, a qual por sua vez participa obscuramente da natureza da família. Através de um sentimento nebuloso, afigura-se-lhe que tudo é uma coisa só, e não há limites para o humano. Dasdores passa os dedos, com ternura, pelos camelinhos; sente neles a macieza da mão de Abelardo.
Alguém bate palmas na escada; ô de casa! amigas que vêm combinar a hora de ir para a igreja. Entram e acham o presépio desarranjado, na sala em desordem. Esta visita come mais tempo, matéria preciosa (“Agarra-me! Agarra-me!”). Quando alguém dispõe apenas de uns poucos minutos para fazer algo de muito importante e que exige não somente largo espaço de tempo mas também uma calma dominadora — algo de muito importante e que não pode absolutamente ser adiado — se esse alguém é nervoso, sua vontade se concentra, numa excitação aguda, e o trabalho começa a surgir, perfeito, de circunstâncias adversas. Dasdores não pertence a essa raça torturada e criadora; figura no ramo também delicado, mas impotente, dos fantasistas. Vão-se as amigas, para voltar duas horas depois, e Dasdores, interrogando o relógio, nele vê apenas o rosto de Abelardo, como também percebe esse rosto de bigode, e a cabeleira lustrosa, e os olhos acesos, dissimulados nas ramagens do papel da parede, e um pouco por toda parte. A mão continua tocando maquinalmente nas figuras do presépio, dispondo-as onde convém. Nada fará com que erre; do passado a tia repete sua lição profunda. Entretanto, o prazer de distribuir as figuras, de fixar a estrela, de espalhar no lago de vidro os patinhos de celulóide, está alterado, ou subtrai-se. Dasdores não o saboreia por inteiro. Ou nele se insinuou o prazer da missa? Ou o medo de que o primeiro, prolongando-se, viesse a impedir o segundo? Ou um sentimento de culpa, ao misturar o sagrado ao profano, dando, talvez, preferência a este último, pois no fundo da caminha de palha suas mãos acariciavam o Menino, mas o que a pele queria sentir — sentia, Deus me perdoe — era um calor humano, já sabeis de quem. Aqui desejaria, porque o mundo é cruel e as histórias também costumam sê-lo, acelerar o ritmo da narrativa, prover Dasdores com os muitos braços de que ela carece para cumprir com sua obrigação, vestir-se violentamente, sair com as amigas — depressa, depressa—, ir correndo ladeira acima, encontrar a igreja vazia, o adro já quase deserto, e nenhum Abelardo. Mas seria preciso atribuir-lhe, não braços e pernas suplementares, e sim outra natureza, diferente da que lhe coube, e é pura placidez. Correi, sôfregos, correi ladeira acima, e chegai sempre ou muito tarde ou muito cedo, mas continuai a correr, a matar-vos, sem perspectiva de paz ou conciliação. Não assim os serenos, aqueles que, mesmo sensuais, se policiam. O dono desta noite, depois do Menino, é o relógio, e este vai mastigando seus minutos, seus cinco minutos, seus quinze minutos. Se nos esquecermos dele, talvez pule meia hora, como um prestidigitador furta um ovo, mas, se nos pusermos a contemplá-lo, os números gelam, o ponteiro imobiliza-se, a vida parou rigorosamente. Saber que a vida parou seria reconfortante para Dasdores, que assim lograria folga para localizar condignamente os três reis na estrada, levantar os muros de Belém. Começa a fazê-lo, e o tempo dispara de novo. “Agarra-me! Agarra-me!” Nas cabeças que espiam pela porta entreaberta, no estouvamento dos irmãos, que querem se debruçar sobre o caminho de areia antes que essa esteja espalhada, na muda interrogação da mãe, no sentimento de que a vida é variada demais para caber em instantes tão curtos, no calor que começa a fazer apesar das janelas escancaradas — há uma previsão de malogro iminente. Pronto, este ano não haverá Natal. Nem namorado. E a noite se fundirá num largo pranto sobre o travesseiro.
Mas Dasdores continua, calma e preocupada, cismarenta e repartida, juntando na imaginação os dois deuses, colocando os pastores na posição devida e peculiar à adoração, decifrando os olhos de Abelardo, as mãos de Abelardo, o mistério prestigioso do ser de Abelardo, a auréola que os caminhantes descobriram em torno dos cabelos macios de Abelardo, a pele morena de Jesus, e aquele cigarro — quem botou! — ardendo na areia do presépio, e que Abelardo fumava na outra rua.

Carlos Drummond de Andrade, in Contos de Aprendiz

Aproveitar o tempo

Aproveitar o tempo!
Mas o que é o tempo, que eu o aproveite?
Aproveitar o tempo!
Nenhum dia sem linha…
O trabalho honesto e superior…
O trabalho à Virgílio, à Milton…
Mas é tão difícil ser honesto ou superior!
É tão pouco provável ser Milton ou ser Virgílio!

Aproveitar o tempo!
Tirar da alma os bocados precisos – nem mais nem menos –
Para com eles juntar os cubos ajustados
Que fazem gravuras certas na história
(E estão certas também do lado de baixo que se não vê)…
Pôr as sensações em castelo de cartas, pobre China dos serões,
E os pensamentos em dominó, igual contra igual,
E a vontade em carambola difícil.
Imagens de jogos ou de paciências ou de passatempos –
Imagens da vida, imagens das vidas. Imagens da Vida.

Verbalismo…
Sim, verbalismo…
Aproveitar o tempo!
Não ter um minuto que o exame de consciência desconheça…
Não ter um acto indefinido nem factício…
Não ter um movimento desconforme com propósitos…
Boas maneiras da alma…
Elegância de persistir…

Aproveitar o tempo!
Meu coração está cansado como mendigo verdadeiro.
Meu cérebro está pronto como um fardo posto ao canto.
Meu canto (verbalismo!) está tal como está e é triste.
Aproveitar o tempo!
Desde que comecei a escrever passaram cinco minutos.
Aproveitei-os ou não?
Se não sei se os aproveitei, que saberei de outros minutos?!

(Passageira que viajaras tantas vezes no mesmo compartimento comigo
No comboio suburbano,
Chegaste a interessar-te por mim?
Aproveitei o tempo olhando para ti?
Qual foi o ritmo do nosso sossego no comboio andante?
Qual foi o entendimento que não chegámos a ter?
Qual foi a vida que houve nisto? Que foi isto a vida?)

Aproveitar o tempo!
Ah, deixem-me não aproveitar nada!
Nem tempo, nem ser, nem memórias de tempo ou de ser!…
Deixem-me ser uma folha de árvore, titilada por brisa,
A poeira de uma estrada involuntária e sozinha,
O vinco deixado na estrada pelas rodas enquanto não vêm outras,
O pião do garoto, que vai a parar,
E oscila, no mesmo movimento que o da alma,
E cai, como caem os deuses, no chão do Destino.

Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa)

Resposta ao tempo | Cristóvão Bastos e Aldir Blanc, 1998


Como o resto do mundo, o Brasil não ficou imune à invasão do bolero, que nasceu em Cuba, no início do século XX, e, a partir dos anos 1940, se espalhou pela América Latina, tendo grande influência no samba-canção, até o surgimento da bossa nova, quando começou a perder espaço como “cafona”. Mas o “dois pra lá, dois pra cá” de João Bosco e Aldir Blanc sempre tem vez na MPB, como “Resposta ao tempo”, lançado em 1998 por Nana Caymmi no álbum de mesmo nome, que virou um fenômeno de execução nas rádios brasileiras. Escolhida para ser o tema de abertura da minissérie Hilda Furacão, a gravação também se transformou no maior sucesso popular de Nana, uma diva até então restrita a um público mais sofisticado.
Aldir Blanc já tivera algumas boas experiências com o gênero em suas parcerias com João Bosco, geralmente exercendo o seu habitual e corrosivo humor, mas no bolero com o pianista e arranjador carioca Cristóvão Bastos (1947) preferiu explorar um lirismo profundo em forma de um diálogo com o tempo.
E o tempo se rói / Com inveja de mim / Me vigia querendo aprender / Como eu morro de amor / Pra tentar reviver.”
A música, a letra e a interpretação apaixonada de Nana fizeram de “Resposta ao tempo” a canção ideal para a minissérie baseada no romance do escritor mineiro Roberto Drummond. A letra de Aldir não faz menção alguma ao enredo ou a personagens – a história de uma jovem da sociedade que troca um casamento seguro pela prostituição na Belo Horizonte dos anos 1950 –, mas, em suas reflexões sobre o tempo e a existência, são muitos os pontos de contato com a história.
Essas impressões e sensações são reforçadas pela melodia e pelo belíssimo arranjo de Cristóvão Bastos, que, como compositor, tem parcerias também com Chico Buarque, Paulo César Pinheiro, Paulinho da Viola, Abel Silva e Elton Medeiros.
Lançado com a insuperável gravação de Nana, “Resposta ao tempo” virou um clássico que não parou de atrair outras grandes vozes, como Milton Nascimento, Leila Pinheiro, Simone e Fafá de Belém.

Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil

Chegar em casa e te encontrar

Há dias de exaustão. Dias de descrença, nos quais o mundo parece estar invertido e recheado de tarefas ingratas. Há dias em que tudo dá errado, o molho respinga na camisa e a tabela de senhas do banco simplesmente desaparece. Há dias em que tudo o que vemos são pendências, projetos inacabados, ideias que não evoluem, ciclos que não se fecham. Dias em que a única coisa que parece existir é a nossa certeza sobre a ausência de sentido disso tudo.
Nesses dias, o trajeto para casa parece mais longo, o trânsito parece pior do que o habitual e, a princípio, não nos parece que chegar em casa seja solução para nada daquilo. Caminhamos com algum cansaço, procuramos as chaves com alguma dificuldade e, por fim, abrimos a porta.
E então as coisas mudam ligeiramente. Porque tem amor lá dentro. Tem alguém te esperando, às vezes com uma panela no fogo, às vezes com o rosto atrás da tela do computador, esmagado por prazos, às vezes jogado no sofá, sem maiores preocupações. Independentemente de como, tem alguém te esperando. E isso já é muita coisa.
Chegar em casa e te encontrar é a certeza de ter amparo. De poder falar mal do cliente, mal do chefe, mal do mundo e lavar a alma. É poder dividir angústias e frustrações e ir se sentindo rapidamente curado. É saber que não há encrenca cotidiana que resista a um abraço longo e a uma hora de conversa no sofá.
Há dias bons. Dias em que as coisas funcionam, em que os prazos são cumpridos e tudo parece harmônico. Dias em que o prato vem rápido e quentinho no almoço e não tem fila nenhuma no banheiro. Dias em que as pessoas são gentis e os semáforos parecem estar todos abertos. Nesses dias o caminho para casa tem música e a chave está no lugar mais evidente possível. E então abrimos a porta.
E tem alguém lá. Alguém com quem você pode dividir tudo o que deu certo, comemorar pequenas vitórias, brindar em dia de semana. Nesses dias dá até vontade de cozinhar, de descongelar aquele peito de frango, de preparar um molho qualquer com bastante creme de leite. E é bom ter alguém lá para experimentar sua receita errada.
Há dias em que os dois tiveram um bom dia. Outros em que um é consolo e outro é drama. Há dias em que ninguém está lá grande coisa. Mas, seja como for, é sempre melhor que seja junto. É sempre melhor abrir a porta e te encontrar. É sempre melhor estar em casa e te ouvir colocar a chave na fechadura. É sempre melhor ter seu ombro, seus ouvidos e seus olhos. E ser um ombro, dois ouvidos e dois olhos para você.
É melhor quando você está. É muito melhor quando você está.

Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso

Nhola dos Anjos e a cheia do Corumbá


Fio, fais um zóio de boi lá fora pra nóis.
O menino saiu do rancho com um baixeiro na cabeça, e no terreiro, debaixo da chuva miúda e continuada, enfincou o calcanhar na lama, rodou sobre ele o pé, riscando com o dedão uma circunferência no chão mole — outra e mais outra. Três círculos entrelaçados, cujos centros formavam um triângulo equilátero.
Isto era simpatia para fazer estiar. E o menino voltou:
Pronto, vó.
O rio já encheu mais? — perguntou ela.
Chi, tá um mar d’água! Qué vê, espia, — e apontou com o dedo para fora do rancho.
A velha foi até a porta e lançou a vista. Para todo lado havia água. Somente para o sul, para a várzea, é que estava mais enxuto, pois o braço do rio aí era pequeno. A velha voltou para dentro, arrastando-se pelo chão, feito um cachorro, cadela, aliás: era entrevada. Havia vinte anos apanhara um “ar de estupor” e desde então nunca mais se valera das pernas, que murcharam e se estorceram.
Começou a escurecer nevroticamente. Uma noite que vinha vagarosamente, irremediavelmente, como o progresso de uma doença fatal.
O Quelemente, filho da velha, entrou. Estava ensopadinho da silva. Dependurou numa forquilha a caroça, — que é a maneira mais analfabeta de se esconder da chuva, — tirou a camisa molhada do corpo e se agachou na beira da fornalha.
Mãe, o vau tá que tá sumino a gente. Este ano mesmo, se Deus ajudá, nóis se muda.
Onde ele se agachou, estava agora uma lagoa, da água escorrida da calça de algodão grosso.
A velha trouxe-lhe um prato de folha e ele começou a tirar, com a colher de pau, o feijão quente da panela de barro. Era um feijão brancacento, cascudo, cozido sem gordura. Derrubou farinha de mandioca em cima, mexeu e pôs-se a fazer grandes capitães com a mão, com que entrouxava a bocarra.
Agora a gente só ouvia o ronco do rio lá embaixo — ronco confuso, rouco, ora mais forte, ora mais fraco, como se fosse um zunzum subterrâneo. A calça de algodão cru do roceiro fumegava ante o calor da fornalha, como se pegasse fogo.
Já tinha pra mais de oitenta anos que os dos Anjos moravam ali na foz do Capivari no Corumbá. O rancho se erguia num morrote a cavaleiro de terrenos baixos e paludosos. A casa ficava num triângulo, de que dois lados eram formados por rios, e o terceiro, por uma vargem de buritis. Nos tempos de cheias os habitantes ficavam ilhados, mas a passagem da várzea era rasa e podia-se vadear perfeitamente.
No tempo da guerra do Lopes, ou antes ainda, o avô de Quelemente veio de Minas e montou ali sua fazenda de gado, pois a formação geográfica construíra um excelente apartador. O gado, porém, quando o velho morreu, já estava quase extinto pelas ervas daninhas. Daí para cá foi a decadência. No lugar da casa de telhas, que ruiu, ergueram um rancho de palhas. A erva se incumbiu de arrasar o resto do gado e as febres as pessoas. “— Este ano, se Deus ajudá, nóis se muda.” Há quarenta anos a velha Nhola vinha ouvindo aquela conversa fiada. A princípio fora seu marido: “— Nóis precisa de mudá, pruquê senão a água leva nóis”. Ele morreu de maleita e os outros continuaram no lugar. Depois era o filho que falava assim, mas nunca se mudara. Casara-se ali: tivera um filho; a mulher dele, nora de Nhola, morreu de maleita. E ainda continuaram no mesmo lugar: a velha Nhola, o filho Quelemente e o neto, um biruzinho sempre perrengado. A chuva caía meticulosamente, sem pressa de cessar. A palha do rancho porejava água, fedia a podre, derrubando dentro da casa uma infinidade de bichos que a sua podridão gerava. Ratos, sapos baratas, grilos, aranhas, — o diabo refugiava-se ali dentro, fugindo à inundação, que aos poucos ia galgando a perambeira do morrote.
Quelemente saiu ao terreiro e olhou a noite. Não havia céu, não havia horizonte — era aquela coisa confusa, translúcida e pegajosa. Clareava as trevas o branco leitoso das águas que cercavam o rancho. Ali pras bandas da vargem é que ainda se divisava o vulto negro e mal recortado do mato. Nem uma estrela. Nem um pirilampo. Nem um relâmpago. A noite era feito um grande cadáver, de olhos abertos e embaciados. Os gritos friorentos das marrecas povoavam de terror o ronco medonho da cheia.
No canto escuro do quarto, o pito da velha Nhola acendia-se e apagava-se sinistramente, alumiando seu rosto macilento e fuxicado.
Ocê bota a gente hoje em riba do jirau, viu? — pediu ela ao filho. — Com essa chuveira de dilúvio, tudo quanto é mundice entra pro rancho e eu num quero drumi no chão não.
Ela receava a baita cascavel que inda agorinha atravessara a cozinha numa intimidade pachorrenta.
Quelemente sentiu um frio ruim no lombo. Ele dormia com a roupa ensopada, mas aquele frio que estava sentindo era diferente. Foi puxar o baixeiro e nisto esbarrou com água. Pulou do jirau no chão e a água subiu-lhe ao umbigo. Sentiu um aperto no coração e uma tonteira enjoada. O rancho estava viscosamente iluminado pelo reflexo do líquido. Uma luz cansada e incômoda, que não permitia divisar os contornos das coisas. Dirigiu-se ao jirau da velha. Ela estava agachada sobre ele, com um brilho aziago no olhar. Lá fora o barulhão confuso, subterrâneo, sublinhado pelo uivo de um cachorro.
Adonde será que tá o chulinho?
Foi quando uma parede do rancho começou a desmoronar. Os torrões de barro do pau-a-pique se desprendiam dos amarrilhos de embiras e caíam nágua com um barulhinho brincalhão — tchibungue — tibungue. De repente, foi-se todo o pano de parede. As águas agitadas vieram banhar as pernas inúteis de mãe Nhola:
Nossa Senhora d’Abadia do Muquém!
Meu Divino Padre Eterno!
O menino chorava aos berros, tratando de subir pelos ombros da estuporada e alcançar o teto. Dentro da casa, boiavam pedaços de madeira, cujas, coités, trapos e a superfície do líquido tinha umas contorsões diabólicas de espasmos epiléticos, entre as espumas alvas.
Cá, nego, cá, nego — Nhola chamou o chulinho que vinha nadando pelo quarto, soprando a água. O animal subiu ao jirau e sacudiu o pelo molhado, trêmulo, e começou a lamber a cara do menino.
O teto agora começava a desabar, estralando, arriando as pathas no rio, com um vagar irritante, com uma calma perversa de suplício. Pelo vão da parede desconjuntada podia-se ver o lençol branco, — que se diluía na cortina diáfana, leitosa do espaço repleto de chuva, — e que arrastava as palhas, as taquaras da parede, os detritos da habitação. Tudo isso descia em longa fila, aos mansos boléus das ondas, ora valsando em torvelinhos, ora parando nos remansos enganadores. A porta do rancho também ia descendo. Era feita de paus de buritis amarrados por embiras.
Quelemente nadou, apanhou-a, colocou em cima a mãe e o filho, tirou do teto uma ripa mais comprida para servir de varejão, e lá se foram derivando, nessa jangada improvisada.
E o chulinho? — perguntou o menino, mas a única resposta foi mesmo o uivo do cachorro.
Quelemente tentava atirar a jangada para a vargem, a fim de alcançar as árvores. A embarcação mantinha-se a coisa de dois dedos acima da superfície das águas, mas sustinha satisfatoriamente a carga. O que era preciso era alcançar a vargem, agarrar-se aos galhos das árvores, sair por esse único ponto mais próximo e mais seguro. Daí em diante o rio pegava a estreitar-se entre barrancos atacados, até cair na cachoeira. Era preciso evitar essa passagem, fugir dela. Ainda se se tivesse certeza de que a enchente houvesse passado acima do barranco e extravasado pela campina adjacente a ele, podia-se salvar por ali. Do contrário, depois de cair no canal, o jeito era mesmo, espatifar-se na cachoeira.
É o mato? — perguntou engasgadamente Nhola, cujos olhos de pua furavam o breu da noite.
Sim. O mato se aproximava, discerniam-se sobre o líquido grandes manchas, sonambulicamente pesadas, emergindo do insondável — deviam ser as copas das árvores. De súbito, porém, a sirga não alcançou mais o fundo. A correnteza pegou a jangada de chofre, fê-la tornear rapidamente e arrebatou-a no lombo espumarento. As três pessoas agarraram-se freneticamente aos buritis, mas um tronco de árvore que derivava chocou-se com a embarcação, que agora corria na garupa da correnteza.
Quelemente viu a velha cair nágua, com o choque, mas não pôde nem mover-se: procurava, por milhares de cálculos, escapar à cachoeira, cujo rugido se aproximava de uma maneira desesperadora. Investigava a treva, tentando enxergar os barrancos altos daquele ponto do curso. Esforçava-se para identificar o local e atinar com um meio capaz de os salvar daquele estrugir encapetado da cachoeira.
A velha debatia-se, presa ainda à jangada por uma mão, despendendo esforços impossíveis por subir novamente para os buritis. Nisso Quelemente notou que a jangada já não suportava três pessoas. O choque com o tronco de árvore havia arrebentado os atilhos e metade dos buritis havia-se desligado e rodado. A velha não podia subir, sob pena de irem todos para o fundo. Ali já não cabia ninguém. Era o rio que reclamava uma vítima.
As águas roncavam e cambalhotavam espumejantes na noite escura que cegava os olhos, varrida de um vento frio e sibilante. A nado, não havia força capaz de romper a correnteza nesse ponto. Mas a velha tentava energicamente trepar novamente para os buritis, arrastando as pernas mortas que as águas metiam por baixo da jangada. Quelemente notou que aquele esforço da velha estava fazendo a embarcação perder a estabilidade. Ela já estava quase abaixo das águas. A velha não podia subir. Não podia. Era a morte que chegava, abraçando Quelemente com o manto líquido das águas sem fim. Tapando a sua respiração, tapando seus ouvidos, seus olhos, enchendo sua boca de água, sufocando-o, sufocando-o, apertando sua garganta. Matando seu filho, que era perrengue e estava grudado nele.
Quelemente segurou-se bem aos buritis e atirou um coice valente na cara aflissurada da velha Nhola. Ela afundou-se para tornar a aparecer, presa ainda à borda da jangada, os olhos fuzilando numa expressão de incompreensão e terror espantado. Novo coice melhor aplicado e um tufo d’água espirrou no escuro. Aquele último coice, entretanto, desequilibrou a jangada, que fugiu das mãos de Quelemente, desamparando-o no meio do rio. Ao cair, porém, sem querer, ele sentiu sob seus pés o chão seguro. Ali era um lugar raso. Devia ser a campina adjacente ao barranco. Era raso. O diabo da correnteza, porém, o arrastava, de tão forte. A mãe, se tivesse pernas vivas, certamente teria tomado pé, estaria salva. Suas pernas, entretanto, eram uns molambos sem governo, um estorvo.
Ah! se ele soubesse que aquilo era raso, não teria dado dois coices na cara da velha, não teria matado uma entrevada que queria subir para a jangada num lugar raso, onde ninguém se afogaria se a jangada afundasse... Mas quem sabe ela estava ali, com as unhas metidas no chão, as pernas escorrendo ao longo do rio?
Quem sabe ela não tinha rodado? Não tinha caído na cachoeira, cujo ronco escurecia mais ainda a treva?
Mãe, ô, mãe!
Mãe, a senhora tá aí?
E as águas escachoantes, rugindo, espumejando, refletindo cinicamente a treva do céu parado, do céu defunto, do céu entrevado, estuporado.
Mãe, ô, mãe! Eu num sabia que era raso. Espera aí, mãe!
O barulho do rio ora crescia, ora morria e Quelemente foi-se metendo por ele a dentro. A água barrenta e furiosa tinha vozes de pesadelo, resmungo de fantasmas, timbres de mãe ninando filhos doentes, uivos ásperos de cães danados. Abriam-se estranhas gargantas resfolegantes nos torvelinhos malucos e as espumas de noivado ficavam boiando por cima, como flores sobre túmulos.
Mãe! — lá se foi Quelemente, gritando dentro da noite, até que a água lhe encheu a boca aberta, lhe tapou o nariz, lhe encheu os olhos arregalados, lhe entupiu os ouvidos abertos à voz da mãe que não respondia, e foi deixá-lo, empazinado, nalgum perau distante, abaixo da cachoeira.

Bernardo Élis, in Ermos e Gerais